quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Lugares aonde se torna – ainda com carinho


Falhaste-lhe, Francisco

Ainda não há muitos anos, estando-se no estrangeiro, bastava não ouvir falar Português para um cristão do Casal da Fraga se sentir de férias. Agora, na rua do Arsenal, de tanta gente que por aí anda, do Município para o Corpo Santo, como em sentido contrário, querendo passar, ouve-se pedir licença em várias línguas. Ora, poupa-se na viagem, vai-se ter a sensação de férias ao Chafariz de El-Rei, à rua dos Bacalhoeiros, ou à referida do Arsenal.
Uma enormíssima variedade, portanto: mais ou menos ousadas, de todas as cores e feitios, algumas enigmáticas, uma por outra digamos em bastante mau estado, há-as bonitas e outras nem por isso. É como tudo, como as pernas na praia, para não irmos mais longe. Refiro-me às tatuagens, sendo que, do que quero falar, é do Francisco. Da raquítica tatuagem do Francisco.  
Estive com ele há dias. Continua magríssimo (vá lá, magro, para não ofender, como a imagem do São Francisco da procissão dos Terceiros). O vaticínio do costume, de que, casado, engordava e ganhava barriga, nele saiu errado. Nem o casamento, nem a passagem dos 50, nada – seco, magro, sem sombra da barriguinha da felicidade (consta-me que, da fórmula, lá terá a sua felicidade, a barriguinha é que não compareceu – e por este andar, se é que me entendem…) É este o homem da tatuagem raquítica, como se conta a seguir.
No tempo em que tatuar o corpo ainda não se tinha vulgarizado ao ponto que está, no tempo em que uma tatuagem dava um certo status, era uma distinção, mal comparado, assim como ter sangue azul, então, nessa altura (esclareça-se, entalado entre duas opções radicais – a outra era colocar um piercing) o Francisco aceitou o sacrifício da tatuagem. E assim se fez, no Suave Tattoo, rua do Poço dos Negros (estão a ver, do lado esquerdo), aconselhamento especializado, competência na execução, desenhos exclusivos, composição cem por cento manual. Satisfação garantida.  
Porém, o tattoo era um precavido profissional, orientado à técnica do Sapateiro do Tripeiro.
Vinha aos domingos, o Sapateiro do Tripeiro, em cima da hora da missa do dia, e parava na taberna do tio João Arrebotes, acho que ao lado do Fernando Latoeiro. Ali recebia e entregava encomendas, botas, sapatos, eteceteras da sua especialidade: na encomenda, tomava um pedaço de papel – podia ser um bocado de um saco de cimento – punha-se o pé em cima e ele contornava com um lápis, ali mesmo, no chão da taberna); na data acertada (nem sempre cumpria, enfim) lá vinham os grosseiros sapatões (na rua do Arsenal ouvi, hoje, hand-made shoes e 手工鞋) na medida do desenho tirado no Arrebotes, majorado em 20% a 30%. A contar que os pés iam crescer e o calçado era para mais de uma estação.   
Gente precavida, essa e então. Também precavido era o tatoo do Poço dos Negros, como se disse. E vai que usou, no Francisco – caprichada! – a técnica do Sapateiro do Tripeiro, fazendo-lhe uma tatuagem miniatura, comprimida, com uma redução, digamos, a menos de 50%. Ganharia o tamanho normal, o esplendor de obra-prima que nunca teve, com a esperada evolução física do ainda hoje magro (magríssimo!) Francisco. Tem destas coisas contar-se com o que há-de vir.
Ainda se ele engordasse, pouco que fosse… 

Sebastião Baldaque

5 comentários:

M. L. Ferreira disse...

Gosto deste Sebastião Baldaque: alegre, sentido de humor refinado, citadino quanto baste, sem desprezar a ruralidade, o que só lhe fica bem, que também somos filhos de Nosso Senhor e gostamos de alguma atenção.
Quanto ao tal Francisco, se for daqueles alfacinhas sem terra, que venha para a nossa. Vai ver como só com o ar da Serra, a água da Senhora da Orada e alguma pringueirice, até a tatuagem lhe cresce!...

José Teodoro Prata disse...

Bem apurada esta prosa do Baldaque!
Recomenda-se uma primeira leitura para desbravar e depois uma segunda para saborear. Vale a pena!

José Barroso disse...

Assim que comecei a ler este texto do amigo Baldaque, confesso que comecei a ficar com medo... E logo com aquela entrada: "Falhaste, Francisco"...! É que me pareceu que tudo se estava a encaixar no Francisco Barroso ...! E pensei: "Queres ver?!" . É claro que não estava a ver o FB a falhar! Mas, quanto à magreza, parece que ele tem andado a trabalhar para a elegância! Junte-se a isto o facto eu e o mesmo FB termos falado, há dias, dizendo-me ele que tinha encontrado o Baldaque (JMT), em Lisboa, sobre o envio de textos para os Enxidros...! Depois, lá fui percebendo…
Mas este meu sugestionamento inicial tem ainda outra razão de ser. É que esta história fez-me lembrar uma outra história sobre “filosofia de pacotilha” (assim lhe chamava o Ernesto Candeias), que alguns de nós arengavam, na vila, nos bancos da praça, enquanto “teenagers inconscientes”. Talvez um dia a conte aqui.
Afora isso, vejo que Lisboa continua a ser "cidade de muitas e desvairadas gentes" (Fernão Lopes). Hoje, mais que nunca! E com grande pena nossa porque ao fim de tantos séculos se vê bem da sua inconveniente macrocefalia.
Só me resta dizer qualquer coisa relativamente ao que disse a Libânia (post anterior) sobre “unidade nacional”. É, geralmente, um tema muito difícil. Mas, relativamente ao nosso país, parece-me que é o grande pensador, Eduardo Lourenço, felizmente ainda vivo, quem melhor tem estudado essa coisa da “portugalidade”.
Abraços, hã!
JB

Anônimo disse...

Como o mundo é pequeno. Tenho quase a certeza que conheço o tipo de que fala o Baldaque. Pelos sítios da narração deve ser ele. Costuma aparecer num tasco onde por vezes vou e onde todos se conhecem, que a casa é pequena. Há uns tempos, alguém se meteu com ele atirando-lhe: ó palito, então não ganhas para comer, que andas magro como um cão? Disse que não ganhava mal e ainda comia melhor, mas que não podia engordar por um problema genético no cromossoma 17. A pele tinha deixado de esticar aos 27 anos definindo-se, logo ali a sua volumetria máxima. O outro não se ficou, danado para a brincadeira atirou-lhe: isso é treta, então porque é que o nariz e as orelhas te estão a crescer? Respondeu: Isso é pura ilusão: Nada já cresce nesta idade, a carne é que está a minguar e os velhos, se reparam bem, tornam-se todos pencudos. Bem, quem não tem o meu problema de pele ainda que vai crescendo a barriga, mas isso é sinal que o plexo solar se vai atrofiando cada vez mais, o que não é bom sinal. Basta lembrar que os jovens saudáveis, nunca tem a barriga grande. Pelo menos é o que dizem os Taoistas. A assembleia trocou olhares de pasmo e aquilo ficou por alí.
De maneiras que é assim…
FB

M. L. Ferreira disse...

Ó ZB, havia lá necessidade de saber que o nosso Francisco tinha uma tatuagem? (não é que tenha ficado convencida, que a escrita deste Baldaque tem muitos meandros, mas também não tem mal nenhum...).

Sobre Lisboa ser terra de muitas e desvairadas gentes, há lá coisa melhor que isso? Já lá vão alguns anos, logo depois do fim da União Soviética, visitei alguns países da Europa Central e de Leste, incluindo a Rússia. Era impossível não ficar deslumbrado com a monumentalidade daquelas cidades, mas, simultaneamente, achava que faltava ali qualquer coisa. Só quando chegava a Lisboa e ia até ao Rossio, Almirante Reis, Martim Moniz (para não falar em Odivelas, onde morava na altura e grande parte da população era emigrante de África) é que percebia que o que me faltava era diversidade cultural do nosso país, principalmente das grandes cidade. Francamente, acho que era assim que o mundo devia ser: pretos, brancos, amarelos, encarnados, todos juntos; se quisessem, claro...
Também concordo que há algum exagero no número de turistas que invadiram as nossas cidades, principalmente Lisboa, com os consequentes aumentos no preço das casas, dos restaurantes, do lixo acumulado nas ruas, etc., mas também teve reflexos muito positivos, acho eu, em muitos outros aspeto. Lisboa está melhor. Basta passar por bairros como o Intendente, de onde há anos fugíamos a sete pés, e agora podemos tomar um café, sentados calmamente numa esplanada!