quinta-feira, 5 de maio de 2016

Antes do amanhecer

A condição da mulher no Estado Novo
                                                                 
         A Revolução do 25 de Abril foi o acontecimento mais importante da História contemporânea do nosso país, pelas mudanças que proporcionou em quase todos os setores da sociedade, permitindo uma evolução extraordinária nas vidas de todos nós. Mas, se as alterações foram enormes para a maioria dos portugueses, foram ainda mais significativas para as mulheres, descriminadas, quase sempre, pela lei, pelos costumes e preconceitos de toda a ordem.
         A Constituição da República Portuguesa de 1933, embora em vários aspetos mostrasse algum retrocesso relativamente à de 1910 e ignorasse as mudanças que aconteciam já em muitos países, continuava a pretender consagrar a igualdade de todos os cidadãos perante a lei. No artigo 5º escrevia-se: «A igualdade perante a lei envolve … a negação de qualquer privilégio de nascimento, nobreza, título nobiliárquico, sexo, ou condição social, salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família…». Esta redação era contraditória com o conceito de igualdade que queria fazer crer e, na prática, significava que, aliados aos efeitos da ditadura que negava muitos direitos a todos os cidadãos, as mulheres sofriam ainda as descriminações decorrentes da sua condição feminina, ficando reduzidas, quase exclusivamente, ao papel de donas de casa, mães e companheiras, e vendo diminuídos muitos dos seus direitos de cidadania, de liberdade, de independência e até o direito à sexualidade.
         Além de não poderem votar (esse direito era exclusivo dos homens maiores de 21 anos que soubessem ler e escrever, dos chefes de família e de algumas mulheres em condições muito bem definidas – menos de 2% do total da população), às mulheres era ainda dificultado, ou mesmo vedado, o exercício de cargos políticos, na magistratura ou na diplomacia.
         É exemplar o caso de Carolina Beatriz Ângelo que, em 1911, aproveitando-se de uma lacuna na legislação que se referia aos chefes de família, mas não especificava o sexo, invocou a sua situação de viúva, e por isso chefe de família, para exigir o direito ao voto. Foi a primeira mulher a votar em Portugal. A partir de então esse direito sofreu alguns avanços e recuos, mas foi autorizado quase sempre em situações muito específicas, dependendo do nível de escolaridade ou estatuto social e económico. Só depois do 25 de Abril, votar se tornou um direito igual para todos os homens e mulheres maiores de idade. Em termos profissionais, salvo raras exceçõe, eram poucas as mulheres que, fora dos trabalhos agrícolas, domésticos ou fabris, tinham uma atividade profissional remunerada. As que eram casadas tinham de ter autorização dos maridos para exercerem determinadas profissões e, a qualquer momento, podiam ver cessar o contrato de trabalho a mando deles. Acrescia ainda o facto de o salário que lhes era pago ser significativamente mais baixo que o dos homens, mesmo que o trabalho fosse igual. Para além de injusto, isto deixava-as numa situação de grande fragilidade e dependência relativamente aos maridos, com as inevitáveis consequências daí decorrentes.
         O papel da mulher no seio da família era muito importante, mas, como diz o ditado «Cá em casa manda ela e nela mando eu», também de submissão ao marido. O homem era o chefe e a ele estavam cometidos muitos dos direitos sociais e políticos da família; competia-lhe também o seu sustento. À mulher estava reservado o governo da casa e a educação dos filhos.
         Não era permitido às mulheres ter conta bancária nem ausentar-se do país sem o consentimento do marido, mesmo que tivessem possibilidades financeiras para o fazer. Não seria o caso de muitas, mas essa situação mantinha-se mesmo que o casal estivesse separado de pessoas e bens.  
         As enfermeiras e hospedeiras de bordo não podiam casar-se e as professoras tinham que pedir autorização superior para o fazer. No caso de o homem não ser considerado pessoa de bem ou não tivesse um ordenado igual ou mais elevado que o da mulher, a autorização era negada.
     O divórcio não era permitido e os filhos nascidos fora do casamento eram considerados ilegítimos, mesmo que assumidos pelo pai biológico. Esta situação era altamente penalizadora para as mulheres, mas também para as crianças que viam reduzidos muitos dos seus direitos, para além da descriminação social a que estavam sujeitas.
A moral sexual vigente até quase ao final do Estado Novo era dominada pela visão altamente castradora da Igreja Católica que defendia a sexualidade apenas dentro do casamento. Desse modo, a finalidade das relações sexuais era a procriação, sendo pouco valorizadas as questões da afetividade e, sobretudo, do prazer.
         Mas a rigidez desta visão, baseada em crenças morais e religiosas muito redutoras, aplicava-se sobretudo às mulheres, já que aos homens eram toleradas as relações antes do casamento e extraconjugais. Em alguns meios esta prática estava de tal modo enraizada e era tão bem aceite que fazia parte do estatuto social de certos homens. No caso das mulheres, se não fossem virgens na altura do casamento, era motivo para a anulação do matrimónio. O homicídio, em caso de adultério, era tolerado socialmente e a pena aplicada pelos tribunais tinha muitas atenuantes; a maior parte das vezes não ia para além do afastamento temporário da residência habitual, continuando a usufruir das regalias de que beneficiava anteriormente.
         O aparecimento e progressiva despenalização legal e social dos métodos contracetivos, assim como as consultas de planeamento familiar e saúde materno infantil contribuíram significativamente para ajudar a vencer os medos, a vergonha e muitas ideias preconceituosas relativamente ao sexo. Permitiram também, a homens e mulheres, viverem a sua sexualidade de forma mais equilibrada, igualitária, e gratificante.
         Passados mais de quarenta anos após o 25 de Abril, refletir sobre estas questões, mesmo que de forma breve, pode fazer lembrar feminismos já ultrapassados, mas a realidade mostra que não é bem assim. Apesar das alterações legislativas e das mudanças em termos dos costumes e mentalidades, as mulheres continuam a ser o elo mais fraco duma sociedade de características ainda marcadamente masculinas: recebem salários mais baixos em muitas profissões; são quase sempre as mais atingidas pelo desemprego; continuam a ser descriminadas pela maternidade; sofrem ainda de chantagem e assédio nos locais de trabalho; têm mais dificuldade em aceder a lugares de chefia, quer nas empresas quer na política (a lei da paridade estabelece que 33% da composição das listas para a Assembleia da República, Autarquias e Parlamento Europeu têm que ser mulheres, mas na prática não serve de muito porque, para além do número ser altamente discriminatório, as mulheres são muitas vezes colocadas em lugares dificilmente elegíveis).
         Os números da violência doméstica e dos homicídios praticados no seio da família dizem-nos que a lógica que regulou a vida das nossas avós e das nossas mães não está tão distante como possamos imaginar. Por isso vale a pena ter memória e a consciência de que os direitos adquiridos, neste e noutros setores, não são conquistas sem retorno.
Ceifeira, de Almada Negreiros, atualmente no CCC de Castelo Branco.

M. L. Ferreira 

5 comentários:

Anônimo disse...

Bem estudado pela MLF. A história do constitucionalismo português mostra que a nossa Constituição de 1911 (de certa inspiração jacobina), era muito avançada. Não foi possível ao regime republicano parlamentar resistir à inconstância dos sucessivos governos. O que levou, depois, o Marechal Carmona a proferir aquela famosa frase: “A pátria está doente”.
Mas, hoje, em Portugal, apesar de faltarem acordos interpartidários em áreas estratégicas nacionais, a cultura política já permite muita coisa, inclusive, arranjos parlamentares que possibilitam que a vida social prossiga, mesmo com altos e baixos. Como na 1ª República isso não foi possível, veio a ditadura do Estado Novo (mas velho em ideias!) e com ela um retrocesso civilizacional que só acabou com o 25 de abril de 1974.
Costumo dizer que a Revolução Francesa foi a maior revolução de sempre do Homem Político. Antes disso, nunca houve democracias porque havia escravos e servos.
Mas nós sabemos como são as revoluções políticas. Basta ler (ou ver o filme de animação) o Triunfo dos Porcos (George Orwell, Animal Farm). Não é nas revoluções políticas que se encontra a resposta para as grandes questões do Homem. Que tem tentado procurá-las em si mesmo e, para os crentes, em Deus. Daí que, acima da Revolução Francesa, ponha o Cristianismo que foi a maior revolução de sempre do Homem Total. Apelando à revolução interior, que é a verdadeira evolução e que começa em cada um de nós. Coloca o senhor ao mesmo nível do escravo, rompe com tradições judaicas como a da morte da mulher por lapidação (castigo para o adultério – conceito ultrapassado - da mulher, mas não do homem!). Dá a todo o homem a dignidade que não tinha, apontando-o como criatura de Deus.
Todavia, muitas das respostas propostas pelos teólogos, embora pretensamente fundadas no Direito Natural, têm redundado, ao longo dos tempos, em ofensas a muitos direitos fundamentais, especialmente da mulher! É um facto.
E, até, curiosamente, foram as sociedades laicas, modernas, mais cultas (e, decerto, muitos teólogos não oficiais) que beberam e acolheram o Cristianismo mais genuíno.
Diria aqui o que disse o poeta Guerra Junqueiro (cito de memória): “A Igreja foi a Cristo buscar o corpo e nós a alma.”
E, foram essas sociedades que se colocaram à frente das posições da Igreja na abertura a muitos dos direitos atuais, inerentes à pessoa humana. A título de exemplo: o atual Direito Penal português, aposta profundamente na compreensão das pessoas enquanto homens e mulheres (apesar de condenados) e na sua recuperação e reinserção social. Ora, isto tem muito de cristão!
Abraços.
ZB

Anônimo disse...

Na verdade, apesar de a lei contemplar a igualdade entre homens e mulheres a realidade é ainda a que nos dá conta o texto da ML, mas as coisas estão a mudar. A sociedade está a tornar-se matriarcal. As mulheres são em maior número, são mais trabalhadoras (o ZT pode confirmar isso pelos resultados escolares), são muito criativas e estão a ficar em maioria em muitos sectores da sociedade. São mais justas, talvez pela sua natureza maternal e quem sabe se daqui a 100 ou 200 anos, não estaremos a passar por aquilo que elas passaram… Talvez não, só por elas têm melhor coração, são mais sensíveis e a nossa vantagem é que somos filhos delas.
FB

Anônimo disse...

Tempos obscuros, os jornais não podiam publicar fosse o que fosse sem prévia autorização da censura. António Paulouro, fundador do Jornal do Fundão foi um "mártir" da censura
O grande bispo de Portalegre e Castelo Branco, D. António Ferreira Gomes, mais tarde bispo do Porto; o tal que disse:-"De joelhos diante de Deus, sempre; de pé diante dos homens" teve que abandonar a sua diocese, porque discordava do regime.
Partiu para Espanha, andou por essa Europa
(...) Vivia em Roma quando morreu sua mãe, não o deixaram vir ao funeral
Um destes dias um comentador da SIC ao referir-se ao prelado disse:
Os jornais da época não quiseram publicar a morte da senhora na página necrológica porque tinha "Ferreira Gomes" no nome
É a vida
J.M.S

Anônimo disse...

Quase na mesma altura em que escrevi e enviei para eventual publicação este artigo ouvi uma crónica a que o autor chamou “Despojos de guerra” (TSF, Sinais de 18 de Abril). Fala da violação de mulheres, no Sudão do Sul, praticado por soldados que as surpreendem, como se fossem presas, enquanto procuram lenha ou se lavam no rio. O mais aterrador desta notícia é que se trata de uma prática autorizada pelas autoridades como fazendo parte do salário dos soldados.
Ao ouvir esta crónica quase senti falta de legitimidade para reivindicar seja o que for, enquanto no meu mundo ainda acontecem barbaridades destas e ninguém faz nada para as evitar.

M. L. Ferreira

Anônimo disse...

Fosse eu crente, a coisa seria tratada de outra maneira; não sendo, registo algumas coisas sem importância, muito nossas: nas casas dos nascidos depois da II Guerra, assume-se que é a mulher que destina as refeições, que cozinha, faz as lavagens da casa e dos filhos, e quando estão todos sentados à mesa, faltando alguma coisa, é a mulher que se levanta (estatisticamente, é o mesmo nas casas dos nascidos depois do 25A); quando o filho fica doente ou indisposto, quem chega tarde ao trabalho, ou falta, é a mãe, não o pai ou a mãe; quem é suposto tratar dos velhotes, já muito gastos ou assim-assim, é a filha; nos casais separados, é menos comum a mulher constituir uma nova família; atribuindo a Lei, por defeito, os filhos à mãe, em caso de separação, é corrente (maioritário?) o pai desligar-se de obrigações pecuniárias, mesmo se fixadas em tribunal. Ah, e na igreja anglicana, tendo o Estado e a hierarquia aceitado, depois de uma discussão de dezenas de anos, que as mulheres pudessem ser sagradas bispos, a comunidade dos crentes rejeitou uma tal heresia.
O Baldaque, depois de ler a prosas supra, foi fazer o diagnóstico lá em casa, na rua onde mora e, de longe, naqueles que mais estima; «Pois», disse; sei que o perturbou, face a esta cartilha, aquilo que viu nas casas dos filhos, educados lá em casa e, tudo indica, em tais matérias, mais próximos dos trisavós que dos papás. E em minha casa, como vãos de coisas sem importância..., foi o que perguntaram?
JMT