domingo, 9 de outubro de 2016

O Jareto

Uma cortina enegrecida dividia a cozinha da enxerga. O ganhão levantava-se mais cedo que as galinhas. Era uma casita pequena, o reboco há muito tinha desaparecido, grossos pregos de caibro espetados na parede seguravam os poucos utensílios existentes. Um tacho esmaltado, a candeia, um púcaro, panela de barro, trempes… a panela de ferro ficava junto ao borralho, assim como um púcaro onde havia sempre café.
Ao levantar-se do catre, o ganhão vestiu as calças de burel, calçou as botas cardadas, tirou do bolso do colete a onça de tabaco, e o livro de papel; sacou uma mortalha, nela colocou um pouco de tabaco. Com os lábios humedeceu-a, enrolou-a e acendeu o cigarro. Deu uma fumaça, pigarreou, “para sair o catarro”; de seguida pegou na garrafa da aguardente e matou o bicho.
Tirou uma malga da cantareira onde migou pão e encheu-a de café que estava dentro do púcaro de barro. Sentou-se no tropeço, mastigava e fumava ao mesmo tempo.
O galo cantou no galinheiro da dona Cidália, a alva sonolenta dormitava ainda.
Foi à gaveta da mesa, cortou uma fatia de broa e um naco de queijo das ovelhas da Casa Conde e embrulhou-o numa folha de couve; do bolso do casaco de burel tirou uma bolsa onde meteu a pitança.
Nova fungadela, desceu as escadas com algum cuidado, algumas já acusam o peso dos anos. Tirou a tranca à porta, levantou a cravelha e saiu para a rua.
Elevou os olhos para o céu estrelado, não bulia uma palha. Àquela hora da manhã, o ar já era quente. Dirigiu-se ao cabanão onde se situava a abegoaria.
Ao passar em frente à igreja da Misericórdia, tirou o chapéu e cumprimentou o Senhor Santo Cristo:
-Bons dias, Senhor Santo Cristo, já cá vou.
Homem rude, simples, trabalhador, aquela era a sua reza, não recitava o pai-nosso; se calhar nem o sabia. Com a sua rusticidade e humildade, rezava mais que muito boa gente que passava o dia a debitar pai-nossos e ave-marias. Era a sua jaculatória.
-Bom dia, Senhor Santo Cristo.
No cabanão, subiu as escadas, trouxe uma faixa de caneirões, abriu a cancela e espalhou-os na manjedoura; fez umas festas à Amarela e à Malhada.
Enquanto comiam a ração, o ganhão preparou o carro, foi buscar o aguilhão, atou a lanterna a um fugueiro, enrolou um cigarro, colocou a canga às vacas, atrelou-as e saiu. A camisa fraldejava. Desceu a rua da Igreja, a jeira ficava longe, ia preparar a terra para semear milho basto.
A aurora tinha acabado de se levantar, aos poucos o sol inundava com sua luz toda a terra, em cima do carro ia a charrua e um calabre. À noite tinha que passar pelo corte e carregar uma carrada de pernadas para o forno.
Quando chegou, desatrelou as vacas do carro, engatou a charrua e começou a lavrar. As leivas faziam-se com uma certa dificuldade, o terreno tinha muita erva, com o aguilhão destorroava os montes de terra que se iam agarrando à charrua.
Entardecia, tirou a charrua às vacas, voltou a atrelar o carro, o corte ainda ficava longe; era noite quando chegou à porta do forno.
No cabanão, desatrelou o carro, acendeu a lanterna e levou as vacas ao chafariz; enquanto bebiam, matou a sede numa das bicas da fonte velha.
Àquela hora havia mais de uma dúzia de mulheres à espera de vez para encherem os cântaros.
Os animais continuavam bebendo. De repente, duas vacas engalfinharam-se e começaram a marrar, os ganhões aflitos tentavam com seus aguilhões separá-las, parecia que tinham o diabo no corpo. A certa altura, o chavelho de uma das vacas partiu-se, os ganhões finalmente conseguiram acalmar as alimárias. O sangue escorria, as pessoas que estavam sentadas nos cais e a encher seus cântaros fugiram, não ganharam para o susto.
O dono da vaca que tinha ficado sem o chifre, no outro dia de manhã foi ao posto fazer queixa. O ganhão foi notificado para se dirigir ao tribunal de Castelo Branco. Antes de entrar na sala de audiências, alguém lhe disse o que devia dizer quando estivesse a ser interrogado.
À hora marcada, apresentou-se rubicundo e a tremer, perante o magistrado:
-Conte lá o que se passou. - pediu o juiz.
-Senhor doutor juiz, as vacas estavam a beber água no chafariz, de repente começaram a marrar. Faz de conta que eu sou um boi, o senhor é outro boi, vamos os dois a marrar, eu parto-lhe um corno, que culpa tem o ganhão?
-Tirem este homem daqui!
E assim ganhou a contenda.
- Bom dia, Senhor Santo Cristo…


JMS

5 comentários:

Anônimo disse...

Em primeiro lugar, está muito bem escrito. Pois, o texto dá-nos o retrato fiel de um casebre onde, de facto, podia morar o Ti' João Jarêto (pai do "Chô Domingos"). E dá-nos a ementa do pequeno almoço. Um texto, por isso, rico em palavras que já nos vão esquecendo (v.g. calabre, que é uma corda grossa, etc.).
Acho que o JMS se refere a uma casa do fundo de vila, na rua Velha (hoje do Domingos de Carcavelos?), visto que é dito no texto que o Ti' Jarêto para ir para o cabanão passava pela Misericórdia. Mas este velho resistente de S. Vicente da Beira, numa época ainda medieval, também morou no cimo de vila (antes de ir para o fundo de vila?). A casa dele era quase a última ao virar para a Corredoura (é agora do GNR reformado do Casal da Serra). Mas na altura era em pedra e não em cimento. Seria curioso perguntar ao "Chô Domingos" (que ainda morou na dita casa do cimo de vila), mais alguma coisa sobre o assunto. Quanto à história das vacas, do corno partido e do tribunal, foi o próprio Domingos que ma contou há uns anos...
Abraços.
ZB

Anônimo disse...

A casa a que me refiro no texto é realmente a morada da Rua Velha. o casebre do cimo da vila era uma casinha ainda mais pequena! "eram duas" muito pequeninas, baixinhas, feitas de pedras boldias, xistosas. Estas habitações regra geral possuíam uma pequena janela, as portas também tinham um postigo que servia igualmente de janela. Algumas, a única abertura que tinham era só postigo da porta.
Demoliram-nas para darem lugar à casa que pertence actualmente a Xisto natural da Soalheira.
No umbral de uma delas lembro-me que possuía uma cruz, morada de alguma família de cristãos novos.
Já na Rua da Corredoura "quelha naquele tempo" havia também duas casas onde moravam os senhores António "Lituardo" e José Madeira "Zé coelhito". Quando alguém batia à porta a moradora abria o postigo para ver quem era.
J.M.S

Anônimo disse...

Também me lembro, embora não o tenha referido no anterior comentário, das tais casas do Ti' António "Lituardo" (que ficava à esquerda quando contornávamos a quina para a Corredoura, a caminho do Marzelo) e do Ti' Zé "Coelhito", que ficava à direita. Ambas foram demolidas. A casa do Jarêto, também demolida, é, como dizes, a do Xisto da Soalheira (eu pensava que ele era do Casal da Serra)...
Quase ao lado da casa do Ti' António "Lituardo" havia uma mina que tinha a entrada ao nível da rua e era bastante profunda (tanto quanto me lembro). Nós, os putos do cimo de vila, íamos muitas vezes com velas ou pinhas que acendíamos ao longo do percurso, até ao fundo. O pior era quando se apagava tudo e tínhamos que regressar a tatear!... Eram as nossas brincadeiras, algumas arriscadas. Ai, se as nossas mães soubessem! E às vezes sabiam!... Quer dizer, era mais ou menos como hoje a nossa criançada a jogar play-station!... Eh! eh! eh!
Julgo que essa mina foi uma tentativa frustrada de captação de água para a população. Na verdade, quando íamos ao fundo da mina não se encontrava quase água nenhuma, tirando uns pequenos charcos no piso, que mal davam para molhar os sapatos.
Abraços.
ZB


José Teodoro Prata disse...

É de facto um bom texto. Parabéns ao José Manuel.

Anônimo disse...

Sobre memórias do cimo de Vila, lembro-me ainda dessas casas.
Na do Zé Coelhito, morou depois o Zé Marau e o Quinlé que nessa altura tinha uma vocação para Padre maior que ninguém, fez da loja uma capela cheia de bandeiras e alfaias religiosas feitas de frascos, garrafas e latas e faziam-se procissões de arromba com bandeiras feitas de panos velhos por aquela quelha fora. Uma coisa do outro mundo...O Quinlé um pirralho a pregar e a rezar o terço e nós a acompanhar. Nos outro dias em que não havia exéquias jogávamos aos cawboys com pistolas feitas por nós. A do Zé Barroso era a mais bem feita. mãozeira de cortiça com cano de cana da índia. todos adorávamos dar uns tiros com ela. O balcão e as escadas de pedra do Luís Mexe era o forte. E lembro-me de darmos uns berros ao postigo da ti Nazaré Pigenta, para a assustar.
Concordo convosco, bonita esta história do Zé Manel.
FB