domingo, 10 de fevereiro de 2013

À nossa ribeira

A .   dos Santos

RIBEIRA DA MINHA TERRA

Ah! Ribeira de São Vicente,
Como te percorri o ventre,
Púbere,
Serrano,
Da nascente.
Era eu ainda uma criança!

Como te calcorreei as fráguas,
Da montanha escarpada,
Úbere,
De onde brotas todo o ano,
Na Senhora da Orada.
Era ainda a vida uma esperança!

Como sei dos sobressaltos,
Das tuas águas,
Que descem,
Por entre as rochas, ali,
No teu leito,
Beijando os salgueiros altos,  
Que crescem,
Nas orlas da tua amurada,
Debruçados sobre ti,
A espreitar-te o peito.
                                                                        
Quando te ouço e vejo,
                        Bruxuleando, reluzente,
Num saltitar de sonoridade,
A caminho do longínquo Tejo,
Como quem te contempla à distância,
À luz do sol poente,
De carmim,
Invejo-te a juventude e a idade,
Porque renasces incessantemente,
E és sempre nova.

Ao passo que, a mim,
Já se me foi a infância,      
E a vida não se me renova.

Brinquei no teu seio,
Descalço, calça arregaçada,
Na intimidade da tua frescura,
P’lo meio dos feixes
De juncos,
Procurando em ti, de uma assentada,
Inexoravelmente,
Entre os espinhos das silvas, como facas,
A tua ternura,
E os teus peixes,
Ambos escondidos, secretamente,
No secretismo das tuas lapas.

Carregado de candura,
Despreocupada, imensa,
Andei, na minha meninice,  
A apanhar-te as borboletas e as libelinhas,
Que ziguezagueavam, entre as tuas flores,
E verdura,
Asinhas,
Que vi, como se ainda agora as visse,
Em recortes de luz intensa,
De mil cores.

E também os gafanhotos, que punha, como isco,
No anzol de alfinete dobrado,
Atado na ponta da linha de coser branca,
Que, arisco,
Surripiava do açafate de costura de minha mãe.

Artimanha desusada,
(Que ninguém,
Com juízo, atamanca),
Procurando pescar-te o fruto prateado,
Nessa armadilha caseira, improvisada,

Ingeri-te o corpo e a alma,
Nas tuas correntes puras,
Bebendo-te, sôfrego,
Em dias de grande calma.

Feri nas arestas das tuas pedras duras,
A pele nua.

Por isso,
Parte da tua água, é também o meu sangue.
Sobre uma laje tua,
Cheia de limo e musgo, escorregadia,
Que a sombra de alguma figueira,
Às vezes já com um laivo outoniço,
Plantada na tua fímbria,
Protegia,
Me deitava, cansado de andar, exangue,
E adormecia.

Como vi e ouvi as bravas mulheres da Vila,
A vida cheia de fé, 
A lavar a roupa nos açudes das tuas claras águas,  
Que a areia térrea da tua profundeza filtrava,
A cantar, para sufocar as mágoas,
Ou para embalar,
O seu menino dentro da trouxa,
Na relva, ali ao pé.

E estendê-la, a corar,
Na erva, sempre verde, da tua margem,
Onde a água não chegava.

E ainda distingo, na memória,
As pequenas figuras,
Como quando de longe as avistava,
Na refração da luz,
Violeta de ametista,
A diluírem-se nas lonjuras,
Como num quadro, uma paisagem,
De um pintor impressionista.

Como me regalava, no verão,
Banhando-me na forte torrente, 
Das tuas cachoeiras refrescantes,
Em completa comunhão,
Contigo!

Ricos instantes,
Que guardo num registo antigo,
Quase da idade,
Do meu coração.
  
Como eu te amo, Ribeira de S. Vicente!
Mas dessa afetividade,
Desse amor,
Apenas me dei conta recentemente.
Amava-te sem saber,
Como quem possui um objeto e não lhe dá valor.

Mas, agora, vou amar-te,
Incondicionalmente,
Até morrer.

E tu, atraindo outros universos,
De outras gerações,
De vicentinos,
Como um feitiço,
Inspirando outros versos,
Outras canções,
Prosseguirás bela, impassivelmente,
Decerto, marcando os seus destinos,
Como musa, já se vê, não como enguiço, 
Até sempre, perenemente.

Amar-te,
Incondicionalmente,
Sim,
Até morrer.

Mas, eu morro,
E tu, Ribeira, 

Ah! Tu continuarás a correr!

3 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Poema sentido por quem tem a ribeira como parte da sua vida.
E um poema já maduro!
Era bom termos um percurso pedestre ao longo da ribeira, para passearmos no tempo quente, refrescados pela aragem e pelas sombras refrescantes, acompanhados do canto dos passarinhos que no verão ali têm a sua casa. Infelizmente, isso só é possível em pequenos troços.

Anônimo disse...

O poeta desconhecido (A. dos Santos) brindou-nos outra vez. Seja ele quem for, fez-me viajar no tempo imensos anos e revisitar os porões da alma, onde guardamos recordações e emoções, que a beleza e poesia das imagens têm o poder de convocar e trazer à superfície. Deixo só estas duas e um agradecimento ao poeta:

…Invejo-te a juventude e a idade,

Porque renasces incessantemente,

E és sempre nova.

Ao passo que, a mim,

Já se me foi a infância,

E a vida não se me renova….

…Sobre uma laje tua,

Cheia de limo e musgo, escorregadia,

Que a sombra de alguma figueira,

Às vezes já com um laivo outoniço,

Plantada na tua fímbria,

Protegia,

Me deitava, cansado de andar, exangue,

E adormecia…

Francisco Barroso

Anônimo disse...

Belo poema! Parabéns ao A. Santos pela forma como conseguiu transformar em palavras as memórias das experiências que a nossa Ribeira lhe proporcionou! Memórias que são também as de tantos de nós e nos deixaram tantas saudades…
Mas, para além das memórias afectivas que guardo da Ribeira, lembro-me também da sua importância, até há relativamente pouco tempo, para a economia da nossa terra. Era a sua água que regava os lameiros e hortas, e movia os engenhos dos muitos lagares e azenhas das suas margens. Fiquei também a saber, durante um passeio que fizemos com o José Teodoro, que na zona do pelome funcionou em tempos uma indústria de curtumes.
Mas de há alguns anos para cá, com o declínio da importância da agricultura e das pequenas indústrias, muitas hortas estão abandonadas, os lagares e azenhas foram desativados e estão todos em ruínas (o que se perdeu do nosso património!). Tudo isto fez com que a Ribeira perdesse muita da sua importância e quase ficasse moribunda. O caudal diminuiu bastante, e a pouca água que ainda corre está escondida por silvas e outro tipo de vegetação que nasceu descontrolada em grande parte do seu percurso (será que já não está em vigor aquela lei que o José Teodoro refere no seu último livro sobre a limpeza das ribeiras?). Um passeio nas suas margens constitui atualmente uma aventura perigosa.
Parece que as coisas estão a mudar desde há algum tempo. Ultimamente, tem havido algum trabalho de limpeza do leito e margens e a Ribeira está a ficar mais bonita.
Oxalá estes trabalhos sejam para continuar e que em breve possamos voltar a usufruir daquele espaço tão bonito e diversificado. Também para que se possa cumprir o desejo do A. Santos e no futuro outros possam viver e cantar a nossa Ribeira!
M. L. Ferreira