segunda-feira, 15 de abril de 2013

Reminiscências


Como diz o Francisco Barroso, a capacidade do cérebro humano para criar associações de ideias e guardar memórias não se compara à de qualquer outra espécie à face da terra.

Vem isto a propósito do poema Reminiscências que foi o primeiro texto do livro de leitura do meu primeiro ano na Telescola. Trata-se de um poema que descreve a alegria de uma criança que passa com distinção no exame da quarta classe porque conseguiu papaguear tudo o que lhe tinham ensinado na escola. Quando chega a casa, orgulhosa, exclama: “Ó mãe, eu já sei tudo!” O poema termina num acto de humildade da protagonista quando, já madura, exclama: “ Ó mãe, eu não sei nada!”. Este é um ensinamento que só o conhecimento adquirido ao longo da vida nos dá: quanto mais aprendemos maior consciência temos do quanto estamos longe do conhecimento total e mais humilde é a atitude perante a vida.  

Tenho-me lembrado deste poema muitas vezes ao longo dos anos, mas recordei-o especialmente há dias, aquando da declaração do ministro Miguel Relvas sobre o seu pedido de cessação de funções governativas.

A sua declaração, como aliás quase todos os atos em que esteve envolvido como ministro, foi tão despropositada e arrogante, e revelou um auto-conceito tão desmesurado que só pode ser comparado ao de uma criança de nove ou dez anos que acaba de passar no exame com distinção. Só que ele nem o exame fez, como parece…

Aqui vai o poema que descobri há dias na internet(http://leonoretta.blogspot.pt/2005/04/reminiscncias.html), ainda por cima acompanhado pela canção “Poetas Andaluces” dos Aquaviva (uma maravilha!):


Reminiscências

"...Lisboa, Santarém, Porto, Leiria..."
(eu sabia de cor toda a geografia)
O Senhor Inspector
deu-me a nota mais alta em geografia
e disse gravemente:
- "Continua. Hás-de ser gente..."
"Ângulo recto, agudo,
cateto, hipotenusa...
(já manchara de giz a minha blusa
mas respondia a tudo
e a professora sorria
enquanto eu papagueava a geometria)
"...D. Sancho, o Povoador...
D. Dinis, o Lavrador...
(Tinha então boa memória,
sabia as datas da história...)
1580
1640
1143
em Arcos de Valdevez...
(Muito bem, sim senhor!
A pequena é simpática)
E depois, em voz alta, o senhor Inspector:
- Vamos à gramática." -
"...E, nem, não só, mas também...
conjunções copulativas"
(Eu pensava na alegria
que ia dar a minha mãe,
nas frases admirativas
da velha D. Maria,
a minha primeira mestra:
- Tão novinha e ficou "bem"!" -
e esta suavíssima orquestra
acompanhava em surdina
o meu primeiro exame de menina
aplicada, orgulhosa e inteligente...)
- "Vá ao quadro, menina! Docilmente
fiz os problemas, dividi fracções,
disse as regras das quatro operações
e finalmente
O Senhor Inspector felicitou-me,
quis saber o meu nome
e declarou-me
que ficara "distinta" sem favor.
Ah! que esplendor!
Que alegria total e sem mistura,
que orgulho, que vaidade!
Olhei de frente o sol e a claridade
não me cegou, julguei-a quase escura...
As estrelas, fitei-as como iguais.
Melhor: como rivais...
E a Humanidade
pareceu-me um rebanho sem vontade,
uma vasta colónia de formigas...
(As minhas pobres, tímidas amigas!)
Pouco depois, em casa, a testa em fogo, o olhar em brasa,
gritei num desafio
à terra, ao céu, ao mar, ao rio:
- "Ó mãe, eu já sei tudo!"
No seu olhar tranquilo de veludo,
no seu olhar profundo,
que era todo o meu mundo,
passou uma ironia tão velada,
uma ironia
tão funda, tão calada,
que ainda hoje murmuro cada dia:
"-Ó mãe, eu não sei nada!..."

de Fernanda de Castro in Trinta e nove poemas (1941)


M. F. Ferreira

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