quinta-feira, 1 de agosto de 2013

As maleitas da infância

Tu e as tuas irmãs tivestes sarampo ao mesmo tempo. Metidos na cama, cheios de febre e eu sem saber para onde me virar, a levar-vos o comer, a tentar baixar a febre aos mais abrasados e a lavar as roupas da cama. Estáveis todos na cama do quarto escuro, com a porta para a sala, uns deitados para a cabeça e outros para os pés.
Depois melhorastes, mas as tuas irmãs mais novas apanharam logo tosse convulsa. Iam morrendo, sempre a tossir, com aqueles uivos que faziam impressão. Tinha de levar as duas ao hospital, todos os dias, para apanharem uma injeção de um remédio que era feito da resina.
Um dia vinha pela rua acima, com a mais pequena ao colo e a outra a chorar atrás de mim. Ela era só a pelinha e o osso, com a cara inchada e os olhos raiados de sangue, sem forças para andar. Quando passámos, no Cimo de Vila, em frente à casa do tio Miguel Jerónimo, estava lá a ti Jú à janela e perguntou-me porque é que a menina ia a chorar. Eu respondi que ela queria colo. Então a ti Jú desceu as escadas, pegou-lhe ao colo e foi-me levá-la à Tapada. Subimos pela quelha e, quando chegámos à casa velha, já lá vinha a ti Stela que não tinha podido ir comigo, mas que me vinha ajudar. Tirou-me a tua irmã do colo e levou-a o resto do caminho. “Agora a senhora vai sem nada e nós aqui carregadas”, brincou a ti Jú, que era muito reinadia. Mas eu pensei só para mim: “Estás enganada, eu já vou a carregar com outra.” Mas calei-me, porque nesse tempo não se falava da gravidez e tínhamos vergonha, pois as outras diziam logo que a gente é que tinha culpa de engravidar.
Lembras-te de ir casa do teu avô, na Oriana, a buscar folhas da figueira dos figos de picos que havia junto à estrada? Cortámos as folhas ao meio, metemos lá dentro açúcar e depois eu cosi as duas partes, com agulha e linha. Corria delas um líquido pegajoso que dávamos a beber às tuas irmãs. E foste aos pinheiros colher os rebentos da medrança. Depois eram fervidos, para desinfetar a casa. E a mesma coisa com a rama de eucalipto.
Quando elas ficaram boas, a mais velha voltou à escola, mas chegou a casa e deitou-se na cama, de barriga para baixo, sem falar. Agarrei nela ao colo e fui a casa do médico. Ele receitou-lhe umas injeções. Mas eu não tinha forças para andar com ela ao colo, para cima e para baixo, e por isso pedi ao ti António que ma deixasse ficar na casa dele, para o Zé Craveiro lá ir a dar-lhe as injeções. Mas arrependi-me, porque o teu tio chegava a casa para almoçar e, ao vê-la naquele estado, só lhe dava para chorar e não comia.
Só mais tarde é que tivemos papeira, contei eu. A Celeste era a nossa enfermeira e um dia levou-nos às castanhas, nos Carqueijais. Havia um castanheiro lá no alto, perto do caminho, que dava umas castanhas mais grossas. Cortámos caminho por baixo da figueira pingo de mel e depois seguimos a corta-mato até ao caminho. Lembro-me de ir nos eucaliptos do Padre Tomás e sentir as minhas bochechas pesadas a abanar. Mais à frente, no pinhal, ouvimos barulho de alguém e corremos a esconder-nos, deitados ao comprido, no rego da regadia das Lameiras. Era o senhor Bernardino com o burro, que vinha da Barroca. Debaixo do castanheiro achámos poucas castanhas, mas deu uma para cada um e voltámos contentes para casa.

José Teodoro Prata

Um comentário:

Anônimo disse...

Reportando-me apenas às duas últimas histórias que publicaste sobre acontecimentos da tua infância (a atual e A magia da cidade), penso que, para além de outros aspetos interessantes, elas ilustram bem a importância do papel da mulher/mãe em todos os momentos da vida dos filhos, principalmente durante a infância. De facto, desde o suportar a vergonha solitária de mais uma gravidez, a inquietação por todas as maleitas a que os filhos estavam expostos e a responsabilidade pelo sucesso no exame da quarta classe, as nossas mães estavam sempre presentes nos momentos mais importantes das nossas vidas e, apesar das dificuldades de toda a ordem, sempre com o coração cheio de amor.
Vida difícil, a das mulheres daquele tempo, principalmente porque, para além da responsabilidade pela criação dos filhos, elas tinham ainda que ajudar o marido no sustento da família.
Entretanto muitas coisas mudaram (acho que nem todas para melhor…), mas permitiram um desempenho mais equilibrado dos papéis do homem e da mulher na família e isso trouxe ganhos para todos, principalmente para as crianças.
M. L. Ferreira