domingo, 10 de novembro de 2013

Almas Penadas II

 Quem conta um conto…

A propósito das Almas Penadas, fiquei de ir confirmar a existência das duas cruzes a que a história publicada em junho faz referência.
Um dia destes meti-me ao caminho e, um pouco à frente dos Pereiros, lá estava a primeira.
                     
Logo a seguir à Partida, encontrei a outra.


As cruzes são muito semelhantes. Numa vê-se a data de 1955 e as iniciais F M; na outra, que parece ter sido alterada posteriormente, está escrito o nome F. Martins. Será o nome de quem as fez ou mandou fazer.

Continuei pela estrada adiante e, pouco depois, avistei o Vale de Figueiras, uma  espécie de presépio que, atravessado pelo ribeiro, trepa encosta acima.
Atravessei a ponte para o lado de lá, dei uma volta pelas ruas e não avistei vivalma: um presépio sem figuras…
Tive mais sorte do lado de cá, junto à capela, onde encontrei a Ti Maria dos Anjos, uma mulher simpática, faladora, e que foi provavelmente a última tecedeira da freguesia. Ficámos um bom bocado à conversa. Ela a falar dos tempos passados, as casas cheias de gente, a terra a retribuir tudo o que lhe davam; quatro teares em casa, todos a tecer, uma alegria!... Agora, só maleitas, dela e da família; as terras, sem gente que as trate; as ruas sem crianças (a pessoa mais nova tem vinte anos…). «É quase já só velhos…» concluiu, com alguma tristeza. Eu, alimentando a conversa como podia, mas sobretudo ouvindo.
Às tantas, como quem não quer a coisa, disse-lhe que tinha visto uma cruz na estrada, se ela sabia porque é que a tinham ali posto. Respondeu prontamente:
 - Sabe? Nós aqui na terra nunca tivemos cemitério e quando alguém morria tínhamos que o ir enterrar na Partida. Como também não tínhamos a estrada arranjada para cá virem os carros funerários, como agora já temos, o povo ia a pé e o caixão, eram os homens que o carregavam aos ombros; e era ao pé daquela cruz que parávamos para descansar e rezar. Depois continuávamos pelo cabeço acima, até ao cemitério.
 - Devia ser difícil, porque ainda é longe e o caminho quase sempre a subir…
 - Sabe lá! … E no inverno, com a chuva e o frio? A melhor coisa que nos fizeram, foi esta estrada… Graças a Deus!
E logo a seguir, como que a contar um segredo, acrescentou:
- Mas sabe? Também contam uma história sobre aquela cruz e mais uma que está já a caminho dos Pereiros e outra na Partida.
  Fiz-me de nova e pedi que me contasse a história.
- Diz que há muitos anos, havia uma mulher na Partida (ela era daqui, mas tinha lá casado) que ficou viúva muito cedo e já com um rebanho de filhos. Uns tempos depois do homem morrer, começou a aparecer-lhe como se fosse uma luz e a mulher já andava a ficar com medo. Um dia ouviu uma voz que lhe disse que era o homem dela e vinha a pedir-lhe que mandasse fazer duas cruzes que tinha prometido antes de morrer, mas como não tinha cumprido a promessa, ainda andava por aí, feito alma penada. A mulher prometeu que sim, que mandava fazer as ditas cruzes; mas as posses não eram muitas e também morreu sem cumprir o prometido. Então, já depois de morta, começou a aparecer ao filho. Para onde quer que ele fosse, lá estava ela. Ficava parada, a olhar para ele, mas sempre muda. O rapaz já andava a ficar desacorçoado e sem saber o que fazer à vida. Um dia, já ao cair da noite, chegou a casa e lá estava a mãe, vestida tal e qual como andava antes de morrer: toda de preto, embrulhada no xaile, com o lenço amarrado à cabeça, sentada no banquinho onde se costumava sentar em vida, ao canto do borralho. O rapaz ficou todo arrepiado, mas a mãe olhou para ele e disse-lhe assim: «Olha, meu filho, bem sei que andas com medo, mas está descansado que não te quero fazer mal. Só te quero pedir que me faças um favor». «Então e qual é o favor que vossemecê quer de mim, minha mãe?». «Olha, filho, depois do teu pai morrer, apareceu-me a pedir que mandasse fazer duas cruzes porque se não, não podia ir para o céu. Eu disse-lhe que sim, mas como os tempos eram ruins e o que tinha mal dava para matar a fome a ti e aos teus irmãos, não pude cumprir o prometido. Por causa disso ainda andamos os dois por aí, feitas almas penadas. Queria que mandasses tu fazer as cruzes, para podermos ter sossego». «Então e aonde é que vossemecê quer que se ponham as cruzes?» «Olha, meu filho, mandas pôr uma a caminho da Partida para o Vale da Figueira que era a minha terra, e a outra da Partida para os Pereiros, que foi aonde o teu pai nasceu. Mas queria que mandasses fazer também uma no alto da Partida, que foi onde nasceste tu e os teus irmãos». O rapaz disse que sim, que cumpria o prometido logo que pudesse. E assim fez. Como também era pobre, ainda teve que pedir umas notas emprestadas a um vizinho, mas logo que pôde, falou a um homem lá da terra e encomendou-lhe as cruzes, todas em pedra de cantaria. Diz-se que enquanto andou a fazer o trabalho, por cima dele andaram sempre duas borboletas brancas a voar. Depois da obra acabada, viram-se as borboletas a subir, devagarinho, direitinhas ao céu…

Nota: Quando regressei do Vale de Figueiras e passei pela Partida com intenção de confirmar a existência da terceira cruz, já era quase noite, por isso nem tentei procurá-la. É um bom pretexto para lá voltar um dia destes. Por aquilo que vi e ouvi, vale a pena…

M. L. Ferreira

3 comentários:

Anônimo disse...

Sem dúvida, uma bela narração das almas do purgatório. Parabéns pelo post.

Carlos Domingues

José Teodoro Prata disse...

Em 1779, na Partida, vivia um pedreiro chamado Joze Martins. Também era agricultor e trazia arrendada a propriedade pública (gerida pela Câmara) da Ribeirinha.
O seu filho, também pedreiro, veio casar aos Pereiros.
Só falta a ligação ao Vale de Figueiras!
Pode ser e pode não ser nada...

Anônimo disse...

Isto é que é saboroso! Ir às raízes da (rica) cultura popular e trazer à luz do dia as histórias que povoavam o saber fantástico do coletivo! Ouvi-las dos mais velhos que, com certeza, já as terão ouvido de outros, é ainda mais aliciante!
O mundo desconhecido do além, perante o qual esbarram todas as doutrinas de qualquer 'cientismo', talvez comprove que pouco nos distingue das populações das tribos mais remotas do Pacífico. Basta pensarmos na centelha de luz de humanidade que nos é comum. Porque, afinal, é o mesmo o nosso destino e idênticas as nossas preocupações.
É comum ouvirem-se histórias de almas penadas por falta de cumprimento de promessas. Neste caso era a edificação das cruzes, mas podia ser outra promessa. A razão não interessa. Cada uma terá os seus ingredientes próprios que a tornam singular. Mais importante, é o que vai na mente e no coração humano, dada a sua fragilidade perante a certeza da morte e a incerteza do desconhecido.
Interessante era que estas histórias fossem sendo recolhidas, passassem a escrito e fossem publicadas no blogue ou noutros meios de divulgação por quem tem jeito.
Como muito bem aqui fez a Libânia.
Porque, não basta apenas narrar os factos, se de factos aqui podemos falar, já que não se sabe onde acaba o real e começa o mito. É preciso saber criar a ambiência onde eles decorrem.
Zé Barroso