segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Histórias de mulheres tristes

Era no tempo em que se vendia a alma ao diabo por uma leira de terra. Há até quem se lembre ainda de, por causa duns marcos, dois vizinhos se terem matado ou, por uma passagem, irmãos passarem a vida desavindos. Não admirava, por isso, que se arranjassem casamentos entre parentes chegados, mesmo temendo que lhes nascessem os filhos poucochinhos do juízo. Bastava uma dispensa canónica ou, quantas vezes, que se levasse ao padre uma galinha das mais gordas. Não admirava também ver homens velhos a casar com mulheres que podiam ser filhas, ou ao lado de mulheres que mais pareciam as próprias mães. Tudo para não partirem as terras herdadas dos pais, ou aquelas de que, por artes e manhas, se assenhoravam, chamando suas às que sempre tinham sido do povo.   
Por essa altura chegou à Vila um mancebo, pouca barba ainda, mas já com modos de senhor. Vinha montado numa égua branca, luzidia, e seguiu direito à casa do Pároco, onde se hospedou. O povo, pouco avezado a grandes generosidades clericais, estranhou. Não havia casa nem taberna em que não se comentasse o caso e fizessem suposições: Seria algum fidalgo fugido à justiça de Lisboa? Um irmão, nascido fora de tempo? Algum filho encoberto, como havia tantos? Que ele lhe dava parecenças, lá isso dava, pelo menos nos modos. O mistério não durou muitos dias porque a criada, sempre à escuta atrás das portas e amiga de levar e trazer, depressa esclareceu o mistério: o menino era parente chegado do senhor vigário e tinha vindo para se casar com a Dona Maria José.
A Dona Maria José era uma senhora respeitável, também aparentada com padres. Viera de fora, já mulher feita, para se casar com um dos grandes proprietários da Vila, com idade para ser pai dela. O casamento não durou muito porque ele entregou a alma ao Criador ao fim de poucos anos de casados. Talvez por isso, e apesar de se dizer que “Homem velho e mulher nova, filhos até à cova”, o ditado não se cumpriu. Num tempo em que os pobres tinham ninhadas tão grandes, era um mistério gente tão rica não ter ao menos um filho, com tanta terra para lhe deixar. Parecia castigo de Deus.
Dona Maria José já passara há muito dos quarenta, mas na Vila ninguém estranhou a notícia daquele noivado. Viúva, sem filhos, precisava de quem a ajudasse a tomar conta das fazendas, dos rebanhos, das juntas de bois e dos lagares que herdara do marido enterrado há pouco tempo. Poderia era ter escolhido homem com outra idade, mas já diziam as más-línguas que teria ali andado a mão do confessor, que ela levava tão a peito que nem a de Deus Nosso Senhor.
Feito o casamento, o morgado meteu mãos à obra e, não tardou, mostrou que trazia a lição bem aprendida da casa paterna, também senhora de grandes teres espalhados entre a Estrela, o Açor e a Gardunha. E o que não sabia, depressa aprendeu com os outros proprietários da Vila, que, receosos que viesse criar maus costumes aos que, todos os dias, mendigavam por uma jorna, lhe foram enchendo os ouvidos de bons conselhos. Logo pela manhã atravessava a Praça a cavalo, todo empertigado na cela, agarrado às rédeas como se fosse o imperador romano de quem usava também o nome. E ai de quem não tirasse o chapéu e curvasse a cabeça à sua passagem: era certo e sabido que não tornava a ganhar uma jorna nas terras que eram dele.
Pareciam entender-se bem, Dona Maria José e o morgado. Já diz o povo, “ Casal unido, mulher mais velha que o marido”. Enquanto ele andava por lá a dar volta às terras e a inteirar-se dos alqueires de cereais, dos almudes de vinho ou da fundição da azeitona, ela ficava em casa, a dar ordens às criadas. Tinha uma de dentro, já antiga, que era quem punha e dispunha em quase tudo o que houvesse para decidir; a outra, mais nova, era quase só para os recados, ir à fonte, esfregar o chão e arear os tachos. Também era ela que tratava da criação miúda, nas capoeiras do quintal.
Durante a semana Dona Maria José só saía para ir à missa da manhã e, de caminho, aproveitava para mudar a água e compor as flores do altar do santo da sua devoção. Se alguma coisa lhe roía a consciência ou atormentava a alma, passava pela sacristia e pedia para ser ouvida em confissão ou apenas desabafar. Tinha um dia certo para dar esmola aos pobres que se acotovelavam à porta das traseiras todas as primeiras sextas-feiras do mês. A troco de um padre-nosso pelas almas de quem lá tinha, dava uma malga de azeitonas, uma fatia de pão ou uma medida de azeite velho, que o novo era para os gastos de casa, para a igreja, e para vender ou dar a quem bem entendiam. Dizia-se que todos os anos mandavam cinco almudes para as Necessidades, mas depois que mataram o rei (e amigo que ele era do povo, que ainda por aqui passou mais que uma vez, quando vinha à caça) e os republicanos tomaram conta do poder, nunca mais; que não estavam para alimentar aquela corja de assassinos e ladrões, que era o que eles eram.  
Também era a dona Maria José que ensinava o catecismo às crianças para a Primeira Comunhão; tinha até uma sala, com oratório e tudo, de propósito para a doutrina e para fazer as suas orações antes de ir para a cama. Pelo menos um rosário à Nossa Senhora para agradecer as graças e pedir perdão pelas próprias faltas e pelos pecados do marido, que sabia serem muitos; alguns por culpa dela, a quem o tempo ia esmorecendo os atrativos de mulher e diminuindo as possibilidades de lhe dar ao menos um filho. Era por isso que, sabendo o que sabia (e não sabia da missa a metade…), fechava os olhos; às vezes, com a bênção do confessor, até lhe facilitava os tresmalhos.
Aos domingos o casal saía de casa juntos para irem à missa do meio dia. Ela tinha uma cadeira com genuflexório almofadado a veludo, mesmo à frente, junto das senhoras mais virtuosas da Vila, que não gostavam de se misturar com o povo; ele ficava nos bancos ao lado do altar-mor, onde só tinha lugar a fina-flor dos machos da terra. Depois da missa, Dona Maria José ia a correr para casa a ver se estava tudo em ordem para receber o senhor Vigário, convidado habitual para o almoço de domingo. Ele ficava a saber das novidades, na Praça, enquanto o padre se desparamentava. A seguir ao almoço, geralmente canja e galinha com arroz tostado ou cabrito assado no forno com batatas coradas (a sobremesa era quase sempre arroz doce, que o padre pelava-se pelo arroz doce da criada), Dona Maria José retirava-se para a sua sesta ou ficava a dormitar no canapé da sala. Os homens ficavam a jogar às cartas, mordiscando biscoitos e a provar os licores caseiros, do melhor que já lhes tinha passado pela goela.
Era nestas alturas, quando ficavam a sós depois do almoço, e já com a língua mais solta, que o pároco e o parente faziam um ao outro as confidências mais íntimas, quase sempre relativas à quebra dos votos eclesiásticos ou matrimoniais. E teriam muito que contar, que, do padre, constavam-se belas coisas! Do morgado, sabia-se bem que nem todas as crianças que apadrinhava, eram só afilhadas; bastava olhar-lhes para as caras, mesmo encardidas, para encontrar parecenças. 
Foi numa destas tardes de domingo que o assunto veio à baila: Tratava-se da filha mais velha do pastor das cabras, já antigo na casa. Por acaso até afilhada de Dona Maria José, ainda do tempo do defunto marido. Andaria aí dos quinze para os dezasseis, pouco mais ou menos, e já há muito que andava de olho nela, se a via nas mondas, curvada sobre o milho ou o trigo, nas vindimas ou na apanha da azeitona, nas terras que eram dele. Cachopa desenxovalhada, com os olhos sempre a rir; a cantar, nem um lírio:

Loureiro verde loureiro
Loureiro assim, assim
Enganaste uma donzela
Casa com ela, ó Joaquim.

Casar com ela não caso
Que ela de mim não faz conta
Loureiro verde loureiro
Seco no meio verde na ponta.

Era tão despachada para o trabalho que até parecia que tinha quatro braços, em vez de dois. Já tinha até falado à mulher que a metesse de criada, mas ela não tinha querido, que não precisava. Poderia o vigário dar-lhe uma palavrinha? O vigário demorou um pouco a responder, que a rapariga era filha de gente honesta, mas como uma mão lava a outra, lá se resolveu: «Deixa estar, que vou ver…». E a verdade é que, passado pouco tempo, a rapariga largou o trabalho no campo e passou a criada de servir. Sempre era melhor do que andar à torreira do sol, de verão, ou debaixo de água todo o dia, no inverno.
Não tardou muito, um dia, já à boca da noite, chegou a casa debulhada em lágrimas. Por mais que a mãe lhe perguntasse as razões de tanto pranto, ela não as disse. Só que não tornava para casa da madrinha; antes morta. Não foi difícil à mãe descortinar o que se andaria a passar, mas, acomodada ao domínio dos ricos sobre os pobres como se o destino dela tivesse que se perpetuar no destino dos filhos (sempre assim fora), sabe Deus com que mágoa, não encontrou outros argumentos: «Tens que voltar, filha. Se te vieres embora eles põem o teu pai também na rua, e o que é que vai ser de nós, que mais ninguém lhe torna a dar trabalho? Com os teus irmãos ainda tão pequenos, só se formos todos estender a mão à caridade». E a rapariga voltou, mas a partir daquele dia nunca mais se lhe viu um sorriso na cara. Não tardou, começou a ver-se-lhe a barriga a medrar. Era um menino, mas dizem que morreu ao nascer. A mãe, quase uma criança ainda, ia morrendo também, de tristeza.
Passados alguns anos encontrou um homem bom que quis casar com ela. Tiveram muitos filhos, e depois muitos netos e bisnetos, mas as lembranças daqueles tempos, tão cheios de penas, apagaram para sempre o brilho dos seus olhos. 
É assim que me lembro dela. 


M. L. Ferreira

3 comentários:

José Barroso disse...

Uma bela história e, como sempre (isso já não é novidade!), muito bem escrita! Desta vez com recurso, muito a propósito, a alguns provérbios populares. Depois, uma agudeza de olhar em certos pormenores; como, por exemplo, aqueles, após o suculento manjar, em que a dona da casa adormece no canapé enquanto os homens ficam a jogar às cartas, debicando biscoitos e bebericando licores...!
Mas, claro, para além disso, temos a questão de fundo que era a situação das classes sociais, com o reflexo que isso tinha nas suas vidas concretas. Por esta simples mas significativa história (que penso que é verdadeira), se compreende o mundo das pessoas! E dessa gente do poder que, deitando mão às armas que tinha na escala social, extirpava e desumanizava totalmente a alma daqueles que apenas queria ser pessoas com dignidade. E se soubermos, como de facto sabemos, que isto era a regra e não a excepção, ainda mais se nos acirra o ânimo perante tanta safadeza. Para mais, quando, à época, tudo era acolitado pelo poder da hierarquia da Igreja.
Ainda conheci alguma dessa gente que queria que nos levantássemos se estivéssemos sentados (ou que os homens tirassem o chapéu) quando passava, só porque eram ... ricos!
Bem sei que em qualquer sociedade, onde haja escalas sociais (e isso haverá sempre), estas coisas podem acontecer, quer, pois, nas formas de governo com república, quer com monarquia. Mas, seguramente, que é nas democracias modernas que desenvolvem uma classe média forte, baseada na lei, que estas histórias têm tendência a desaparecer, pelo menos com contornos como estes.
Por isso, já aqui tenho manifestado a repugnância que nutro pela forma de governo das monarquias; não que nas monarquias modernas estas coisas se passem da mesma forma. Até porque, valha-nos isso, nessas democracias, o rei e os nobres já não mandam nada! A própria queda da monarquia (portuguesa) teve lugar na época em que teve lugar esta história; mas era nela que a sociedade ainda tinha a suas raízes. Vejamos: na verdade, é ainda nas monarquias de hoje que se vê a desigualdade formal (legal, ostensiva e pretendida) entre os cidadãos como pessoas! Alguém por acaso descortina por que carga de água se diz (por exemplo) que os ingleses são "súbditos de sua majestade" ? Mais: com efeito, e, embora tal realidade seja mais simbólica do que concreta, continuamos a ver nascer crianças nessas monarquias que recebem, assim que são paridas, um título de conde ou de marquês! Pessoalmente, não conheço coisa mais aberrante que isto!
Abraço, hã.
JB

José Teodoro Prata disse...

Pois...
Tempos difíceis para se ser pessoa, os do passado recente e também do longínquo.
Felizmente, um abismo separa esses tempos do oásis que é hoje a Europa.

José Teodoro Prata disse...

Ando a ler um livro sobre Roma (SPQR - Uma História de Roma Antiga) onde aprendi que o que se passava com as crianças frágeis, doentes e deficientes, em Esparta (estes recém-nascidos eram abandonados, atirando-os de um penhasco), era ultrapassado em Roma: um bebé acabado de nascer só era considerado uma pessoa após a família decidir se ficava com ele. Em caso negativo, os bebés, sobretudo meninas, eram deixados nas lixeiras, sendo uma abundante fonte de recrutamento de escravos (pessoas apanhavam-nos, criavam-nos e depois vendiam-nos ou ficavam com eles como escravos).
Alguns expostos das nossas casas da roda não tiveram muita melhor sorte, embora alguns tenham sido criados por famílias carinhosas que lhes permitiram uma vida feliz.