domingo, 5 de agosto de 2012

Água milagreira

Ontem, passei o dia com a família, na Senhora da Orada.
Estive com a prima Celeste de Alcongosta, filha do ti Joaquim Teodoro, que me confirmou o que este e o meu pai já me tinham contado: a fonte antiga era nas atuais traseiras da capela (há referências antigas à fonte frente à porta da capela, pelo que talvez na Idade Média a porta estivesse virada para nascente e não para o poente, como hoje).
À tardinha, muitos foram os que regressaram a casa com os tradicionais garrafões de água da fonte da ermida.


Curiosamente, hoje, o José Miguel Teodoro enviou-me um artigo do jornal A Batalha, de 21 de fevereiro de 1926.
Meses mais tarde, terminaria a I República, com o golpe militar de 28 de maio, que instituiu uma Ditadura Militar, seguida da ditadura do Estado Novo. Estes anos da I República foram marcados por uma intensa polémica religiosa, com posições extremas de ambos os lados.
O artigo refere o regresso clandestino dos jesuítas a Portugal, de onde tinham sido expulsos em 1910, e indica as povoações mais dominadas pelo fanatismo religioso (Alpedrinha, Fundão e São Vicente da Beira). Demora-se particularmente na nossa terra:

«Nesta última vila as supertições religiosas estão fortemente enraizadas. Existe até, nela, uma água que é considerada milagrosa: - a água da Senhora da Ourada que até tem restituído a vista a cegos... Em Fátima chegaram a ser comentados estes fantásticos milagres, aventando-se a hipótese de que a água da Senhora da Ourada viesse a fazer concorrência à outra. Essa água da Senhora da Ourada tem ainda outra particularidade milagrosa: faz crescer o cabelo às raparigas que lhe façam rezas em vésperas de São João ao bater da fatídica e clássica meia noite. Em São Vicente da Beira há a imagem de São Anselmo que é um santo preto: serve para os pais amedrontarem seus filhos, batendo-lhes com as cabecitas nos pés da imagem.
Numa terra imbuída destas supertições, onde a alegria foi banida e as próprias raparigas são lúgubres, fácil foi a penetração dos jesuítas.
Inimigos fidagais de todos os sentimentos humanos são insensíveis a todas as dores: sacrificam tudo e todos aos seus planos. De São Vicente da Beira saíu para Espanha, levado por eles, um rapaz de 20 anos que era o único amparo de seus velhos pais, condenado-os assim à miséria. Este seu gesto foi tão indigno que até os mais fanáticos o desaprovaram.
A Beira Baixa está infestada destas aves de rapina: missões de jesuítas percorrem-na constantemente realizando, com frequência, retiros espirituais.»

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O nosso falar: torta

Usamos a palavra torta com três significados:
1. Uma vara ou uma linha que não está direita, em linha reta.
2. Uma pessoa que se recusa a fazer o que os outros querem que faça. Neste caso, a pessoa até é direita, pois segue as suas convições sem se desviar delas, por desejo dos outros. Estes é que a querem torta, isto é, maleável às suas vontades.
3. Torta é o mesmo que omelete, um prato da nossa culinária feito com ovos (batidos), erva aromática (salsa ou coentros), leite/queijo e pequenos pedaços de carne de qualquer tipo. Frita-se a mistura até ganhar consistência. O computador informa-me que teve origem na Pérsia (Irão). O termo omelete veio-nos da França e é sobretudo esta palavra que hoje usamos. Torta é a mesma coisa, mas usamo-la por influência espanhola (torta, tortilha), devido à nossa proximidade territorial. Já é pouco usada, empregando-se sobretudo na doçaria, mas sem ser o mesmo que omelete.
(4.) Uma valente bebedeira também pede o uso da palavra torta. O bêbado avança curvado e aos ziguezagues. Tudo nele é torto, até o falar. "Vai com uma torta!"

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

(Re)Conquista

O jornal Reconquista inicia hoje a publicação de uma série de artigos meus sobre o foral manuelino de São Vicente, a pretexto do seu 5.º centenário (1512-2012).
Serão publicados entre 4 e 6 artigos, incidindo sobre o foral em si, mas principalmente sobre o concelho de S.  Vicente da Beira, nos séculos XV e XVI, a época do foral.
A periodicidade da publicação dos artigos poderá ser semanal ou quinzenal.

terça-feira, 31 de julho de 2012

National Geographic

A Revista NATIONAL GEOGRAPHIC PORTUGAL, Agosto de 2012, traz um longo artigo sobre o GEOPARK NATURTEJO, com Mapa Suplemento sobre o mesmo tema.
São Vicente colocou-se/está à margem deste grande projeto patrocionado pela UNESCO, apesar de na nossa freguesia se situar parte de um dos 16 geomonumentos do GEOPARK, as Morfologias Graníticas da Gardunha. Mesmo assim, é sempre bom um acontecimento destes.
As fotos da reportagem são do nosso conterrâneo Pedro Martins, cujos pais são originários do Vale de Figueiras.


Soube recentemente que, na noite de São João, a Associação Solstício (Soalheira) organizou uma caminhada noturna entre o Casal da Serra e o Castelo Velho.
O velho castro foi palco de um concerto musical, dando mais magia ao momento do nascer do sol.

domingo, 29 de julho de 2012

O nosso falar: arrufar

Todos os dicionários, on-line ou em papel, por mim consultados, apresentam arrufar como uma pequena zanga entre pessoas, um amuo, uma irritação.
Mas nós não usamos a palavra com esse sentido. Quem arrufa é o leite, fervido depois de ordenhado das tetas das vacas e das cabras, para matar as bactérias. Ferve-se o leite, mas espera-se pelo início da fervura, pois aumenta tão rapidamente de volume que sairá toda da vasilha se não baixarmos imediatamente o fogo. Arrufa.
Também se aplica para a sopa e outras cozeduras, mas o termo está em desuso, por menor prática da arte culinária e pela utlização de nova maquinaria (consumo de leite empacotado, utilização do microondas...).
Ficou famosa a atitude do nosso Fernando, deixado pela mãe a guardar o leite que cozia no fogão. Quando a mãe voltou, encontrou-o sentado à porta de cacete na mão, garantindo que o leite não fugira por ali. Não saíra pela porta, mas já transbordara pelos bordos do fervedor, arrufara.

Mas existe uma relação entre os arrufos das pessoas e o arrufo do leite: ambos fervem em pouca água, ultrapassam os limites, transbordam.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Sei um ninho



Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
a voar .

Miguel Torga


Achei um ninho com três ovos verdes pintalgados de preto.
Uma semana depois já tinha três passarinhos cobertos de penugem.
Voltei lá ontem, armado em fotógrafo, mas eles tinham partido. É esse o encanto da natureza: funciona à margem da vontade dos homens. (Espero que não tenham sido comidos pela cobra que há tempos deixei seguir em paz, na esperança de que comesse os ratos que, no verão, roem a casca das raízes das árvores, secando-as)
No mesmo dia em que achei o ninho, a natureza brindou-me ainda com um outro encontro maravilhoso. Ao passar de carro no entroncamento da estrada de alcatrão com a estrada romana, junto à Fábrica, avistei ao longe uma fila estranha e abrandei até quase parar. Era uma perdiz com a sua ninhada de 8 perdigotos, um ao lado da mãe e os restantes em fila indiana atrás dela. Atravessaram a estrada em paz e depois subiram para o pinhal.
Há dias assim, plenos de vida harmoniosa!



quarta-feira, 11 de julho de 2012

A avó Rita

Francisco Barroso

A minha avó Rita foi a maior avó do mundo. Na verdade, todas as avós, quando gostamos delas a sério são as maiores avós do mundo. Mas a minha avó, a Ti Rita, principalmente para o pessoal do Cimo de Vila, que com ela privou mais de perto e foi cúmplice das suas famosas arruadas, pelo S. João ou pelo Carnaval concordarão comigo: era um ser excepcional.

Aqueles que foram marcados pela história ganharam com isso a imortalidade, mas os que não o foram só morrem verdadeiramente quando caem no esquecimento total da memória dos que ficaram. Por isso, decidi hoje prolongar um pouco mais a sua vida, lembrando-a e dando-a aqui a conhecer aos mais novos.

A minha avó era uma mulher radiante. Irradiava alegria e contagiava os outros com ela. Não tinha razões visíveis para isso, mas o seu coração era transbordante. Órfã aos sete anos. Casada ainda nova com o Ti Augusto (manha), que era um bom homem, muito trabalhador, mas pouco dado a folguedos e que, apesar de aparentar uma fé inabalável, andava sempre: ai que eu morro, ai que eu morro.

Era o raio da hérnia a dar-lhe guerra e a imagem que nos ficou foi a de um homem sofredor agarrado ao seu bordão, que era a bengala dos homens simples do campo, atrás da burrita a caminho dos Aldeões.

 No entanto, na rudeza que era a vida dos pobres a trabalhar nos campos, horas sem fim, dia após dia, até lhe restarem apenas algumas forças, nunca a avó Rita se entregava a desânimos ou tristezas.

É nos tempos doces de primavera, no tempo das ginjas, por alturas do S. João, que mais me acode à memória, alta e magrinha. Já perto dos 70, ainda metia os pés a caminho da Serra muito antes do sol aparecer a oriente, para ir apanhar as ginjas que do cimo do Pelourinho deitaria à rabatinha na noite de S. João, depois de saltar as fogueiras na sua arruada pela Vila tocando o adufe, cercada de jovens e adultos todos euforicamente a cantar.

Pelo Carnaval, outra altura de folguedos, disfarçava-se de Entrudo. Vestia um dos seus saiotes à burra, montava-se nela e lá ia a dar uma volta pela Vila com a trupe atrás, em grande algazarra. E pelas festas de Verão não faltava nunca no arraial, pois que não lhe perdoariam a desfeita.

Como é que ela conseguia honrar sempre os seus compromissos nestes festejos, com o Augusto que não alinhava em nada destas paródias? Com arte e com manha ou não fora esta a alcunha da família, pois quem não tem arte nem manha, morre no ar como uma aranha, alegam os manhas em sua defesa.

O que acontecia, na verdade, é que nesses dias ela estragava o seu homem com mimos. Fazia-lhe um bom jantar, servia-lhe mais uns copitos que o habitual e depois de confortado o corpo dizia-lhe: anda Augusto, vamos mas é para a cama que amanhã é preciso levantar cedo. O meu avô, com a barriguinha cheia de batatas (era doido por batatas) e duma talhadinha de chouriça, farinheira ou toucinho entremeado, lá ia todo contente atrás dela. Lá fora, a expectativa aumentava, quando sentiam que a luz se apagara e não se ouvia qualquer ruído vindo de dentro. Será que o Ti Augusto vai adormecer depressa?

Mas a verdade não foi nunca desvendada. Não se sabe se por obra dos copitos a mais ou por obra de uns beijinhos mais carinhosos, a realidade é que o processo se mostrou sempre infalível.

 E a alegria que surgia nos rostos ansiosos que a esperavam em silêncio à porta, quando ela assomava à janela e lhes dizia baixinho: já ressona. E em menos de cinco minutos lá vinha vestida a preceito com o adufe na mão. A paródia ia começar. Já havia mestra.

A Ti Rita era muito vaidosa e tinha sempre uns vestidos muito alegres (a condizer com ela), de tecidos que por vezes as amigas de Lisboa lhe levavam, para lhe agradecer os mimos de umas frutas, um litro de azeite ou até de uma morcela de cozer, quando lá iam passar as férias de verão.

E assim se criou um ícon da tradição popular, sem castings, sem formação, só com a alegria do seu coração e a sua enorme capacidade de a partilhar.

O meu avô, não creio que não tivesse vindo a saber destas actuações deveras famosas. Como homem sábio que era, deve ter achado o que o Passos Coelho achou da miraculosa licenciatura do dr. Relvas: um não assunto.

Digam lá sinceramente, a minha avó Rita não era um espectáculo? Espero que ela fique contente com as memórias que nos deixou, quando souber desta crónica lá no Céu.

Adeus Avó Rita.

Do teu neto Francisco Barroso que também dá por Chico manha


A avó Rita com a sua bisneta Margarida