sábado, 17 de agosto de 2013

O RENEGADO I

A invernia nas faldas da Gardunha, naquele ano, como de costume, era das antigas. E aquele dia não era diferente dos demais. O céu estava carregadíssimo de nuvens negras.

Anoitecera, tinham dado as cinco da tarde no relógio velhinho da torre. pouco se enxergava.   

Chovia água, se Deus a dava!

O forte temporal que se abateu sobre o povoado enregelava os corpos e o vento soprava, assanhado, fazendo remoinho nos telhados, levantando a telha mourisca de algumas casas que metiam água como se fora a Fonte Velha, cuja nascente, mesmo diminuindo um pouco, não falece, nem nos anos de maior seca.

Havia necessidade de consertar os algerozes por fora, durante o dia, mesmo debaixo de chuva ou tirar as tchincas das telhas, por dentro, pelo forro, às apalpadelas, com a candeia de azeite, de luz a tremelicar. Porque, no verão, o Ti’ Manel Ubre se encarregaria de correr o telhado, preparando-o para o inverno seguinte.  

A chuva enchera ribeiros e regatos. Vinha tocada a vento!  

Um homem acobertado atrás do casacão de surrobeco, mesmo que levasse por cima um guarda-chuva largo, de pastor, de pano grosso e ainda que vestisse safões de pele de cabra e polainas, não evitava que a água lhe entrasse pela véstia.

A termo de se ver tão abundantemente ensopado nos bragais mais chegados ao corpo, que começava a sentir aquela impressão desagradável da roupa molhada pegada ao pelo. Uma caminhada pela serra por mor de compromissos de negócio ou jornada no campo e era certo e sabido que se ficava alagado até aos fundilhos!  

«Nossa Senhora! Tanta água! Estava tentada a dizer que isto aqui na Tapada é o inferno, se não rezassem os Santos Livros que o inferno é de fogo! Credo! Está uma noite de lobos! E eu sozinha, sem ter aqui vizinhos. com os meus meninos, prestes a dormir»!     

Estava a Ti’ Mari’ de Jesus nestas cogitações e, nisto, ia jurar que tinha ouvido, fora, o barulho de pancadas na porta.

«Quem é»? Mouta!

«Quem é que está»? E não retornava resposta.

Teria sido uma saraivada mais forte de pedrisco e vento a matraquear na madeira?

Não!

Tinha a certeza que ouvira bater!

O Ti’ Maria, o seu homem, não seria. É certo que ele não tinha chave, pois havia apenas uma e essa estava na fechadura. À noite, tinha que bater quando chegava a casa, porque a porta estava sempre fechada por dentro.

Mas, se fosse ele, à uma, batia à porta de uma forma que ela logo reconheceria pelo toque e pela intuição de mulher. E à outra, não era ainda a hora habitual do seu regresso.

Nos dias em que a intempérie não permitia afazeres no campo, costumava entreter-se, até mais tarde, com os amigos, na venda do Ti’ João Arrebotes, na praça, por baixo da casa onde agora vive o Coné.

Tirou-se de cuidados, levantou-se do banquinho em que estava sentada ao lume, onde fez o caldo, afoita, que ela ainda era nova e um pedaço de mulher!

Embrulhou o tronco e a cabeça num xaile para não ir diretamente do calor para o frio e evitar, assim, constipar-se. Agarrou na candeia e dirigiu-se ao corredor que dava para a porta da rua. Rodou a chave da fechadura para a esquerda, correu o trinco e abriu.  

Surgiu-lhe pela frente, de alto abaixo, no recorte retangular das lajes de granito das ombreiras, uma sombra, com contorno de gente mal definido. A fraca luz da candeia e o negrume da noite, não deixavam perceber quaisquer feições. Dava apenas para ver que se tratava de um vulto de homem.

Fosse quem fosse o visitante, visto assim de repente, metia respeito! Mas como por ali tudo corria na paz do Senhor, a dona da casa, embora receosa, susteve a surpresa, sem apanhar grande cagaço.

Levantou a candeia com uma mão e pôs a outra à frente do vento para que não se apagasse a chama, aproximou-a daquela visão fantasmagórica que ali aparecera inopinadamente e lhe pôde ver melhor a cara. Mas não o reconheceu. Nem de perto, nem de longe. Nunca o tinha visto!

Estava postado na moldura da porta, encharcado, e tiritava do gelo da noite.

Tinha barba e cabelos negros bastante compridos e em desalinho, com alguns laivos grisalhos. Homem dos seus 50 ou a passar, atarracado, mas espadaúdo.

Via-se que se encontrava fisicamente debilitado, certamente pela fome ou pelos trabalhos e agruras da vida. Apresentava um aspeto andrajoso, mais do que permitiam os costumes. Mas parecia ainda mais maltratado, porque saltava imediatamente à vista que não tinha quaisquer cuidados com a barba e os cabelos.

Apercebeu-se que estava ali aquela mulher e, eventualmente, crianças dentro da casa e que, por ora, não havia qualquer presença de homem. Mas não fez qualquer gesto intimidatório. Pelo contrário. Procurou fazer um ar sereno e um tanto humilde, como convinha a um visitante.

Fosse porque era pessoa de bem, que se tivesse por ali perdido na serrania, a caminho da Charneca ou do Louriçal (mas isso estava por provar); fosse porque precisava de se enxugar e de uma mão amiga que lhe estendesse um pedaço de pão e um prato de sopa quente. Parecia esgalfado!

Perante a porta aberta de uma casa de família, com o aconchego, mesmo momentâneo, que isso podia representar para si, a sua voz era baixa, calma e vacilante, diante da mulher que lha abrira.

«Deixe-me enxugar no seu lume, por um bocado e dê-me um prato do seu caldo; seja por quem tem».  

Tratando-se de um indivíduo estranho, mal apresentado, com ar de poucos amigos e, ainda por cima, aparecer ali àquela hora e com aquele tempo, tudo isto tinha posto a mulher, de início, em alerta.

Mas esta postura do homem, de falinhas mansas, que parecia que deitava a alma ali no chão de pedra do limiar da entrada, levou-o a ganhar alguma confiança.

Parecia apenas um pobre homem. Um ferrabrás. Um maltês, sem pau nem manta. Um faminto, sem eira nem beira, como tantos outros. Um pobre diabo; ou, quando muito, um fora da lei de pequenos delitos, de roubar para saciar a fome. Que bem podia ter pertencido à quadrilha do do Telhado, se tivesse sido seu contemporâneo. Um herói mais romântico que sanguinário.

E, por aqui, havia tempo sem notícia de assaltos a pessoas ou casas, por delinquentes de vário grau de gravidade. Que iam de pequenos furtos a ameaças com faca ou arma de fogo ou mesmo morte de homem, como se dizia à boca pequena, porque isso não era fácil de confirmar.  

«O que é que o traz por aqui com este tempo, homem de Deus»?

«Perdi-me aqui na serra»…

«Entre, ali para o lume a aquecer-se, que eu lhe arranjo uma tigela de sopa quente. E não faça muito barulho, que os meus filhos estão no quarto a dormir».

O homem entrou. A dona da casa atiçou melhor o lume, com um abano e pôs mais dois troncos de pinho até fazer uma valente boutcha que iluminava a pequena cozinha até ao teto.

O inesperado visitante despiu o velho casaco que trazia e pôs-se de pé diante da ala, que atingia quase um metro de altura. Virava-se, alternadamente, de frente e de costas e logo as suas roupas soltaram rolos de vapor para o ar, como se fosse uma panela a ferver, tal era a quantidade de água que trazia em cima.

Mais ou menos meia hora, esteve nesta espécie de rito gestual, a enxugar-se.

Foi o tempo durante o qual teve ainda que suster a fome de lobo que trazia, antes de sentir o sabor da sopa que lhe havia sido prometida.

Mas era necessário. Já tinha feito tantos sacrifícios, era mais um! Não podia sorver uma sopa quentinha das que aquecem a alma e ao mesmo tempo sentir a roupa molhada em cima do corpo! Era como se fosse apenas meio prazer. Ao cabo, sentou-se num banco em frente à lareira, bastante mais reconfortado.

“Há lá lume como o seu, senhora Maria! Isso há ele! Ná! E para mim, nesta hora, é como uma santa bênção”!

“Por que jornada e por que trabalhos vem a estes sítios num dia como este e da maneira que tem estado este ano, criatura do Senhor? Não o conheço por cá»!

“Sou um homem das serranias acima do Fundão, onde estou acantonado. Tenho vida errante e ando por caminhos tortuosos, porque preciso de comer. A fome e a penúria empurraram-me, por minha culpa, para o abismo. Vejo-me forçado a procurar alimento e a descer ao povoado, como os lobos».

E mais não adiantou. Teria teto com soalho, na serra? Vivia da agricultura e calcorreava a montanha em busca de oportunidade de negócio para algumas peles ou para uma ou outra cabeça de gado? Como era e como não era a sua vida e como angariava proventos para se alimentar?

A Ti’ Mari’ de Jesus procurou uma malga na cantareira, onde tinha a loiça deborcada e deitou o caldo para dar ao inusitado visitante, a fumegar, apetitoso, ainda a escaldar, que a panela ainda fervia quando meteu nela a concha para o tirar!

Estendeu-lha, com um bocado de broa.

«Aqui tem e que lhe faça bom proveito»!

«Bem haja e que Deus lhe dê saúde, que a merece».


(Continua…) 

José Barroso

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

O RENEGADO

Prólogo e fontes:

Antes de mais quero alertar para o facto de serem usados bastantes regionalismos, neste texto, por palavras ou expressões. Alguns, simplesmente, não existem nos dicionários, mas são conhecidos e utilizados, sobretudo pelos mais velhos. Devem ser interpretados segundo o sentido que lhes é dado no interior do país, especialmente na Beira Baixa, o que às vezes é difícil, dada a sua volatilidade, como acontece com todas as línguas, face ao passar das gerações.

Outro alerta é para a circunstância de se usarem algumas alcunhas associadas a nomes de pessoas. As alcunhas são muito frequentes em S. Vicente da Beira. Podem ser consideradas ofensivas. Mas quando aqui se referem é no sentido carinhoso.

Esta história foi-me contada pelo Ti’ Aurélio Moreira que este ano completa a bonita idade de 94 anos e, à época, teria os seus 30. Mas contou-ma muito rápido, no sítio do antigo Tronco, em três ou quatro penadas, portanto, com muito poucos pormenores. Não houve tempo para mais.

Ele próprio viveu alguns dos acontecimentos, sobretudo, da parte final da história, in loco. Mas nada sabia e, em boa verdade, nada podia saber, sobre o que se passou na Tapada quando o Renegado chegou a casa do Ti’ Zé Maria Prata, onde apenas se encontrava a esposa e os filhos deste.

Nestas condições e, como não pude contactar outras pessoas com conhecimentos da realidade fáctica (e sei que as há), vi-me obrigado a ficcionar a maior parte das cenas, das quais não tenho a mínima ideia de como terão sucedido. Mas o fundo da história, esse, está lá.

Na última parte da história há de o leitor inteirar-se, se quiser fazer o favor, do fim das aventuras deste homem.
Segundo reza a crónica da tradição oral, de que a fonte me deu fé, terminou assim a vida do Renegado que assolou a região da Serra da Gardunha e com ele o mito daquele que, na fantasia destas gentes, ficou conhecido como PISTOTIRA, de que apenas aqui contamos uma aventura.

De tal maneira esta história estava enraizada na população que, muitas vezes, quando um homem da vila se dirigia a um miúdo, de alguma forma zombando um pouco dele, lhe perguntava: «Então, ó Pistotira! O que é que andas a fazer»?

Há outras histórias de outros Renegados da Gardunha, igualmente interessantes e com mais ou menos riqueza de factos, drama humano e recheadas de romantismo de que é sedento o nosso povo. Mas isso fica para depois.
   
Não posso acabar, sem deixar de lamentar aquela cena que, essa, corresponderá a factos reais que me foram contados, em concreto, pelo Ti’ Aurélio, em que alguns dos da turba batiam no Pistotira.

É certo que, dentro da cadeia, ele não se encontrava amarrado de pernas. Se estava amarrado de mãos, não se sabe. Ou esse ponto não me foi esclarecido. Mas sabe-se que era uma pequena multidão contra apenas um homem, sozinho, no meio do ajuntamento e isso não tem desculpa.

O que pode é haver alguma tolerância se atendermos à mentalidade da época, à euforia do acontecimento e talvez aos efeitos do álcool que, eventualmente, não deixaria de estar presente.       

JB 

Nota: O texto "O RENEGADO" será publicado em três fascículos, a partir de amanhã, sábado.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

De bicicleta

Os trabalhos eram poucos num mundo tão cheio. Ia-se para onde os havia e os companheiros pediam uns pelos outros. A Covilhã era a terra que empregava mais gente. Mas não havia transportes para o regresso de sábado ao fim da tarde. Então os trabalhadores juntavam-se todos e iam de bicicleta. O meu pai não tinha bicicleta, nem sabia andar, mas os trabalhos na vila continuaram a rarear e também teve de partir. Primeiro andou à boleia do irmão João, sentado no selim da bicicleta dele. Mas pedalar mais de 30 quilómetros, a maioria de terra batida, com o peso de dois homens em cima…
Comprou uma bicicleta em segunda mão e foi aprender para o campo da bola. Lembro-me bem desse sábado à tarde. Não pude ir, porque ainda nem andava na escola. Estava bom tempo, nem calor, nem frio, seria Primavera, com os dias já grandes. As minhas irmãs mais velhas subiram várias vezes à figueira pingo de mel do Padre Tomás, mesmo ao lado da nossa casa, para ver se o meu pai já sabia andar de bicicleta, mas diziam-me que só avistavam vultos a deslizar, às voltas. O tempo não passava, a tarde não chegava ao fim. Ao fundo do leirão também se via o alto da Devesa, mas era a mesma coisa, nunca mais acabavam de dar voltas pelo campo.
Voltou ao anoitecer. Já sabia andar, mas deixara a bicicleta em casa do irmão, no Casal da Fraga. Do Cimo de Vila para a Tapada seguia-se por um carreiro íngreme, estreito e pedregoso, entre paredes de leirões. Era caminho impróprio para bicicletas, por isso deixou-a sempre no Casal.
E no dia seguinte, domingo à tarde, partiu de bicicleta. Um dia, muitos anos depois, perguntei-lhe como conseguira ir até à Covilhã depois de ter aprendido a andar de bicicleta no dia anterior. Contou-me que parou várias vezes e se deixou cair outras tantas, mas os companheiros esperavam por ele e lá foi indo, que remédio!
O meu pai só andou na Covilhã pouco mais de um ano, pois partiu para a França. A bicicleta vendeu-a a outro operário precisado.
Poucos anos mais tarde, também no tempo bom, começou a anoitecer e as cabras da tia Carlota continuavam presas no leirão do fundo. Não paravam de berrar a chamar pela dona. Fomos ver e ela não estava em casa. Ficámos preocupados e esperámos, com as cabras sempre a berrar cada vez mais, até que se fez totalmente escuro e uma das irmãs, a minha mãe ou a minha madrinha, as foi meter na loja.
E alguém nos veio contar a desgraça: tio Manuel tivera um acidente já a chegar ao Casal e tinham-no levado para o hospital inconsciente. Quando ele e os companheiros iam a entrar na ponte do Casal do Monte do Surdo veio o camião da resina e encheu a ponte. Os ciclistas não couberam e tiveram de se desviar para a berma, estreita e inclinada. O meu tio saiu da estrada e caiu no ribeiro, de cabeça.
O tio Manuel morreu. Para o funeral, eu e os meus primos fomos lavar-nos ao ribeiro das Lajes. Passámos por lá a tarde, à procura de um charco com água suficiente, a correr atrás das libelinhas e a tentar apanhar freiras e alfaiates, às mãos cheias, nas pocinhas de água. No dia seguinte, fomos à Vila. A urna saiu de casa dos pais do meu tio e foi então que conheci o Zé, magro e de óculos, a estudar para padre.
A tia Carlota ficou triste e de luto todos os dias do resto da sua vida e os operários que trabalhavam na Covilhã não voltaram a ir de bicicleta.

José Teodoro Prata

domingo, 11 de agosto de 2013

Como novo

Já noticiámos, aquando do passeio pedestre, que a Junta de Freguesia desenvolveu um projeto de recuperação de algum do nosso património construído, em várias localidades da freguesia. Então, mostrámos a Fonte da Portela, e hoje, o Calvário, como novo, ambos na sede de freguesia.


José Teodoro Prata

sábado, 10 de agosto de 2013

O iníquo regime de castas


Ana Sá Lopes
Jornal i, 9 de agosto de 2013

O poder comporta-se como Maria Antonieta antes da Revolução Francesa
Portugal tem duas classes sociais: o povo, que serve de carne para canhão para cobrir o défice – através de aumentos de impostos, cortes salariais e redução de prestações sociais –, e a nobreza, cujos benefícios serão protegidos ad aeternum.
República há mais de um século, 40 anos depois de uma revolução que prometia “igualdade entre os cidadãos”, Portugal continua a funcionar como uma monarquia tradicional, em que, por lei, o povo tem a obrigação de sustentar uma família por um acaso de nascimento. Infelizmente, ao contrário da nossa monarquia travestida, as monarquias de facto têm a vantagem de ser claras e mais escrutinadas. Se os direitos aristocráticos desta república menor também se transmitem pelo nascimento, eles reproduzem-se nos clubes de negócios, no centrão político, nos grupos financeiros, nos grandes escritórios de advogados, no incrível carrossel dos amigos políticos e dos amigos financeiros, das ligações de famílias ou do que uma boa carreira dentro do PS ou do PSD pode dar. Tudo isto converge na divisão de um país em duas grandes classes sociais: a nobreza e o povo (o clero oscila entre as duas, conforme os protagonistas e os momentos).


A ideia de que existe um “nós” e um “eles” já foi totalmente apreendida pelo povo e está na origem do quase irremediável divórcio entre a população normal e as instituições políticas. Existimos “nós”, – os remediados a quem a crise rapa as poupanças e manda para o desemprego a família – e “eles”, os que nunca vão à falência, os que nunca irão perder o emprego, os que continuarão a almoçar no Gambrinus à conta de uma empresa pública falida, aqueles que o Estado ajudará sempre por razões equívocas. O poder comporta-se – e isso é particularmente doloroso de ver em momentos como este – como Maria Antonieta antes da Revolução Francesa: “Se não têm pão, comam brioches.” É esse estado mental que permite ao governo fazer uma lei para cortar reformas, excluindo magistrados, militares ou trabalhadores da Caixa Geral de Depósitos. E, para escândalo geral, nem uma palavra diz sobre um corte proporcional nas famosas reformas dos políticos.

O comunicado da Secretaria de Estado é lapidar desta total incapacidade de perceber que o fosso entre cidadãos e poder é dramático: o senhor secretário de Estado Hélder Rosalino admite que, “caso se justifique”, o corte nas reformas dos políticos “será tratado em sede própria”. Caso se justifique, ouviram bem? Comam brioches.

José Teodoro Prata

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Os leitões aprendem a caçar

A Felpuda perfilhou dois bacorinhos de dois meses. Dá-lhes de mamar e toma conta deles como faz com os seus filhos, três cachorrinhos muito vivos e engraçados.
E os cinco miúdos brincam juntos como se fossem todos cachorrinhos ou como se fossem todos leitões. São cinco bebés autênticos.
A Felpuda tomou conta dos bacorinhos no dia em que ficaram órfãos e nunca mais deixou que ninguém lhes tocasse. Arreganha os dentes e as pessoas recuam, assustadas. Considera-os seus próprios filhos.
Felpuda, antes de ter os três cachorrinhos e de ser mãe adotiva dos dois leitões, ia muito à caça com o seu dono e tinha arte para apanhar o seu coelhito ou levantar uma perdiz.
Agora, com os pequenos já crescidos, começou a pensar nesses belos tempos em que percorria os matos com o dono, a farejar a caça e, como boa mãe, entende que nenhum cão da sua raça deve deixar de saber caçar. Um dia disse-lhes:
- Bem, meus filhos, é a altura de começarem a aprender a caçar! Amanhã vamos para o mato e vou dar-vos a primeira lição.
E foram. Os três cachorrinhos, muito ágeis, compreenderam logo a lição. Nas lições seguintes fizeram grandes progressos e mostraram que haviam de seguir as pisadas da mãe: serem bons caçadores.
Quanto aos leitões, Felpuda não compreendia nada do que se passava com eles. Só pensavam em fossar a terra e nada de repetirem as lições que ela lhes dava:
- Vamos, meus filhos, cabeça baixa, uma pata no ar, quietos, é assim que se espera a caça.
E eles nada. Nada de repetirem o que ela lhes ensinava.
Ou então:
- Vá, toca a farejar, busquem, busquem por entre as moitas…
E os leitõezinhos, nada! Muito rosados, muito lindos, mas sem jeito nenhum para cães de caça!
Felpuda vive muito desgostosa. Como é que dois dos seus filhos puderam dar naquilo?
- É uma vergonha, é uma vergonha!
Mas não perdeu a esperança e lá vai com eles todos os dias para o mato para os ensinar a caçar.


Esta história chegou-me às mãos sem indicação de autor, nem de título do livro de onde foi extraída. Quem a escreveu, fê-lo a partir de uma notícia publicada no Diário de Notícias de 17 de abril de 1956.
Informava que o sr. João Teodoro dos Santos, residente numa quinta dos arredores de S. Vicente da Beira, tinha uma cadela que tomou dois leitões à sua guarda, os amamentava como se fossem seus filhos e os levava para os matos, com intenção de os ensinar a caçar.

João Teodoro dos Santos (1909-1995) viveu na Serra, acima dos Ribeiro de Dom Bento, ao lado das Lameiras. Por isso lhe chamávamos o ti João da Serra (ou Baloia). Na altura desta história, estava casado com Alzira Casimiro de Oliveira. Mais tarde enviuvou e voltou a casar, com a ti Delfina, que ainda vive na casa do topo da Rua da Cruz. O filho deste casal, o João, vive mais abaixo, na Rua do Convento.

José Teodoro Prata