segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O RENEGADO II

(Continuação…)

O homem comeu sofregamente, ainda a queimar, aquela reconfortante malga de sopa de couve e feijão, onde assomava um pedaço de toucinho do alto, cozido. Comeu tudo e soube-lhe a pútegas porque a magana da fome era de dias. Pousou a malga sobre a pequena mesa da cozinha, delicadamente.

«A senhora Maria acudiu-me numa hora difícil. Estou certo que Deus lhe de contar este gesto para desagravo dos pecados, quando um dia estiver diante d’ Ele; mas que esse dia venha ainda longe»!

«Bem haja, bem haja»!

Toda esta aparente cordialidade tinha deixado, primeiramente, no espírito da dona da casa alguma tranquilidade.

Mas os lapsos e as explicações pouco convincentes e pouco esclarecedoras da vida errática do metediço, não eram de molde a configurá-lo, como acontecia com os mais, como um homem de assento.

Tudo isto e mais as histórias que por ali se contavam, de vez em quando, sobre renegados e assaltantes dos caminhos, começaram a levá-la a ficar um pouco inquieta.

Enquanto ele comia a sopa, a mulher tinha reparado que pegava na colher de forma diferente do habitual, segurando-a como quem pega no cabo de uma ferramenta pesada, com o polegar oposto aos restantes dedos; em vez de a suster de forma usual, entre o polegar e o indicador.

E descobriu que isso se devia a faltarem ao homem dois dedos da mão direita: o mínimo e o anelar.

E dessa maneira ele disfarçava a imperfeição física. O sinal indissipável daquele corpo, pelo muito que teria penado durante a vida, que se adivinhava muito aventurosa.   

O homem estava marcado!  

Isto conferia com uma daquelas histórias de terror sobre homens que se acoitavam na serra e se acercavam das redondezas das povoações para roubar casas e pessoas.

A própria mulher ouvira dizer que um dos tais foragidos era conhecido por ter dois dedos a menos numa mão. Mas como nunca tivesse tido um mau encontro com gente dessa laia, graças ao Senhor; nem ouvido falar de forma fidedigna desses acontecimentos, pareciam-lhe loas do soalheiro, do imaginário, do disse que disse. E atirava-as, inexoravelmente, para o sótão do esquecimento porque tinha mais que fazer!

Mas o raio é que tudo o que se passava, desde um bom migalho, paredes adentro da sua própria casa, condizia com algumas das descrições dessas histórias!

Um farroupilha de homem que lhe apareceu numa noite de cães, de chuva, frio e vendaval, esfomeado e a tiritar, que mais parecia um ladrãozeco; narrando uma história pouco consistente, não contando, ostensivamente, o que parecia dever contar; tudo fazia pouco sentido e não merecia credibilidade.

E, sobretudo, agora, a falta dos dois dedos na mão do homem, tal como ela ouvira numa das histórias que ali corria!

A Ti’ Mari’ de Jesus começou a ligar as pontas. Congeminou, congeminou, tirou a sua conclusão e ficou em pulgas!

«Meu Deus, é ele! É ele! É o Pistotira»!

«Tenho em casa um bandido! Um matador dos caminhos! Aquele que dizem que tem dois dedos a menos numa das mãos e de quem se têm contado histórias de roubos, ameaças e assaltos! Nossa Senhora! Credo! O que é que eu fui fazer ao dar guarida a este homem na minha própria casa»!

Assim mesmo manifestava a dona da casa o seu pânico. E não era para menos!

Não pelo que tinha acontecido até ali, pois o homem até se tinha revelado cordato e educado.

Na verdade, nada de mau se tinha passado. Mas se era quem ela pensava, a sua inquietação redobrou ao menos pelo que ainda poderia vir a suceder. Pois, verdadeiramente, nada sabia dele. Podia ter estado a fingir o tempo todo e ser uma pessoa malfazeja, muito diferente do que até ali aparentara. E mudar a sua atitude, tornando-se agressivo, capaz de roubar os seus haveres e até agredi-la ou fazer mal aos filhos.

Fazia exames de auto mortificação, condenando-se a si mesma por não se ter apercebido da espécie de indivíduo que metera em casa.

Como cristã, limitara-se a oferecer-lhe hospitalidade. 

Agora não podia arriscar mais. Tinha que engendrar um plano para se ver livre daquele intrometido que sabia agora tratar-se de alguém com má fama, a condizer com os sinais do Pistotira.   

Mas para levar adiante tal façanha, a dona da casa não podia dar-se por achada. Nada de dar a entender que tinha acabado de descobrir a verdadeira identidade do meliante.

Conversa daqui, conversa dali, para entreter, sobre o tempo, a vida assoberbada e as dificuldades das gentes da região. A páginas tantas, desculpou-se dizendo que tinha que ir ver as crianças aos quartos, onde estariam prontas para rezar a oração da noite e adormecer.

«Ó alma de Senhor, vou ver as crianças que estão para adormecer e já venho! Ponha aí mais duas cavacas de pinheiro, enxugue-se melhor e aqueça-se para a jornada que, ao que imagino, deve ser longa»!

E lançou ainda, como forma de robustecer a sua própria (mas aparente) confiança e dominar o medo:

«O meu homem não deve tardar. Nestes dias pequenos costuma chegar mais cedo para a ceia»!  

«Vá, vá, Ti’ Maria, vá»!

Esgueirou-se a mulher, quase a correr, pela porta estreita do fundo da cozinha e dirigiu-se ao quarto onde se encontrava o filho mais velhito, dizendo-lhe em surdina:

«Filho, não faças barulho, mas estamos metidos num grande sarilho»!

«Levanta-te, agasalha-te bem com um casaco velho, grande, que ali está na cadeira. Pega num dos guarda-chuvas que estão atrás da porta e acoita-te bem debaixo dele para não te constipares com a chuva e o frio. Sai devagarinho e vai depressa dizer ao teu pai à venda do Ti’ João Arrebotes que está aqui em nossa casa o malandro do Pistotira! Não te demores. Vai num pé e vem no outro. Vá, anda lá, filho»!

O miúdo andava pelos seus 12 anitos e era vivo e fino. Mal pôs o pé fora de casa, leve como era e habituado como estava às correrias da brincadeira, a saltar paredes e cômoros, calcorreou a rua num ápice até à praça. E, em menos de um amém, estava à porta da taberna do Ti’ João Arrebotes. A entrada era vedada a jovens e crianças daquela idade.

Lá dentro, os homens formavam, entre si, diversos grupos dispostos em roda, que tagarelavam segundo o assunto de interesse de cada um; fosse por causa do tempo; fosse por mor das fainas agrícolas e dos negócios. Alguns rapazes contavam dichotes uns aos outros, por brincadeira, como forma de mangar e passar o tempo; outros jogavam o tanguinho por pontos, à rodada. A vozearia era elevada porque cada um se queria fazer ouvir por cima do barulho que pairava no ar.

O miúdo esperava fora quando um dos homens ia sair e se dirigia ao urinol de água corrente que existia por baixo da Fonte da Praça, a mijer; e onde alguns também iam despejar a saburra do odre avinhado.

Chamou-o.

«Ó senhor; senhor»!

Como não havia luz pública, com o fraco brilho que vinha do candeeiro, de dentro da taberna, o outro não o reconheceu.

«De quem és tu rapaz? O que é que tu queres! tocaram as avé marias e ainda aqui andas a esta hora?! devias estar em casa! Descuida-te e ainda levas uma sova do teu pai com algum cinto»!

«Sou filho do Ti’ Maria Prata; está dentro; diga-lhe que chegue aqui; quero dar-lhe um recado; depressa»!

«Ah! O quê? Ti’ Maria»?
«Ah! Então, espera aí. Espera aí, rapaz»!

Veio o Ti’ Maria e o filho pô-lo ao corrente do que se estava a passar na sua casa, na Tapada, acima da vila, como lhe dissera a mãe; e que estava o bilontra dum homem que parecia mesmo o Pistotira.

O Ti Maria ainda que dissesse de si mesmo que era “o número um de S. Vicente”, batendo com o direito no chão, para reforçar o discurso laudatório; e ainda que fosse bem constituído, forte de pulso, capaz de enfrentar o mais pintado, mesmo assim, ficou varado com a notícia.

E principiou a vociferar:

«O Pistotira na minha casa»?!

«O Pistotira debaixo do meu teto, onde tenho a mulher e os filhos»?!

«Pode ser»!

«Vou deitar a mão àquele alma do diabo! Àquele desgraçado»!

«Se me faz mal à Maria ou aos filhos! Vou persegui-lo até ao quinto dos infernos»!

Assim mesmo gritava ele, fora de si, que o seu receio não era por ele próprio, mas pela família.

Porém, pelo facto de o vadio se encontrar dentro de casa, dava a lei ao dono possibilidade de usar de auto defesa. Podia detê-lo por suas próprias mãos, da forma que fosse possível, sem prévio recurso às autoridades. No limite, levado por sério receio, podia até matá-lo. Disso tinha a certeza. Tanto mais que se tratava de um suspeito, um tratante com fama de ladrão e assaltante. Estava legitimado!

Alvoroçou-se a taberna com a clamunha! Pariu ali a galega! O que é, o que não é? Pouco a pouco, todos foram sabendo a razão do alarido.

A história do Pistotira e a sua fama eram por demais conhecidas na região.

E logo o Ti’ Zé Maria se apressou a ir direito à Tapada a ver pelos seus próprios olhos o que lá se passava, logo secundado pelo Ti’ Zé Pedro (mais conhecido por Zé Gato e amigo de longos anos). Queriam prender o Pistotira!

Mas, tratando-se de deter alguém, o alvoroço e o alarido eram maus conselheiros. Iriam certamente alertar o homem e este escapulir-se-ia, que ele tinha aprendido a ser lesto de pernas, qualidade que o tinha safado em muitos apertos, dos quais, pelo que se contava, a sua vida era pródiga. 

Decidiram, então, calar-se quanto podiam e foram rua acima, silenciosos, tanto quanto o permitiam a emoção da tarefa e a exaltação do vinhito que tinham emborcado no Arrebotes. Os outros, talvez uns 15, ficaram na praça, mas não arredavam pé da porta da taberna, na expectativa, a ver o que a coisa dava.  

Os outros dois lá iam. À frente o dono da casa, que se esforçava por pôr no semblante o ar mais natural possível, como se fosse da venda, de seroar, sem nada saber, quase ombreado pelo Ti’ Zé Gato. Como já tinham combinado, este ficaria à entrada da soleira da porta, em silêncio, para o que desse e viesse.

Era preciso prevenir, não fosse o homem estar armado com faca ou com algum pistoleco e pudesse haver derramamento de sangue. O indivíduo continuava a aquecer-se, lá dentro, ao lume, como se fora visita de bem.

A Ti’ Mari’ de Jesus entrava e saía da cozinha, atarefada com os afazeres da casa, como de costume, que o dia seguinte era de trabalho, assim o tempo o permitisse. Os filhos dormiam. Tudo numa aparente paz doméstica.

Bateram à porta e ela foi abrir, com o coração aos pulos, procurando disfarçar a agitação interior. Era o seu homem. Que percorreu o corredor e, breve, apareceu no traço da porta da cozinha.

(Continua…)

José Barroso

sábado, 17 de agosto de 2013

O RENEGADO I

A invernia nas faldas da Gardunha, naquele ano, como de costume, era das antigas. E aquele dia não era diferente dos demais. O céu estava carregadíssimo de nuvens negras.

Anoitecera, tinham dado as cinco da tarde no relógio velhinho da torre. pouco se enxergava.   

Chovia água, se Deus a dava!

O forte temporal que se abateu sobre o povoado enregelava os corpos e o vento soprava, assanhado, fazendo remoinho nos telhados, levantando a telha mourisca de algumas casas que metiam água como se fora a Fonte Velha, cuja nascente, mesmo diminuindo um pouco, não falece, nem nos anos de maior seca.

Havia necessidade de consertar os algerozes por fora, durante o dia, mesmo debaixo de chuva ou tirar as tchincas das telhas, por dentro, pelo forro, às apalpadelas, com a candeia de azeite, de luz a tremelicar. Porque, no verão, o Ti’ Manel Ubre se encarregaria de correr o telhado, preparando-o para o inverno seguinte.  

A chuva enchera ribeiros e regatos. Vinha tocada a vento!  

Um homem acobertado atrás do casacão de surrobeco, mesmo que levasse por cima um guarda-chuva largo, de pastor, de pano grosso e ainda que vestisse safões de pele de cabra e polainas, não evitava que a água lhe entrasse pela véstia.

A termo de se ver tão abundantemente ensopado nos bragais mais chegados ao corpo, que começava a sentir aquela impressão desagradável da roupa molhada pegada ao pelo. Uma caminhada pela serra por mor de compromissos de negócio ou jornada no campo e era certo e sabido que se ficava alagado até aos fundilhos!  

«Nossa Senhora! Tanta água! Estava tentada a dizer que isto aqui na Tapada é o inferno, se não rezassem os Santos Livros que o inferno é de fogo! Credo! Está uma noite de lobos! E eu sozinha, sem ter aqui vizinhos. com os meus meninos, prestes a dormir»!     

Estava a Ti’ Mari’ de Jesus nestas cogitações e, nisto, ia jurar que tinha ouvido, fora, o barulho de pancadas na porta.

«Quem é»? Mouta!

«Quem é que está»? E não retornava resposta.

Teria sido uma saraivada mais forte de pedrisco e vento a matraquear na madeira?

Não!

Tinha a certeza que ouvira bater!

O Ti’ Maria, o seu homem, não seria. É certo que ele não tinha chave, pois havia apenas uma e essa estava na fechadura. À noite, tinha que bater quando chegava a casa, porque a porta estava sempre fechada por dentro.

Mas, se fosse ele, à uma, batia à porta de uma forma que ela logo reconheceria pelo toque e pela intuição de mulher. E à outra, não era ainda a hora habitual do seu regresso.

Nos dias em que a intempérie não permitia afazeres no campo, costumava entreter-se, até mais tarde, com os amigos, na venda do Ti’ João Arrebotes, na praça, por baixo da casa onde agora vive o Coné.

Tirou-se de cuidados, levantou-se do banquinho em que estava sentada ao lume, onde fez o caldo, afoita, que ela ainda era nova e um pedaço de mulher!

Embrulhou o tronco e a cabeça num xaile para não ir diretamente do calor para o frio e evitar, assim, constipar-se. Agarrou na candeia e dirigiu-se ao corredor que dava para a porta da rua. Rodou a chave da fechadura para a esquerda, correu o trinco e abriu.  

Surgiu-lhe pela frente, de alto abaixo, no recorte retangular das lajes de granito das ombreiras, uma sombra, com contorno de gente mal definido. A fraca luz da candeia e o negrume da noite, não deixavam perceber quaisquer feições. Dava apenas para ver que se tratava de um vulto de homem.

Fosse quem fosse o visitante, visto assim de repente, metia respeito! Mas como por ali tudo corria na paz do Senhor, a dona da casa, embora receosa, susteve a surpresa, sem apanhar grande cagaço.

Levantou a candeia com uma mão e pôs a outra à frente do vento para que não se apagasse a chama, aproximou-a daquela visão fantasmagórica que ali aparecera inopinadamente e lhe pôde ver melhor a cara. Mas não o reconheceu. Nem de perto, nem de longe. Nunca o tinha visto!

Estava postado na moldura da porta, encharcado, e tiritava do gelo da noite.

Tinha barba e cabelos negros bastante compridos e em desalinho, com alguns laivos grisalhos. Homem dos seus 50 ou a passar, atarracado, mas espadaúdo.

Via-se que se encontrava fisicamente debilitado, certamente pela fome ou pelos trabalhos e agruras da vida. Apresentava um aspeto andrajoso, mais do que permitiam os costumes. Mas parecia ainda mais maltratado, porque saltava imediatamente à vista que não tinha quaisquer cuidados com a barba e os cabelos.

Apercebeu-se que estava ali aquela mulher e, eventualmente, crianças dentro da casa e que, por ora, não havia qualquer presença de homem. Mas não fez qualquer gesto intimidatório. Pelo contrário. Procurou fazer um ar sereno e um tanto humilde, como convinha a um visitante.

Fosse porque era pessoa de bem, que se tivesse por ali perdido na serrania, a caminho da Charneca ou do Louriçal (mas isso estava por provar); fosse porque precisava de se enxugar e de uma mão amiga que lhe estendesse um pedaço de pão e um prato de sopa quente. Parecia esgalfado!

Perante a porta aberta de uma casa de família, com o aconchego, mesmo momentâneo, que isso podia representar para si, a sua voz era baixa, calma e vacilante, diante da mulher que lha abrira.

«Deixe-me enxugar no seu lume, por um bocado e dê-me um prato do seu caldo; seja por quem tem».  

Tratando-se de um indivíduo estranho, mal apresentado, com ar de poucos amigos e, ainda por cima, aparecer ali àquela hora e com aquele tempo, tudo isto tinha posto a mulher, de início, em alerta.

Mas esta postura do homem, de falinhas mansas, que parecia que deitava a alma ali no chão de pedra do limiar da entrada, levou-o a ganhar alguma confiança.

Parecia apenas um pobre homem. Um ferrabrás. Um maltês, sem pau nem manta. Um faminto, sem eira nem beira, como tantos outros. Um pobre diabo; ou, quando muito, um fora da lei de pequenos delitos, de roubar para saciar a fome. Que bem podia ter pertencido à quadrilha do do Telhado, se tivesse sido seu contemporâneo. Um herói mais romântico que sanguinário.

E, por aqui, havia tempo sem notícia de assaltos a pessoas ou casas, por delinquentes de vário grau de gravidade. Que iam de pequenos furtos a ameaças com faca ou arma de fogo ou mesmo morte de homem, como se dizia à boca pequena, porque isso não era fácil de confirmar.  

«O que é que o traz por aqui com este tempo, homem de Deus»?

«Perdi-me aqui na serra»…

«Entre, ali para o lume a aquecer-se, que eu lhe arranjo uma tigela de sopa quente. E não faça muito barulho, que os meus filhos estão no quarto a dormir».

O homem entrou. A dona da casa atiçou melhor o lume, com um abano e pôs mais dois troncos de pinho até fazer uma valente boutcha que iluminava a pequena cozinha até ao teto.

O inesperado visitante despiu o velho casaco que trazia e pôs-se de pé diante da ala, que atingia quase um metro de altura. Virava-se, alternadamente, de frente e de costas e logo as suas roupas soltaram rolos de vapor para o ar, como se fosse uma panela a ferver, tal era a quantidade de água que trazia em cima.

Mais ou menos meia hora, esteve nesta espécie de rito gestual, a enxugar-se.

Foi o tempo durante o qual teve ainda que suster a fome de lobo que trazia, antes de sentir o sabor da sopa que lhe havia sido prometida.

Mas era necessário. Já tinha feito tantos sacrifícios, era mais um! Não podia sorver uma sopa quentinha das que aquecem a alma e ao mesmo tempo sentir a roupa molhada em cima do corpo! Era como se fosse apenas meio prazer. Ao cabo, sentou-se num banco em frente à lareira, bastante mais reconfortado.

“Há lá lume como o seu, senhora Maria! Isso há ele! Ná! E para mim, nesta hora, é como uma santa bênção”!

“Por que jornada e por que trabalhos vem a estes sítios num dia como este e da maneira que tem estado este ano, criatura do Senhor? Não o conheço por cá»!

“Sou um homem das serranias acima do Fundão, onde estou acantonado. Tenho vida errante e ando por caminhos tortuosos, porque preciso de comer. A fome e a penúria empurraram-me, por minha culpa, para o abismo. Vejo-me forçado a procurar alimento e a descer ao povoado, como os lobos».

E mais não adiantou. Teria teto com soalho, na serra? Vivia da agricultura e calcorreava a montanha em busca de oportunidade de negócio para algumas peles ou para uma ou outra cabeça de gado? Como era e como não era a sua vida e como angariava proventos para se alimentar?

A Ti’ Mari’ de Jesus procurou uma malga na cantareira, onde tinha a loiça deborcada e deitou o caldo para dar ao inusitado visitante, a fumegar, apetitoso, ainda a escaldar, que a panela ainda fervia quando meteu nela a concha para o tirar!

Estendeu-lha, com um bocado de broa.

«Aqui tem e que lhe faça bom proveito»!

«Bem haja e que Deus lhe dê saúde, que a merece».


(Continua…) 

José Barroso

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

O RENEGADO

Prólogo e fontes:

Antes de mais quero alertar para o facto de serem usados bastantes regionalismos, neste texto, por palavras ou expressões. Alguns, simplesmente, não existem nos dicionários, mas são conhecidos e utilizados, sobretudo pelos mais velhos. Devem ser interpretados segundo o sentido que lhes é dado no interior do país, especialmente na Beira Baixa, o que às vezes é difícil, dada a sua volatilidade, como acontece com todas as línguas, face ao passar das gerações.

Outro alerta é para a circunstância de se usarem algumas alcunhas associadas a nomes de pessoas. As alcunhas são muito frequentes em S. Vicente da Beira. Podem ser consideradas ofensivas. Mas quando aqui se referem é no sentido carinhoso.

Esta história foi-me contada pelo Ti’ Aurélio Moreira que este ano completa a bonita idade de 94 anos e, à época, teria os seus 30. Mas contou-ma muito rápido, no sítio do antigo Tronco, em três ou quatro penadas, portanto, com muito poucos pormenores. Não houve tempo para mais.

Ele próprio viveu alguns dos acontecimentos, sobretudo, da parte final da história, in loco. Mas nada sabia e, em boa verdade, nada podia saber, sobre o que se passou na Tapada quando o Renegado chegou a casa do Ti’ Zé Maria Prata, onde apenas se encontrava a esposa e os filhos deste.

Nestas condições e, como não pude contactar outras pessoas com conhecimentos da realidade fáctica (e sei que as há), vi-me obrigado a ficcionar a maior parte das cenas, das quais não tenho a mínima ideia de como terão sucedido. Mas o fundo da história, esse, está lá.

Na última parte da história há de o leitor inteirar-se, se quiser fazer o favor, do fim das aventuras deste homem.
Segundo reza a crónica da tradição oral, de que a fonte me deu fé, terminou assim a vida do Renegado que assolou a região da Serra da Gardunha e com ele o mito daquele que, na fantasia destas gentes, ficou conhecido como PISTOTIRA, de que apenas aqui contamos uma aventura.

De tal maneira esta história estava enraizada na população que, muitas vezes, quando um homem da vila se dirigia a um miúdo, de alguma forma zombando um pouco dele, lhe perguntava: «Então, ó Pistotira! O que é que andas a fazer»?

Há outras histórias de outros Renegados da Gardunha, igualmente interessantes e com mais ou menos riqueza de factos, drama humano e recheadas de romantismo de que é sedento o nosso povo. Mas isso fica para depois.
   
Não posso acabar, sem deixar de lamentar aquela cena que, essa, corresponderá a factos reais que me foram contados, em concreto, pelo Ti’ Aurélio, em que alguns dos da turba batiam no Pistotira.

É certo que, dentro da cadeia, ele não se encontrava amarrado de pernas. Se estava amarrado de mãos, não se sabe. Ou esse ponto não me foi esclarecido. Mas sabe-se que era uma pequena multidão contra apenas um homem, sozinho, no meio do ajuntamento e isso não tem desculpa.

O que pode é haver alguma tolerância se atendermos à mentalidade da época, à euforia do acontecimento e talvez aos efeitos do álcool que, eventualmente, não deixaria de estar presente.       

JB 

Nota: O texto "O RENEGADO" será publicado em três fascículos, a partir de amanhã, sábado.