Quem
conta um conto…
A propósito das Almas Penadas, fiquei de ir
confirmar a existência das duas cruzes a que a história publicada em junho faz
referência.
Um dia destes meti-me ao caminho e, um pouco
à frente dos Pereiros, lá estava a primeira.
Logo a seguir à Partida, encontrei a outra.
As cruzes são muito semelhantes. Numa vê-se a
data de 1955 e as iniciais F M; na outra, que parece ter sido alterada
posteriormente, está escrito o nome F. Martins. Será o nome de quem as fez ou
mandou fazer.
Continuei pela estrada adiante e, pouco
depois, avistei o Vale de Figueiras, uma
espécie de presépio que, atravessado pelo ribeiro, trepa encosta acima.
Atravessei a ponte para o lado de lá, dei uma
volta pelas ruas e não avistei vivalma: um presépio sem figuras…
Tive mais sorte do lado de cá, junto à
capela, onde encontrei a Ti Maria dos Anjos, uma mulher simpática, faladora, e
que foi provavelmente a última tecedeira da freguesia. Ficámos um bom bocado à
conversa. Ela a falar dos tempos passados, as casas cheias de gente, a terra a
retribuir tudo o que lhe davam; quatro teares em casa, todos a tecer, uma
alegria!... Agora, só maleitas, dela e da família; as terras, sem gente que as
trate; as ruas sem crianças (a pessoa mais nova tem vinte anos…). «É quase já
só velhos…» concluiu, com alguma tristeza. Eu, alimentando a conversa como
podia, mas sobretudo ouvindo.
Às tantas, como quem não quer a coisa,
disse-lhe que tinha visto uma cruz na estrada, se ela sabia porque é que a
tinham ali posto. Respondeu prontamente:
-
Sabe? Nós aqui na terra nunca tivemos cemitério e quando alguém morria tínhamos
que o ir enterrar na Partida. Como também não tínhamos a estrada arranjada para
cá virem os carros funerários, como agora já temos, o povo ia a pé e o caixão,
eram os homens que o carregavam aos ombros; e era ao pé daquela cruz que
parávamos para descansar e rezar. Depois continuávamos pelo cabeço acima, até
ao cemitério.
-
Devia ser difícil, porque ainda é longe e o caminho quase sempre a subir…
- Sabe
lá! … E no inverno, com a chuva e o frio? A melhor coisa que nos fizeram, foi
esta estrada… Graças a Deus!
E logo a seguir, como que a contar um
segredo, acrescentou:
- Mas sabe? Também contam uma história sobre
aquela cruz e mais uma que está já a caminho dos Pereiros e outra na Partida.
Fiz-me de nova e pedi que me contasse a história.
- Diz que há muitos anos, havia uma mulher na
Partida (ela era daqui, mas tinha lá casado) que ficou viúva muito cedo e já
com um rebanho de filhos. Uns tempos depois do homem morrer, começou a
aparecer-lhe como se fosse uma luz e a mulher já andava a ficar com medo. Um
dia ouviu uma voz que lhe disse que era o homem dela e vinha a pedir-lhe que
mandasse fazer duas cruzes que tinha prometido antes de morrer, mas como não
tinha cumprido a promessa, ainda andava por aí, feito alma penada. A mulher
prometeu que sim, que mandava fazer as ditas cruzes; mas as posses não eram
muitas e também morreu sem cumprir o prometido. Então, já depois de morta,
começou a aparecer ao filho. Para onde quer que ele fosse, lá estava ela.
Ficava parada, a olhar para ele, mas sempre muda. O rapaz já andava a ficar
desacorçoado e sem saber o que fazer à vida. Um dia, já ao cair da noite,
chegou a casa e lá estava a mãe, vestida tal e qual como andava antes de
morrer: toda de preto, embrulhada no xaile, com o lenço amarrado à cabeça,
sentada no banquinho onde se costumava sentar em vida, ao canto do borralho. O
rapaz ficou todo arrepiado, mas a mãe olhou para ele e disse-lhe assim: «Olha,
meu filho, bem sei que andas com medo, mas está descansado que não te quero
fazer mal. Só te quero pedir que me faças um favor». «Então e qual é o favor
que vossemecê quer de mim, minha mãe?». «Olha, filho, depois do teu pai morrer,
apareceu-me a pedir que mandasse fazer duas cruzes porque se não, não podia ir
para o céu. Eu disse-lhe que sim, mas como os tempos eram ruins e o que tinha
mal dava para matar a fome a ti e aos teus irmãos, não pude cumprir o prometido.
Por causa disso ainda andamos os dois por aí, feitas almas penadas. Queria que
mandasses tu fazer as cruzes, para podermos ter sossego». «Então e aonde é que
vossemecê quer que se ponham as cruzes?» «Olha, meu filho, mandas pôr uma a
caminho da Partida para o Vale da Figueira que era a minha terra, e a outra da
Partida para os Pereiros, que foi aonde o teu pai nasceu. Mas queria que
mandasses fazer também uma no alto da Partida, que foi onde nasceste tu e os
teus irmãos». O rapaz disse que sim, que cumpria o prometido logo que pudesse.
E assim fez. Como também era pobre, ainda teve que pedir umas notas emprestadas
a um vizinho, mas logo que pôde, falou a um homem lá da terra e encomendou-lhe
as cruzes, todas em pedra de cantaria. Diz-se que enquanto andou a fazer o
trabalho, por cima dele andaram sempre duas borboletas brancas a voar. Depois
da obra acabada, viram-se as borboletas a subir, devagarinho, direitinhas ao
céu…
Nota: Quando regressei do Vale de Figueiras e
passei pela Partida com intenção de confirmar a existência da terceira cruz, já
era quase noite, por isso nem tentei procurá-la. É um bom pretexto para lá
voltar um dia destes. Por aquilo que vi e ouvi, vale a pena…
M. L. Ferreira