quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Encontrado




Há dias ouvia pela enésima vez aquele tema que o Zé Teodoro publicou há tempos do Chico Buarque com o titulo “Minha História”. É uma canção que me acompanha desde a minha juventude e tem para mim grande significado.
Comecei então a divagar devagar, porque isto não está para pressas, e recordei os primeiros tempos da minha vida, através do que me foi contado e por alguns episódios que me foram acontecendo.
Desde já quero avisar que o interesse deste texto não é grande, porque se baseia em fatos sem importância, mas, como tudo tem altos e baixos, também “Dos Enxidros” os tem.


Na madrugada do dia 11 de Novembro de 1953, duas carvoeiras do Casal da Serra bateram à porta dos meus pais para se abrigarem de uma tempestade. Traziam no cesto de verga remendado com arames um menino muito enfarruscado, mas muito gordinho, (5,250 Kg) que tinham encontrado na serra. Os meus pais, que só tinham meninas, resolveram ficar comigo, porque era eu o do cesto!
Foi esta a versão oficial do meu nascimento até ir para a escola primária e abrir um pouco os olhitos.
Por esta lógica, eu não nasci, fui encontrado. Faz-me lembrar aquela rapariga separada do marido, dos lados da Idanha, que vai à Segurança Social e, quando a minha mulher lhe perguntou qual era o seu estado civil, ela respondeu: - Deixada!
Teve sorte o do cesto do carvão de já não  existir a roda…
À medida que fui crescendo, foram-se inventando histórias para que eu não me afastasse muito de casa:
A minha avó Maria do Carmo, em conluio com a minha prima Jú, irmã  mais nova do Padre Jerónimo e muito mais esperta que eu, apesar de termos a mesma idade, inventaram “Os Estrangeiros”. Segundo elas, os estrangeiros eram uns homens muito maus que passavam na estrada nova, davam rebuçados aos meninos, os quais ficavam a dormir. Então eles metiam os meninos num carro e levavam-nos para o estrangeiro, claro.
Nunca soube o que era o “estrangeiro”, só que era uma coisa muito má e isso fazia com que eu mal me afastasse de casa.
Outra coisa de que eu tinha muito medo era do “Bicho da Quinta”:
Desde sempre, o meu pai e o meu sogro João Dias foram amigos. O meu sogro tinha uma espécie de tabernita na quinta do conde que também tinha uma entrada quase em frente da porta travessa da igreja. Era raro o dia em que o meu então futuro sogro não passasse à nossa porta e não convidasse o meu pai para ir “matar o bicho”. Ouvindo aquilo, eu imaginava coisas horríveis, mas ninguém me explicava nada, pela conveniência de me trazerem com rédea curta.
Visto à distância, até pode parecer que tem uma certa graça, mas que passei as do Algarve passei e só comecei a ver alguma coisa quando de facto fui para a escola. Eram outros tempos.
Que inveja tenho das crianças de agora, espertas como um alho!

E.H. 

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Caqueiras

Este texto já foi publicado há uns bons meses. Mas não faz mal, é CARNAVAL!

Não é fácil separar a Céu Parrita da comadre Aurélia. Apesar de serem muito diferentes, em certos aspetos,  completavam-se uma à outra. Nos cantos religiosos e profanos da nossa terra, estavam sempre as duas. Nos antigos teatros, nos passeios e até na  "marouva" que era e ainda é o roubo de frutas da época, lá estavam elas.
A Aurélia, de seu nome Aurélia Augusta Gama, tinha aquilo a que eu chamo "velhacaria boa" que no fundo é o sal que faz com que a nossa vida não seja uma coisa insípida, mas pelo contrário algo que vale a pena.
Já de pequena, no tempo em que se faziam teatros em S.  Vicente, ela lá estava.  Contava-me o meu pai que um dos teatros que cá se fizeram teve tanto êxito que tiveram um convite para ir representar às Minas da Panasqueira e lá foram. No fim da sessão, a pequenina Aurélia veio ao palco agradecer e disse:
- Vivam as Minas da Panasqueira!!! Vivam os Panascas todos!!!

Lembro-me de, muito novo, ainda ter tido o privilégio de cantar os Martírios, no grupo dela, fazendo eu a segunda voz.

Mas, porém, todavia, contudo, havia a parte da velhacaria:
Num tempo em que as festividades eram vividas com muita intensidade, o Carnaval não era exceção. Uma das atividades ou jogos desses dias era "a caqueira". Tenho que explicar aos mais novos que a caqueira era duas coisas:
1.º - Um jogo de Carnaval:  Roubava-se um cântaro de barro, enchia-se de palha seca e ateava-se o fogo. O barro aquecia e o jogo consistia em atirar o cântaro de uns para os outros, sem se queimar e sem o deixar cair. Quando alguém deixava cair o cântaro que naturalmente se partia, tinha que ir roubar outro para o jogo continuar. Era um tempo bom para os oleiros!
2.º - Uma partida de Carnaval: Enchia-se uma lata velha com todo o tipo de lixo, muitas vezes com excrementos e pequenos animais mortos e, aproveitando a calada da noite e o facto de as chaves estarem sempre nas fechaduras das portas, lançava-se a lata para as escadas de modo a cair por elas abaixo e espalhar toda aquela porcaria.

A Aurélia adorava escrever cartas de Carnaval! Eram cartas muito engraçadas que eram dirigidas a alguém de quem se queria fazer troça. Metiam alguns palavrões, algumas cenas picarescas, alguns desenhos maliciosos, etc.
Naquele ano, a pessoa escolhida para destinatário dessas cartas fui eu. Veio a primeira, veio a segunda e eu sem saber a proveniência. Quando uma noite me preparava para sair de casa, vejo uma terceira carta a ser metida por debaixo da porta. Abro de repente e vejo a Ermelinda a escapar à esquina, a caminho do café da Janja. A Ermelinda já era quase nora da Aurélia e daí eu fiquei a saber quem era a autora das cartas: Era a Aurélia!!
Urgia uma vingança ou eu não fosse "Escorpião" de gema.

Eu e os meus amigos, dos quais destaco o Zé Barroso, costumávamos reunir  à noite, à volta da braseira do café da Janja, e foi aí que foi delineado o  plano de ataque.
Arranjei uma lata de tinta vazia, roubei meia dúzia de malaguetas (caralhetos) secas à minha mãe e passámos pela casa do Zé Barroso que naquele tempo vivia na Rua da Costa e onde o lume estava sempre aceso. Enchemos a lata de brasas e fomos direitos à casa da Aurélia.
Chave na porta é porta aberta! Foi só por a lata no lumiar, por as malaguetas dentro e fugir.

No 1.º andar da casa estava a Aurélia, a Céu Parrita e a Ermelinda, já que o namorado, o meu amigo Elias, trabalhava de noite, por ser padeiro. Estavam todas a ver televisão, mas a dormir no rés do chão estava o Sr. José Roque, marido da Aurélia, que, além de ser um santo homem, sofria de doença pulmonar crónica. Tínhamos esquecido o Ti Zé Roque!!!
Quando, mais tarde, fomos espreitar à esquina, o quadro que vimos foi o seguinte:
Três mulheres com o rabo voltado umas para as outras, a tossir convulsivamente e uma delas (a Aurélia) a gritar:
- Foi aquele cabrão daquele Arnesto!!!
Como é que ela adivinhou?

Dêmos graças a Deus por não termos morto o Ti Zé Roque!

E. H.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

A rota de Santiago

Ermida de Santiago, junto à Partida

Quando eu era criança e bebia a luz das estrelas, apontava à minha mãe uma mancha luminosa que atravessava o céu, feita de estrelas sem fim, e ela respondia que Deus colocara ali aquelas estrelas todas, para guiar os peregrinos a Santiago de Compostela. Eu ficava a vê-los a caminhar, no escuro, de rosto ao céu, para não se perderem.
O meu amigo Carlos Matos tem vivido essa experiência, nos últimos anos, e diz-me que é mais correto falar de rotas do que de caminhos de Santiago. Ele considera que os caminheiros passavam por certa região, mas nem todos seguiam rigorosamente os mesmos caminhos, dependendo das povoações, das estalagens e das albergarias que ia havendo e que variaram ao longo dos tempos.
As peregrinações a lugares santos tornaram-se muito frequentes na Idade Média e terão tido o seu ponto alto, nos séculos XV e XVI, épocas em que o clima melhorou, a população cresceu, as cidades se animaram e o comércio renasceu.
Nesta região, passavam os peregrinos, vindos do sul, e tinham de vencer o obstáculo da Gardunha. Penso que serão desse período a ponte sobre a Ocreza, entre Castelo Branco e Cafede, chamada de Santiago, a capela de Santiago, à entrada de Cafede, e a ermida de São Tiago, junto à Partida. O percurso era por Castelo Branco, Cafede, Freixial do Campo (onde ainda havia uma estalagem, no século XVIII), Mourelo, Partida, Paradanta, Castelejo… A travessia da Gardunha, no Alto da Paradanta, é a mais fácil de toda a serra, pouco mais de 600 metros.
Em São Vicente da Beira, havia uma albergaria (do Espírito Santo), já no século XIV, e nos séculos XVII e XVIII existiam duas, a da Misericórdia e a do convento das religiosas franciscanas. Também existia uma estalagem. Creio que, nestes séculos, algum do movimento de peregrinos se terá deslocado para o percurso de Cafede, Tinalhas, São Vicente da Beira e Souto da Casa. Embora o Alto da Portela se situe a cerca de 850 metros de altitude, apenas a subida da Senhora da Orada à Portela apresenta alguma dificuldade, com a recompensa do conforto espiritual e material na ermida da Orada, que nesse tempo tinha um ermitão permanente, exceto no tempo das Guerras da Restauração (1640-1668). O alpendre abrigava quem quisesse pernoitar.
O caminho por Castelo Branco, Alcains, Lardosa, Soalheira, Castelo Novo e Alcongosta é o menos provável dos três, por ser muito mais difícil de fazer. Mesmo que existissem estalagens e/ou albergarias, e haveria pelo menos em Castelo Novo, sede de concelho, a subia à serra é ali particularmente violenta, atingindo esta passagem mais de 1000 metros de altura, com subida muitíssimo acentuada, no anfiteatro rochoso de Castelo Novo. Mas isso não significa, em absoluto, que este percurso não fosse utilizado e a verdade é que a Câmara Municipal do Fundão já o sinalizou, recentemente, a partir da Lardosa.

 O GEGA tem um mapa da rede de estradas do século XIX, bastante diferente da atual rede de estradas abertas, macdamizadas e mais tarde alcatroadas, nos finais do século XIX e no século XX.
Esta é uma cópia grosseira (e muito alterada) de parte deste mapa, a da região entre Castelo Branco e a serra da Gardunha.
Os três caminhos referidos no texto estão assinalados a cores. Penso existir um erro, meu (ao fazer a cópia) ou do mapa original, pois é Alcongosta que fica do outro lado de Castelo Novo e não o Souto da Casa.

 No mês de julho passado, passou por São Vicente da Beira um grupo excursionista vindo de Lisboa, pela mão da associação Aldeias Históricas de Portugal.
Coube-me mostrar-lhes a Vila e, junto a este pórtico do antigo convento das religiosas franciscanas, chamaram-me imediatamente a atenção para a vieira de Santiago, por cima do brasão franciscano, concluindo que estavam num caminho de Santiago.

José Teodoro Prata