Nesta Páscoa, lá revisitei
mais uma vez a nossa Praça. Esta praça virtual é boa, mas não deixa de ser um
sucedâneo e nada há de melhor que a realidade. O ângulo de visão aumenta
exponencialmente a luz sem o filtro da poluição da grande cidade e a pureza do
ar com os aromas dos campos em flor… nada que se lhe compare.
Depois o encontro (família
e amigos) que nos provoca aquele calor na boca do estômago e nos faz chegar uma
alegria imensa ao coração. Encontros felizes. Que também os há dos outros, de
uma amargura e tristeza medonhas, simbolizados pelo encontro do Senhor com sua
mãe e o amigo João, a caminho do Calvário, que o Pe. Jerónimo tão bem nos descreveu
na Fonte Velha, na Sexta-Feira Santa e onde encontrei o Tolelas que seguramente
não via há mais de trinta anos. Uma alegria das boas.
Num ápice, saltámos anos
e anos e encontrámo-nos na inspeção, com os nossos vinte anos, e mais longe
ainda na escola primária do edifício dos Paços do Concelho, em que o recreio
era a nossa Praça. Espetáculo!!!
Qualquer coisa de mágico
esta nossa capacidade de recordar, de revistar o passado, com uma nitidez
extraordinária que parece estarmos lá. E não haja dúvida que, quanto mais
avançamos no tempo, mais avança a tendência para lá voltar - é dos lugares aonde
se torna, sistematicamente, como diria o JMT – até se chegar àquela idade em
que nenhuma realidade se sobrepõe à memória e a conversa começa, cada vez mais,
a ser cada vez menos.
Quando forem ao Lar,
reparem nas pessoas que lá passaram a morar e verifiquem quantos é que ainda têm
fome de conversa. É notória a perda da capacidade de sonharem o futuro. Só
falam e sonham coisas do passado. A nossa amiga Libânia, pode seguramente
dar-nos testemunho dessa realidade confrangedora.
Mau! É melhor mudar de
assunto. Devo estar com algum ataque de melancolia, porque não era de nada
disto que vos quero falar. O que quero dizer-vos é que sou uma pessoa cheia de
sorte e, como tal, o meu cunhado, a pensar nas tradições, vai daí compra, no
início do Outono, dois borregos para criar. Um para ele, outro para mim. Como o
dele já estava tratado, tive eu que tratar do meu. Quem é que me aconselharam
como matador? O Manel Tobias. Que é seguramente o melhor na arte.
Falei com ele e, como já
tinha sido meu companheiro na fragata da azeitona de 1976/77, para o “João Potra”,
que depois de patrão ficou meu amigo até à morte, que, quando podia, me
arranjava umas costeletas de cabrito para o petisco e para quem o Manel
trabalhou muitos anos, este não me podia dizer que não, mesmo tendo de ir ao
cimo da serra a fazer o trabalhinho.
Pusemos a conversa em dia,
enquanto lhe dava apoio no tratamento do bicho. Fiquei embasbacado com a
destreza e a ferramentaria do Manel. Faca para sangrar, faca para abrir,
compressor para fazer ar para separar a pele. Um verdadeiro artista e eu a
lembrar-me da trabalheira que o meu pai tinha para esfolar um cabrito. Uma
tarde de volta dele. Às vezes completamente às aranhas, com a carne a agarrar-se
à pele, o polegar dorido de tanto escarafunchar e ele desesperado:
- Ó Chico, segura aí essa
porra, que vem tudo agarrado.
A nossa sorte é que
ninguém nos via, ali a aranhar, e já não havia choradela de Entrudo, mas que
aquilo trabalhado dava uma grande paródia, disso não tenho dúvida nenhuma. A
questão é que o Tó Manga, amigo da família, por termos sido vizinhos do Cimo de
Vila durante anos e anos, prometia-lhe:
- Ó ti Jaquim, fique
descansado que eu vou lá a matar-lhe o raio do cabrito.
Depois mais um copo aqui,
mais um borreguito ali para matar e raramente aparecia, porque nestas alturas havia
sempre muito que fazer…e a serra ainda fica longe.
E depois aquela mão
certeira do Manel a abrir a cabeça para tirar a mioleira! Os golpes nas massas
e nas mãos. Só visto, e confirma-se a fama. Mas o que mais me impressionou foi
quando enfia num buraquito da pele a mangueira ligada ao compressor e o gajo a
insuflar, a encher, a encher e eu cá para mim: querem lá ver que o Manel quer
por o bicho a voar depois de morto? Ainda lhe deitei a mão a uma perna, com
medo que o gajo levantasse voo e lembrei-me do Pigs on the wing dos Pink Floyd.
É a vida, como dizia o
outro.
F. Barroso