domingo, 7 de outubro de 2018

Ontem, hoje e amanhã!


            Olhando as ruas desertas e rememorando outros tempos…

No cimo de vila, o murmúrio do mundo já se fazia sentir. O Joaquim Moleiro tinha vindo cedo da Torre, aldeia ali dos lados do nascente onde, pelo tempo quente, se ouvia cantar o cuco e a poupa.  
Ah! homem excomungado para madrugar! Mas o caminho era longo! Quando chegava, com a burra ajoujada pelo peso, preparava-se para descarregar as taleigas da farinha na loja que o João Macedo trazia arrendada à Celeste Barata. De comum acordo, dispensavam-lhe um canto desse espaço para acomodar a azêmola.
Mandava-a parar à porta:  
— Xóóóó! Aííí!
As moscas e os moscardos começavam, àquela hora, o seu massacre. Era ainda de manhã, mas as ferroadas, essas, eram de meia-noite, na pele e, sobretudo, nas feridas do animal, que, por isso, não parava quieto! O dono bem lhe punha creolina nas chagas, que queimava e fedia como a peste! Mas desinfetava! Procurava, com essa operação, de uma assentada, afastar os insetos e tratar da saúde da jerica!
“O que arde cura.”, diziam os antigos! Mas, enquanto as úlceras não saravam, o bicho sofria a bom sofrer!
Depois de desembaraçada do carrego, só com o cabresto e a rédea, a Boneca — assim se chamava a burra — ia para a manjedoura roer uns caneirões de milho. Enquanto, o dono, tirava do bolso do casaco uma fatia de broa com um bocadinho de queijo que trazia embrulhada num pano e comia-a. Bebia-lhe, por cima, uma garrafinha de tinto!
Tudo, como recompensa da caminhada de cerca de uma légua que, nessa manhã, ambos — homem e jumenta — já acumulavam nas pernas!
Por isso, o Joaquim estava desejoso de lhe aliviar a carga, mas ela, estar queda, é que não havia meio.
— Alto aí, Boneca! Aííí!
Qual Boneca, qual carapuça? Não sossegava!
— Está quieta! Ai a alma do diabo! — berrava-lhe ao ouvido. — Levas com um negalho nos cornos…! Raios parta a burra e mais às moscas…! Vá lá ver!
Os homens tinham saído cedo para o trabalho. Muitas mulheres, àquela hora, estavam em casa a tratar da vida, a cuidar dos filhos pequenos e a ocupar-se dos animais de capoeira. Assomavam com as cabeças às janelas. E a garotada interrompia a brincadeira nas ruas próximas para assistir à cena, que era habitual. Mas que acabava por despertar curiosidade por ser, quase sempre, o primeiro acontecimento estranho à vizinhança que vinha ali quebrar o rebuliço.
À voz do dono, a asna quedava-se por instantes com medo de levar com a verdasca urdida de duas boas vergônteas de trovisco…! Mas logo voltava a abanar as orelhas e a sacudir-se, descoroçoada! Só depois de entrar na loja, livre da carga e da albarda, é que podia enxotar, à vontade, as moscas que vergastava com a cauda comprida.
E, para melhor digerir os caneirões fazia o que via fazer ao dono… mas com água: ia à pia da loja e bebia-lhe em cima uma barrigada! Porque a sede também era de quilómetros…
Pouco depois da descarga… 
— Eh! ti’ Laurentina — gritava o Joaquim Moleiro para a freguesa que morava, logo ali, duas portas acima — trago aqui um alqueire de farinha de milho para si!
— Já não era sem tempo! Há mais de oito dias que levou o grão, ó senhor Joaquim! — protestava a Laurentina.
Tratava-o por “senhor”, apesar de o bom do homem andar por ali a passar à sua porta, havia muitos e muitos anos! Deixá-lo! Entendia que, por cortesia, devia mais respeito aos estranhos. Quanto menos confiança, mais delicadeza. Não fossem lá dizer para as outras terras que a gente da vila era mal educada!
Ele, mal ouvira as queixas da freguesa! Já lá ia desarvorado, pelas ruas fora, equilibrando, em cada ombro, um saco de meio alqueire de farinha e outros dois nos arcos dos braços. Com o fato todo branco, fazia a volta a chamar as clientes, a bater-lhes à porta, para entregar as taleigas! Mas sempre foi retorquindo à reclamante, até dobrar a esquina:
— Pois é, ti’ Laurentina! Mas, com a entrada do bom tempo, chove cada vez menos e a azenha mói cada vez mais … devagar…! Começa a escassear a água no ribeiro da Torre…! — justificava.

Entrementes, por mor dos pregões que se ouviam, percebia-se que vinha a subir a rua da Costa a Palmira Sardinheira com uma caixa de peixe à cabeça. Para além da horta, era este o seu negócio! Arrematava as caixas na praça, junto da camioneta de Riachos, lá dos lados de Torres Novas, que vinha à vila duas ou três vezes por semana a trazer pescado fresco.
A rua da Costa, ao cimo, desembocava no largo da Cruz de Pedra. Local onde existia uma grande cruz de granito encostada à parede do ti’ Francisco Candeias. Em tempos, terá sido partida, mas fizeram outra que ainda hoje lá está! Ali confluíam mais três ruas.
Ora, este largo era onde se encontrava a loja em que estacionava o Joaquim Moleiro que, como já se sabe, andava, numa dobadoira, a entregar as taleigas da farinha. De caminho, recolhia logo o grão para fazer carga para a próxima moedura do seu engenho da Torre.     
Mas se já ali tinha havido vozearia naquele dia, logo de manhã, com a vinda do Moleiro, maior seria a algazarra com a chegada da Palmira que atroava os ares com a sua voz estridente, publicitando o peixe às potenciais interessadas:   
— Fresca e boa! — dizia ela, referindo-se à sardinha, o peixe que habitualmente vendia! É verdade que trazia outros peixes para outros gostos. Só que estes podiam variar, enquanto a sardinha é que não podia faltar! Assim os de Riachos a trouxessem! Por isso, usava sempre o mesmo pregão:
— Fresca e boa! — que repetia, alto e bom som, a espaço e a compasso.
— Ó cachopas vinde ver! Vinde ver! — anunciava em grandes brados para as donas de casa que estavam à escuta, muitas delas à espera do peixe para o jantar! — Mais barato não encontrais! Podeis correr a vila toda, raios! — asseverava, a plenos pulmões!
As mulheres, quando isto ouviam, levantavam as cabeças de esfulinhar ou deixavam de arrumar as casas e vinham às janelas e varandas. Olhos ávidos a cobiçar a frescura da mercadoria que ainda naquela madrugada fora pescada nas costas de Peniche!
Palmira era casada com o Zé Tono. “Tono” era alcunha. Devia haver uma razão. Na vila, arranjava-se sempre um motivo para epitetar um cidadão! Ele tinha a incumbência de fazer o correio, todos os dias, de carroça, entre a vila e o apeadeiro de Castelo Novo. Também era poeta e trazia sempre no bolso uns papéis com versos. Quando os dava a ler a um miúdo da escola, que sempre tinha melhor vista que ele, recebia palmas da roda!
Ela expansiva, ele muito metido no cortiço. Viviam nas últimas habitações, no alto do povoado. De maneira que a Palmira, a vender peixe a estas freguesas do cimo de vila, era como se estivesse em casa! Também podia vender lá para o fundo de vila. Mas, aí, havia outras peixeiras, como a mulher do ti’ Adelino Pinura…
Já o Albertino Maiaca ou o João Matrino, que, por vezes, andavam no negócio e moravam da praça para cima, preferiam ir para a Charneca ou para o Casal da Serra, vender. De modo que, cada peixeiro, tinha o seu mercado natural…     
— Ó Palmira o que é que lá trazes hoje?! — indagavam as mulheres que, entretanto, se foram acercando.
— Sardinha, carapau e uns cachuchos muito lindos!
E murmurava, depois, à boca pequena, para o círculo das que tinham já chegado perto da caixa do peixe, como se não quisesse ser ouvida:
— Às vezes trago pescada. É um peixe muito bom! Até dá para doentes! É aí para certas casas… Sabeis…?! Acham-na sempre cara…!
E a conversa continuava.    

Na vila não havia água canalizada. Muitos iam passando, de caminho para a fonte, pelo largo da Cruz de Pedra, onde o grupo de mulheres estava na conversa. E, já agora, diga-se o que atrás ficou por dizer: também havia neste largo o grande balcão da ti’ Maria Madalena, todo contruído, igualmente, em granito.
Nas escadas desse balcão punha, muitas vezes, o Joaquim Moleiro as taleigas do grão, quando armava a carga da burra e estava prestes a abalar de volta para a Torre. E quem vinha carregado da fonte, também ali pousava os cântaros de água, para aliviar os braços, após a subida da rua da Costa! Entretanto, fizeram-se ali mudanças urbanas e o balcão foi removido, deixando-se em seu lugar um arremedo de obra de arte que em nada dignifica o local. 
Mas alguns dos que passavam acabavam por parar no ajuntamento das vizinhas, a tagarelar um pouco.
— Bons dias nos dê Deus!
— Bom dia, ó ti’ Álvaro. Já vai à fonte? — disse uma das presentes.
O ti’ Álvaro, a ti’ Nazaré, o ti’ Bernardo, o ti’ Augusto, a ti’ Rita, a ti’ Espírito Santo, etc., tudo gente do bom tempo, eram dos mais velhos que ali moravam.
— Se vou à fonte? — redarguiu maquinalmente. — Vou, que a minha mulher já não pode das pernas… E muito menos com cântaros à cabeça.
E olhando para o adjunto feminino:
— Isto está aqui uma bela sociedade… Tantas sois vós, logo de manhã! — disse com alguma brejeirice.
— É para que veja!  
 — Estou a ver… — replicou compassadamente.
Perguntava o preço do peixe:
— A como é hoje a sardinha?
— É a vinte e cinco tostões a dúzia, ti’ Álvaro. — Respondeu a peixeira que era vizinha dele, quase porta com porta.
— Sim senhor… Parece boa…
— Vá à fonte e venha que há de levar, ao menos, uma dúzia, para si e para a ti’ Nazaré!
— Ná…! Hoje… há para lá um bocado de toucinho…
E mais não disse. Rodou à sua vida. Desceu a rua da Costa para a Fonte Velha, onde foi buscar dois grandes cântaros de lata cheios de água. Um em cada mão. Para ele e a mulher se lavarem, beberem e cozinharem. Era assim em todas as casas.

Mas o tempo não deixava parar o relógio. A manhã adiantava-se e estava a fazer-se tarde para as mulheres darem andamento ao jantar. Era preciso acender o lume!
A calcular pelo palavrório, as queridas leitoras e leitores ter-se-ão já apercebido que, naquele tempo, o almoço era de manhã, o jantar tinha lugar ao meio dia e, à noite, a ceia.
De repente, ouviram-se brados na esquina de cima:
— Ó ti’ Carolina … ti’ Carolina…!
As mulheres que se encontravam no largo da Cruz de Pedra, quedaram à escuta.
— O que será aquilo? — perguntaram entre si.
— Alguma aflição?
Não! Não! Era a ti’ Filomena Maiaca, uma vizinha da outra rua, a clamar da janela! Era a sua forma de chamar!
A ti’ Carolina veio acudir, incomodada.
— Credo! O que é, mulher?! Tanta lambança!
A Filomena fez que não ouviu o reparo.
— Tem lá lume?! — perguntou.
— Tenho, tenho!
— Deixe-me ir aí acender uma pinha!
— Então vem cá depressa, que eu já vou com o caldo quase pronto e isto pode apagar-se!
Foi então que as mulheres que se encontravam, um pouco mais abaixo, no largo da Cruz de Pedra, perceberam! E rumorejaram:
— Ai, o raio da ti’ Filomena! Ora com ‘feito! A clamunha que ela faz, a pedir lume só para poupar os fósforos!
Sem se importar com a angústia que provocava nas vizinhas, a Filomena dizia em surdina, consigo própria:
— Nossa Senhora, que se está a chegar o meio dia novo e ainda não meti as couves na panela! Que há de ser de mim! O meu homem mata-me!
Depois, como se estivesse ali uma outra pessoa, desabafou em voz alta:
— Hoje anda para a Oles, a trabalhar! Se não chego lá a tempo, enxovalha-me! Ele, com o copito, até já me tem dito: “Amaldiçoada mulher!”… aquele malandro!
Ora, para ir levar o comer ao marido ela tinha ainda que palmilhar muito terreno a pé. Maldizia a sua vida! Magra, rija, energética, com a chegada do bom tempo, tinha atirado aos infernos as sandálias que só lhe tolhiam os pés! Descia as escadas descalça e passava, a correr, na calçada velha, irregular, onde podia haver toda a sorte de objetos cortantes, como fragmentos de pau, vidro e metal. Acendia a pinha em casa da vizinha e voltava num ápice para atear a sua própria lareira. Escolhia as pedras onde punha os pés. Nada a podia deter!
E lá ia, à vida, lesta, tratar do jantar!

Enquanto isto, nas ruas, a criançada fazia a habitual gritaria das brincadeiras: a saltar à corda, a jogar à ronda, a fazer casinhas com terra amassada, a chapinhar no rego da regadia, na rua de cima, que passava pelo casario de alto abaixo, cuja água ia fertilizar os terrenos das casas ricas do fundo de vila! E dava caça às vespas amarelas, atraídas ao cheiro do peixe e que ziguezagueavam na humidade pouco sadia das ruas! Matavam moscas, espetavam-nas na ponta de carumas e iam atrás das vespas, ao despique:
— Abelhinha, abelhinha, toma lá a tua mosquinha!   
Se as vespas se atiravam ao isco metiam-nas em frascos. O vencedor, com o maior número de insetos a zumbir no recipiente de vidro, corria a exibi-lo aos outros, com grande alvoroço!   
Pelas ruas, ouvia-se o cacarejar ordinário e espantadiço das galinhas; escutava-se o miar furibundo e cavo dos gatos, quando alguém ameaça tirar-lhe a presa; percebia-se o ladrar dos cães, béu, béu; alcançava-se o ronco dos porcos que, por vezes, também vagueavam pela via pública. Nesta babel quase medieval de animais e sons, disputavam os bichos as tripas do peixe e o enxurro dos restos que lhes atiravam!
Porém, fazia-se um esforço para conter alguns destes abusos com penalizações aos donos. Era muito conhecida a multa dos “oitenta mil e quinhentos” (réis)!
Designação que a República haveria, corriqueiramente, de converter em escudos, valendo cada escudo, mil réis! Dizia-se que o Estado fazia uma divisão desse montante. Que consistia em reservar para a multa propriamente dita, oitenta escudos (oitenta mil réis); e meio escudo — cinquenta centavos, cinco tostões (ou quinhentos réis) — para pagar o papel do impresso do auto levantado ao prevaricador! Um procedimento, sem dúvida, de um particularismo verdadeiramente requintado e deliciosamente curioso! Legalidades!
Mas se a vida, ontem, nas ruas da vila, era feita de todo este barulho, espalhafato e alarido e, até, de uma certa desordem e insalubridade, que, à época, urgia melhorar, o certo é que o silêncio de hoje traz à lembrança uma grande agonia. E a morte pode espreitar amanhã!

Nota: neste texto podem ter sido usadas palavras ou expressões locais ou regionais que não constem da ortografia oficial.

José Barroso 

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Os grandes caciques


José Teodoro Prata

Franciscanismo na Beira Interior

Participámos nos Encontros organizados pela Misericórdia da Covilhã, a 3 e 4 de outubro
Estiveram presentes as nossas Santa Casa da Misericórdia e Ordem Franciscana Secular.
O José Teodoro e o José Manuel botaram faladura.
Acho que honrámos a nossa terra.


O convento das religiosas franciscanas.


 As cerimónias penitenciais da Semana Santa, iniciadas pelas irmãs do convento.


 A crença no Santo Cristo trazida por Teodósia da Paixão do convento da Nave, Sabugal.


A Ordem Franciscana Secular, criada por uma missão franciscana, em 1744.

Sinopse da nossa intervenção:
A ordem franciscana chegou institucionalmente a São Vicente da Beira na segunda metade do século XVI, através da fundação de um convento feminino. No entanto, o espírito franciscano já estava presente desde pelo menos o século XIV, quer pela existência de uma capela devotada a Santo António, na entrada noroeste da Vila, quer pela albergaria do Espírito Santo, que praticava o ideal da fraternidade, difundido em Portugal pela rainha Santa Isabel, adepta dos franciscanos espirituais.
Pensamos que esta albergaria do Espírito Santo foi a antepassada da irmandade da Misericórdia, fundada em São Vicente também na segunda metade do século XVI. E foi depois o convento franciscano que moldou geneticamente a Misericórdia: por um lado, continuou a obra assistencial que vinha de trás e por outro bebeu das religiosas do convento a devoção pelo Santo Cristo e a religiosidade penitencial da Semana Santa.
Em 1744, uma missão pregada pelos franciscanos de Brancanes deu origem à Fraternidade da Ordem Terceira, que ficou sediada na capela que fora de Santo António, então devotada a São Francisco. Esta fraternidade continua a organizar a festa anual a Santo António e a Procissão dos Terceiros.

José Teodoro Prata

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Premonições


Madre Teodósia da Paixão meditava nos claustros inferiores do seu convento; no topo norte existia um pequeno altar com a imagem do crucificado e um genuflexório.
Quando passava em frente do Crucificado, fletia ligeiramente a cabeça, fazia uma genuflexão e seguia.
No centro dos claustros, uma nogueira carregada de nozes era o orgulho das irmãs; empoleirada numa pequena escada, irmã Maria do Espírito Santo colhia…
Os claustros superiores estavam curiosos, a madre não parava.
Uma das colunas quadrangulares perguntou ao claustro inferior qual a razão de tanto mistério; este respondeu. A madre adivinhava o futuro e andava muito preocupada com o destino que iria ter o seu mosteiro
- Virá um dia em que não ficará pedra sobre pedra, os homens na sua ganância desmedida em vez de o conservarem, restaurarem, venderão os madeiramentos, toda a cantaria, a igreja será derrubada, o altar-mor desmontado e recolocado na capela da Senhora da Orada assim como os altares laterais. As imagens serão distribuídas pelos templos da vila.
- Não pode ser, um edifício tão bonito…
- Até o meu sepulcro que ficará na capela-mor desaparecerá. Todas as sepulturas das irmãs que se encontram num lugar próprio da cerca terão o mesmo destino. A terra será removida, cavada e semeada, no sítio onde se encontra a igreja os homens construirão um curral para as vacas e no andar superior guardarão os fenos onde instalarão também um pombal.
-Credo, cruzes canhoto; a nossa igreja um dia ficar reduzida a nada e no seu lugar surgir um curral!
- É o que ela vaticina.
A Madre, ao voltar a passar junto ao crucificado, ajoelhou e pediu perdão a Cristo.
Da cozinha saía um cheiro agradável, algumas irmãs estavam confeccionando esquecidos, cavacas, bolos de leite… a especialidade do convento era o pão-de-ló; uma maravilha.
A capela de São Domingos, que se situava um pouco mais acima, sentia-se envelhecer, de vez em quando soltava-se uma pedra, nada preocupante. A imagem do santo que se encontrava no altar do pequeno templo assustou-se quando caiu uma maior.
- Mau sinal; hoje caiu mais uma pedra, amanhã outra, os responsáveis não as recolocam, as paredes não aguentam e um dia a minha pequena casita desaparecerá. Se eu pudesse; não passo de uma estátua sem vida, sem alma. Quando já não houver capela, alguns devotos, ainda implantarão uma cruz de madeira neste local, as inclemências do tempo… desaparecerá também. Os homens continuarão a lembrar-se de mim, o lugar continuará a chamar-se São Domingos.
Santo André, apesar de viver junto à ribeira, teve uma visão idêntica, mas não deu grande importância.
Alguns dias passados, estavam na praça em amena cavaqueira, o sino da Misericórdia toca para a missa da tarde, passa a madre Teodósia acompanhada de uma noviça.
- Madre, onde vai com essa pressa toda, atalhou André, o apóstolo.
- Vou chamar o senhor vigário para ir administrar a extrema-unção a uma irmã, a idade não perdoa.
- Diga-nos uma coisa madre; acredita em profecias!
- A que propósito vem essa pergunta?
- O Domingos acabou de nos revelar um segredo que me deixou com a pulga atrás da orelha: disse-nos que a sua capela um dia desaparecerá. Eu também tive uma premonição idêntica, uma aparição me disse precisamente o mesmo. A minha capela também cairá.
- Não pode estar a acontecer; um destes dias andava meditando nos claustros inferiores do convento e também tive uma visão parecida.
- São catástrofes a mais, respondeu Vicente.
- Onde há fumo… atalhou Domingos
Entretanto, vinda do campo Valouro, surge a cavalo num burrinho Bárbara; desmonta, ata a corda a uma argola que se encontra à porta da Igreja e aproxima-se do grupo.
- Santas e boas tardes a todos, que o Senhor esteja connosco.
- Amem.
- Então tu por aqui?
-Venho falar com o senhor vigário, aproxima-se a minha festa e queria ver se este ano não havia pancadaria entre os meus devotos, amo-os a todos por igual. O povo do Sobral afirma a pés juntos que a minha capela lhes pertence, as gentes da vila, que não, a capela pertence a São Vicente. Na verdade, a minha casa está na fronteira das duas paróquias, mas não há dúvida nenhuma que se encontra em terras vicentinas. Desde que me cultuam por estas paragens sempre ouvi contar ao povo que a vila nunca necessitou de muralhas porque estava bem guardada. No campo estou eu, no cimo da vila, estás tu, ó Domingos.
- No fundo da vila, moro eu; respondeu André.
- E na serra, num local lindíssimo está a nossa Mãe Orada, atalha Vicente.
Se necessário for, as autoridades enviarão sentinelas para o Velho Castelo, ao mais pequeno sinal…
- Vê lá tu, Bárbara, que os nossos amigos e a madre afirmam a pés juntos que um dia as suas casas virão abaixo não ficando pedra sobre pedra
Bárbara corou, quase ia desmaiando quando escutou tal….
- Que tens tu? Ripostou Vicente
- Não é que eu tive a mesma visão? Como os povos da vila e do Sobral não se entendem quanto ao senhorio da capela, vão deixar de me cultuar como têm feito até aqui e um dia pela calada da noite, a mando do senhor vigário, virá um ganhão com o carro cheio de palha abre a porta, tira-me do altar, esconde-me no meio da palha e traz-me para a vila.
Como deixo de morar na capela, esta vai caindo até ficarem somente vestígios; mas o povo continuará a chamar ao local a minha graça.
- São coincidências a mais, atalhou Vicente; não pode ser; desaparecer o convento e as vossas capelas, naa… As autoridades locais e o povo devoto nunca consentirão.
- Não queria contar, diz Vicente, para não vos alarmar, mas também tive uma visão algo estranha. No dia da minha festa, enquanto os padres distribuíam o pão ao povo crente, eu do meu andor vi uma luz resplandecente ao fundo da igreja que mostrava o seguinte:
·        A vila irá ficar sem o concelho;
·        A vila irá ficar sem o hospital;
·        A vila irá ficar sem a C.G.D; não sei o que significam estas letras;
·        Solares, casas, serão derrubadas;
·        Muitas pessoas sairão à procura de melhores venturas;
·        A que outrora foi uma das principais vilas entre os rios Zêzere e o Tejo, passará a ser uma simples e modesta vila, com muitas casas e pouca gente.
- Credo! responderam todos ao mesmo tempo.
O sino da igreja conventual tocava a dobrar, pouco depois todos os sinos dos templos da vila; uma freira tinha acabado de entregar a alma ao Criador.
Na rua da Igreja ouvia-se nitidamente as ferraduras de um cavalo galopando.
- Olha quem chegou; Ó Tiago, para onde vais com tanta pressa?
-  Vim de propósito para vos dizer que a minha festa continuará a realizar-se, o meu largo um dia será revestido com um produto preto que impermeabiliza o meu terreiro ficando mais lindo, os bombos da Partida, Mourelo, Violeiro e de outras aldeias continuarão a tocar nos dias das minhas festas, dando as habituais voltas à capela.
-Já agora, atalhou Bárbara, também vos quero comunicar, os moradores que vivem no bairro do Casal da Fraga construirão uma capelinha em minha honra e eu continuarei a ser cultuada na vila.
Pedro também queria intervir, impossível, pesado como é, não foi capaz de se levantar da sua cadeira.
- Eu sou o patrono dos sacerdotes da região, apesar de continuar exposto no meu altar, à medida que os padres vão morrendo o meu culto vai desaparecendo
- Nem tudo é mau, atalhou Vicente; um dia construirão uma linda escola, uma bela piscina, um confortável lar de idosos, uma fábrica de engarrafamento de águas puríssimas que nascem nas entranhas da Guardunha. a Orada transformar-se-á num lugar aprazível… Quem sabe a vila não volte a ter a importância de outrora.
Oxalá!

J.M.S