sábado, 29 de março de 2025

Alheiras e brincadeiras

A matação tinha, no nosso passado, uma dupla função: económica e social (Albano Mendes de Matos, “A Matação na Gardunha”. 2007). Económica, pois garantia às famílias a proteína para alimentar os corpos ao longo de todo o ano; social, porque era uma reunião de família e até agregava amigos e vizinhos mais chegados.

A interajuda era por isso uma constante, começando na véspera da morte do animal e prolongando-se pelos dias necessários, até o fumeiro estar repleto e a salgadeira cheia. E, nessa partilha de tarefas e saberes, nunca faltava o convívio, muitas vezes em forma de brincadeiras.

O Chico, matador experiente e grande contador de histórias passadas, contou-nos algumas. Havia um homem muito mulherengo, que achou no bolso do casaco a genitália de uma porca várias vezes parideira acabada de matar. Ficou furioso e logo apontou um culpado. Não, disse uma mulher, fui eu, para que tenhas uma ao teu dispor, sempre que te apetecer e essa é bem grande!

Outro costume das matações era os homens meterem nos bolsos dos rapazes os cascos (as sapatas/as unhas) que tiravam das patas dos porcos. Arrancá-las era das tarefas mais complicadas, pois tinham de ser bem queimadas, até ficarem quase em brasa, depois eram pontapeadas e finalmente arrancadas com um puxão violento e rápido, antes que se queimassem as mãos, que se queriam calejadas. Um dia, alguém arrancou uma unha e atirou-a ao ar, na urgência de a largar. Um rapaz abalou aos gritos e saltos, pois a unha quase em fogo entrara-lhe pelo colarinho da camisa desabotoada e descera pelas costas.

Estes meses frios, próprios para as matações, seriam dos períodos do ano mais complicados para aqueles dos cristãos-novos que nos séculos passados persistiam secretamente nas crenças e práticas do judaísmo. Para os povos do Médio Oriente, o porco é um animal imundo, que não se deve comer. Tanto o judaísmo como o islamismo incorporaram essa regra na sua teologia, embora a crença seja possivelmente anterior a estas religiões. É estranho que mesmo ao lado, na civilização egípcia, muito anterior àquelas, se acreditava que a deusa Nut, a abóbada celeste, era uma porca deitada a alimentar as suas crias, os corpos celestes (devorava-os ao amanhecer, por isso estão ocultos à luz do dia, mas vomitava-os no crepúsculo da tarde, tornando-se visíveis na escuridão da noite). Outros povos no passado e no presente (Nova Guiné) consideram o porco um animal sagrado e por isso o sacrificam e consomem apenas em moimentos especiais, como oferenda aos deuses. Sabendo nós que judeus e muçulmanos não comem porco por ser imundo, mas consomem galinha, igualmente devoradora de imundices, será que esta interdição de comer carne do porco teve antes origem, em épocas primitivas, no seu carácter sagrado? Aqui socorremo-nos novamente da obra “A Matação na Gardunha” de Albano Mendes de Matos.

Desconhecemos a origem da crença e os nossos antepassados cristãos novos também não saberiam, nem isso lhes interessaria, se fosse essa a sua fé. Para a esconder, inventaram as alheiras, enchido feitos de carnes de aves e caça, com que compunham o fumeiro e assim enganavam os vizinhos cristãos velhos. Mas como evitar a “festa” da matação, sobretudo para aqueles bem inseridos nas comunidades e até unidos por laços de sangue?

Crenças à parte, o porco devia ser bem alimentado, o que dependia muito das posses dos seus donos. A sua rotina alimentar constava da habitual lavadura, água obtida de uma pré-lavagem das loiças da alimentação humana, a que se misturavam os farelos (cascas dos cereais). Pelos campos, apanhavam-se saramagos, labaças, beldroegas… Na minha infância, contava-se que o Doutor Alves dissera a alguém que desse couves ao porco para tornar a sua carne mais saborosa. Comia, pois, couves, nabos e botelhas da horta e meses ou semanas antes da matação engordava-se com bolota e bagaço dos lagares. Era uma delícia comer o rabo do porco cozido, acompanhado de legumes, no Domingo Gordo!

(Coisas de que falámos na 6.ª sessão do Conta-me histórias, no Casal da Fraga, dia 17-03-2025)

José Teodoro Prata

quarta-feira, 26 de março de 2025

Quaresmas

 

Chamamos-lhes quaresmas (as brancas) e por este dias enfeitam os nossos campos. Estas estão nos bordos do caminho, no Ribeiro Dom Bento, para as Quintas e a Senhora da Orada.

Nome científico: Saxifraga granulata.

José Teodoro Prata

quinta-feira, 20 de março de 2025

A matação


 
É de gelo o ar na alvorada deste fim de janeiro; o céu, coberto de nuvens, talvez para que a falta de claridade encubra um pouco o que está prestes a acontecer.

Aqui, sou a única mulher entre vários homens, quase todos partilhando semelhanças, físicas e de modos, comuns a irmãos, filhos, tios e primos. Estão de copo na mão, à roda de uma fogueira, perto da pocilga. «Não tem menos de oito arrobas!», gaba-se o dono, que andou a engordá-lo a bolota e bagaço nas últimas semanas. Há quem se ria do exagero.

Esvaziados os copos, um dos homens entra dentro da pocilga, ata uma corda numa das patas do porco e tenta arrastá-lo para fora. Mas ele não quer sair, e grunhe, aflito. Entram mais dois: um empurra o animal pelo rabo e o outro puxa-o pelas orelhas. Já cá fora, ajudados por outros homens, levam-no até perto de um banco de madeira, comprido e largo; juntando forças, estendem-no em cima, deitado de lado, e tentam amarrar-lhe as patas com cordas, mas o animal continua a grunhir e a estrebuchar, e quase cai do banco abaixo. Os homens enervam-se e berram, atribuindo culpas uns aos outros, mas, por fim, conseguem imobilizá-lo. O dono do porco desculpa-se com outros afazeres e afasta-se.

Uma mulher aproxima-se com um alguidar de barro e coloca-o por baixo do pescoço do porco, já bem lavado e seco. O matador espeta a faca de forma certeira e o sangue escorre, farto, para o alguidar onde a mulher o apula e vai mexendo com uma colher de pau. Depois de muita luta, o animal desiste, e deita cá para fora o último sopro de vida. Há quem se ria: «Olha, já deitou a morcela!».

Alguns homens vão chamuscando o corpo do porco com carqueja a arder; outros, por traz, raspam-lhe a pele com a navalha que cada um traz no bolso. Demoram-se mais nas orelhas, até ficarem bem limpas, e nos pés, até saltarem as unhas. O cheiro a pele e a pelo queimado mistura-se com o cheiro a sangue e a medo. Depois de bem lavado, carregam o animal para a loja, preso no chambaril pelas patas traseiras, e penduram-no na sonave.

O dono do porco reaparece; chegam também algumas mulheres; uma com um tabuleiro de madeira debaixo do braço. É nele que o matador coloca as tripas retiradas através de um corte feito desde a cabeça até ao rabo do animal. Corta depois um pedaço de toucinho da barriga e entrega-o a uma delas: é para o seventre. Um homem reclama a passarinha e as morejas para o petisco a acompanhar a prova do vinho da última colheita.

Três mulheres abalam para a ribeira; uma com o tabuleiro à cabeça; as outras com baldes cheios de laranjas, sal e vinagre, para lavarem das tripas. As outras juntam-se na cozinha e, enquanto umas se ocupam do almoço, outras pegam em facas e tesouras, e todas sabem o que têm a fazer. A forma como aproveitam a carne ensanguentada, a cortam e temperam com sal, cominhos, salsa e sumo de laranja, tudo misturado no alguidar onde guardaram o sangue, diz bem da experiência e das memórias colhidas de mães e avós. Na rua, os homens falam mais alto, alguns já a justificar o dito «Porco morto, aguardente no corpo; porco virado, mais um copo emborcado; vira-se outra vez….», que cumpriram à risca.

 

À mesa, entre novos e velhos, sentam-se para cima de vinte pessoas; quase só homens, que as mulheres, depois da sopa, não param de encher travessas com arroz de bacalhau, feijão baqueado, batatas cozidas, ervas e seventre, que vão servindo aos homens. «E o vinho, já se acabou? Tragam mais vinho, não quero copos vazios em cima da mesa!» reclama o dono da casa.  

O cheiro à morcela da prova, acabada de assar, espevita o resto da gula de todos.

 - Parece que este ano ainda estão melhor!» Comenta alguém.

 - Cá na minha casa é tudo bom, que eu trato o ganal como é dado!

 - Estás a dizer que eu não trato bem o meu?

 - Então quanto é que o teu pesava? Vá, diz lá!

 - Cento e dez…

 - Pois fica sabendo que o meu há de pesar mais uns vinte.

 - Como é que sabes? Já o pesaste?

 -Não pesei, mas avalia-se pelos presuntos, ou não sabes que é pelos presuntos que se vê?

 - O que eu sei é que todos os anos dizes a mesma coisa e depois vai-se a ver…

 - Quando? Quando é que eu disse que o meu pesava mais que o teu e era mentira?

A cunhada interrompe:

 - Já chega! Mas será possível que sempre que vocês os dois se juntam à mesa, há discussão?

 - Se sou ofendido, não tenho que me defender? Que diabo!

 - Acabem lá com isso e comam as papas, que estão de comer e chorar por mais.

E a conversa prossegue durante o café, amolecida agora por mais um copinho de aguardente «para ajudar a desmoer»:  

 -Este até me seguia. Era só dizer: «anda, anda» e ele vinha atrás de mim. Levava-o para o leirão de baixo para comer a azeitona caída e no fim era só dizer: «Anda embora», e ele vinha.

O matador não quis ficar atrás:

 - Um cabrito que eu lá tinha também era a coisa mais esperta que já se viu. A mãe rejeitou-o e tive que o criar a biberão. O corno andava comigo para todo o lado. Eu vinha para aqui e ele vinha, eu ia para ali e ele ia. Pelo Natal chamaram-me aí numa casa para ir matar um cabrito. Fui e quando volto o gajo vem ter comigo, que sempre que chegava, ele vinha ter comigo. Chego-me à beira dele para lhe fazer uma festa e o gajo cheira-me e começa recuar, desconfiado. Chamo-o “Anda cá”, e ele foge-me. Fiquei preado! “Anda cá, seu filho duma cabra, que eu já te enxofro”, corri atrás do gajo e pumba: acertei-lhe mesmo no meio dos cornos. Nem fui capaz de o comer… Isto para dizer que os animais são espertos… Mais que algumas pessoas.

Depois, volta-se para o dono da casa:

- Mas se te custa tanto matar os bácoros, porque é que os crias? Deixa-te disto.

- Já estava criado, o que é que querias que lhe fizesse? Fazia como a Ti Porquéria que teve lá um que até já tinha os dentes revirados?

- Eu sou franco, também não é trabalho que goste de fazer, mas se não sou eu e mais um ou dois que ainda por aí há, quem é que mata algum porco que por aí se vai criando? Dantes havia cá muitos matadores: era o Mudo, o Fernando Latoeiro, o João da Resgate, o Fecisco Ramalho…; no Casal era mais o Jaquim Pique, mas havia outros que também se ajeitavam. Nesse tempo, por esta altura, não tinham mãos a medir. Quase que se governavam só com os presentes que recebiam. Tudo do bom e do melhor; só de lombo, quem desse menos que uma mão-travessa, estava chapado…

Já era noite quando o matador foi desmanchar o porco. Depois, ajudado pelo dono, meteu os presuntos e outros bocados de carne e toucinho na salgadeira, cada peça devidamente separada da outra com sal: por cima as que se comiam mais cedo; por baixo as que ficavam para o tarde.  

As mulheres terão ainda muito que fazer durante alguns dias a cortar e temperar as carnes e gorduras destinadas aos enchidos: primeiro as morcelas, depois as chouriças e no fim as farinheiras. As varas do fumeiro vão ficar penduradas sobre a lareira até tudo estar capaz de ser guardado para ser comido pelo ano fora.

 

ML Ferreira

segunda-feira, 17 de março de 2025

Como eram as matações e as descamisas







Ontem, o Conta-me histórias foi diferente, mais antropologia, etnologia e etnografia do que as habituais pequenas histórias passadas com as gentes da nossa comunidade. Mas a conversa foi muito animada e a maioria dos mais de 30 participantes deram o seu testemunho sobre os temas abordados: as matações e as descamisas. Ficou o registo áudio, agora a passar a escrito.

A Lurdes Marcelino até nos surpreendeu com duas canções das descamisas da sua juventude (noutras regiões designadas por desfolhadas). Uma delas cantada pelo rancho vicentino e a outra imortalizada pelo Zeca Afonso: Milho Verde.

O grande ausente-presente foi o Dr. Albano Mendes de Matos, do Casal da Serra, a propósito do seu estudo A Matação na Gardunha.

No final, um magnífico lanche, graças à generosidade da Libânia e da Lurdes Marcelino. Obrigado também à direção do Centro Cultural e Recreativo do Casal da Fraga.

José Teodoro Prata

sexta-feira, 14 de março de 2025

Projeto Conta-me histórias, 6.ª sessão

 
Vamos contar histórias das matações, das descamisas...

É já este domingo!

José Teodoro Prata

quinta-feira, 13 de março de 2025

Os meus pintainhos

 

Já nasceram, no Dia da Mulher, como previsto. A Natureza é um relógio suíço!

De 5 ovos, nasceram 2 + 2 ovos não galados (há um termo para isto, talvez golos, mas não tenho a certeza) + 1 criado, mas que não rompeu, embora a casca fosse frágil.

O amarelo é uma fêmea e o castanho um macho. Sabe-se pelas penas das asas, nos primeiros 3 dias de vida: as fêmeas têm as penas das extremidades das asas todas ao mesmo nível e nos machos estão em duas filas intercaladas (comprida, curta, comprida, curta...)

Tenho uma galinha amarela, que na realidade é castanha alaranjada, e três castanhas. O macho é de uma galinha castanha e a fêmea da chamada amarela. Agora percebo porque se chamam amarelas a galinhas que na realidade são quase castanhas: na infância são amarelas.

Daqui a uns meses há mais! Isto é como aprender a cozer pão: para a próxima, correrá melhor!

José Teodoro Prata

terça-feira, 11 de março de 2025

A hibernação da salamandra

 


Serra da Gardunha, Ribeiro Dom Bento, São Vicente da Beira

Ao cortar umas silvas, interrompi-lhe a hibernação. Mas depressa arranjou novo esconderijo.

José Teodoro Prata