A matação tinha, no nosso passado, uma dupla função:
económica e social (Albano Mendes de Matos, “A Matação na Gardunha”. 2007).
Económica, pois garantia às famílias a proteína para alimentar os corpos ao
longo de todo o ano; social, porque era uma reunião de família e até agregava
amigos e vizinhos mais chegados.
A interajuda era por isso uma constante, começando na véspera
da morte do animal e prolongando-se pelos dias necessários, até o fumeiro estar
repleto e a salgadeira cheia. E, nessa partilha de tarefas e saberes, nunca
faltava o convívio, muitas vezes em forma de brincadeiras.
O Chico, matador experiente e grande contador de histórias
passadas, contou-nos algumas. Havia um homem muito mulherengo, que achou no
bolso do casaco a genitália de uma porca várias vezes parideira acabada de
matar. Ficou furioso e logo apontou um culpado. Não, disse uma mulher, fui eu,
para que tenhas uma ao teu dispor, sempre que te apetecer e essa é bem grande!
Outro costume das matações era os homens meterem nos bolsos
dos rapazes os cascos (as sapatas/as unhas) que tiravam das patas dos porcos.
Arrancá-las era das tarefas mais complicadas, pois tinham de ser bem queimadas,
até ficarem quase em brasa, depois eram pontapeadas e finalmente arrancadas com
um puxão violento e rápido, antes que se queimassem as mãos, que se queriam
calejadas. Um dia, alguém arrancou uma unha e atirou-a ao ar, na urgência de a
largar. Um rapaz abalou aos gritos e saltos, pois a unha quase em fogo
entrara-lhe pelo colarinho da camisa desabotoada e descera pelas costas.
Estes meses frios, próprios para as matações, seriam dos
períodos do ano mais complicados para aqueles dos cristãos-novos que nos
séculos passados persistiam secretamente nas crenças e práticas do judaísmo.
Para os povos do Médio Oriente, o porco é um animal imundo, que não se deve
comer. Tanto o judaísmo como o islamismo incorporaram essa regra na sua
teologia, embora a crença seja possivelmente anterior a estas religiões. É
estranho que mesmo ao lado, na civilização egípcia, muito anterior àquelas, se
acreditava que a deusa Nut, a abóbada celeste, era uma porca deitada a
alimentar as suas crias, os corpos celestes (devorava-os ao amanhecer, por isso
estão ocultos à luz do dia, mas vomitava-os no crepúsculo da tarde, tornando-se
visíveis na escuridão da noite). Outros povos no passado e no presente (Nova
Guiné) consideram o porco um animal sagrado e por isso o sacrificam e consomem apenas
em moimentos especiais, como oferenda aos deuses. Sabendo nós que judeus e
muçulmanos não comem porco por ser imundo, mas consomem galinha, igualmente devoradora
de imundices, será que esta interdição de comer carne do porco teve antes
origem, em épocas primitivas, no seu carácter sagrado? Aqui socorremo-nos
novamente da obra “A Matação na Gardunha” de Albano Mendes de Matos.
Desconhecemos a origem da crença e os nossos antepassados
cristãos novos também não saberiam, nem isso lhes interessaria, se fosse essa a
sua fé. Para a esconder, inventaram as alheiras, enchido feitos de carnes de aves e caça, com
que compunham o fumeiro e assim enganavam os vizinhos cristãos velhos. Mas como
evitar a “festa” da matação, sobretudo para aqueles bem inseridos nas
comunidades e até unidos por laços de sangue?
Crenças à parte, o porco devia ser bem alimentado, o que
dependia muito das posses dos seus donos. A sua rotina alimentar constava da
habitual lavadura, água obtida de uma pré-lavagem das loiças da alimentação
humana, a que se misturavam os farelos (cascas dos cereais). Pelos campos,
apanhavam-se saramagos, labaças, beldroegas… Na minha infância, contava-se que
o Doutor Alves dissera a alguém que desse couves ao porco para tornar a sua
carne mais saborosa. Comia, pois, couves, nabos e botelhas da horta e meses ou
semanas antes da matação engordava-se com bolota e bagaço dos lagares. Era uma
delícia comer o rabo do porco cozido, acompanhado de legumes, no Domingo Gordo!
(Coisas de que falámos na 6.ª sessão do Conta-me histórias,
no Casal da Fraga, dia 17-03-2025)
José Teodoro Prata