sábado, 11 de agosto de 2012

A fuga dos padres


Quando eu era pequena, o meu avô contava-me como ajudou a fugir os padres de São Fiel. O Colégio do Louriçal era uma escola muito boa, para os ricos. Mas os republicanos fecharam o colégio logo que chegaram ao governo e os soldados montaram um cerco, para ninguém sair.

Nessa altura trabalhava lá a Maria Mendes do Casal da Serra, nas limpezas. Nesse dia, não a deixaram ir dormir a casa. Os padres telefonaram para Lisboa e souberam que os jesuítas estavam a ser presos. Reinava um grande alvoroço entre os padres e a criadagem, ninguém sabia o que fazer.

Então a Maria Mendes lembrou-se de fugirem pelas traseiras, para a serra. Os padres fizeram uma reunião e acharam que era o melhor. Ficavam dois, o reitor e o secretário, a tomar conta da casa, e os 13 professores e prefeitos iam tentar escapar. Os criados podiam ficar, pois a eles ninguém queria fazer mal e sempre ajudavam a tomar conta dos alunos internos.

Os jesuítas despiram as batinas e disfarçaram-me com calças e casacos, como os homens. Saíram por uma porta que dava para o pomar e foram seguindo em fila indiana, por baixo das laranjeiras, até uma parede sem portas que dava para o mato. A Maria Mendes pôs os pés numas pedras salientes, trepou para cimo do muro, sentou-se nele, virou-se e depois dependurou-se numa pedra e deixou-se cair para o outro lado. “Venham”, chamou baixinho. Os homens saltaram, um a um, sem se fazerem notados e seguiram-na agachados, pelo meio dos matos, serra a cima.

A subida foi muito difícil, porque tinham de evitar os caminhos que podiam estar vigiados e a Maria Mendes nem sempre conseguia encontrar sítios por onde fosse fácil passar. Várias vezes foram ter a penhascos enormes, cercados de matos cerrados que tiveram de contornar. O tempo começava já a arrefecer e o céu estava carregado de nuvens, felizmente não chovia. Mas não se via nada e todos arfavam de cansaço, menos a Maria Mendes, habituada às longas caminhadas diárias na serra e que parecia ver no escuro como os gatos.

Duas horas depois, desembocaram no caminho que corta a encosta da serra na horizontal e segue para o Casal da Serra. Seguiram por ele o mais depressa que puderam, embora já pudessem pouco. Alguns, mais velhos e pesados, vinham em muito mau estado.

Já passava muito da meia noite e no Casal todos dormiam. A Maria Mendes deixou os padres num beco escuro e foi a casa buscar a chave da Casa Grande que a Misericórdia lhe entregara para cuidar. Meteu-os lá dentro, fechou a porta e foi para sua casa descansar.

A primeira luz do dia já a achou à porta do irmão António a pedir-lhe ajuda. Ele estava de saída para as lavras, com os bois. Contou à mulher e arranjaram pão e marmelada feita na véspera. Desenrascava. Para o jantar, as duas mulheres iam fazer um caldo e à ceia logo se via. Tudo se havia de resolver, com a ajuda de Deus.

O António foi com o filho mais velho buscar uma carrada de mato que despejou junto à porta da loja Casa Grande. Não chegou e foi buscar outra, em molhos, para disfarçar a porta. Assim já ninguém encontrava os padres, pois a ligação da loja à casa era por um alçapão na sala que eles esconderam com a cómoda em cima.

Os vizinhos estranharam a Maria Mendes faltar ao trabalho, mas ela contou que o governo tinha fechado o Colégio. Era verdade, confirmaram à noite os jornaleiros a trabalhar nas terras do Ramos Preto.

A mulher do António pôs os filhos mais pequenos a debulhar o milho das maçarocas. Depois levou-o ao moinho e à tarde ela e a cunhada amassaram a farinha e cozeram pão no forno. O António matou um cabrito e as mulheres guisaram a carne cortada aos bocados pequeninos. Que fosse tudo pela salvação das suas almas, consolavam-se.

Mas eram muitas bocas e não teriam comida por muito tempo. Aquilo não era futuro. Os padres também o sabiam. Ao segundo dia, conversaram todos e decidiram tentar passar os padres para Espanha. Podiam ser levados pelos contrabandistas, mas três padres não aguentariam ir a pé tantos quilómetros, por serem velhos uns e o outro doente, um professor italiano, qualquer coisa no coração que o cansava muito.

O António mandou o filho a Castelo Novo, com recado para o Manel Espanhol. Ele foi ao Casal da Fraga falar com o meu avô, criador e marchante de gado, homem muito respeitador da Igreja, como o Tonho Mendes. No regresso, passou na Vila, pela casa do padre Santiago, que também se ofereceu para ajudar, mandando o seu criado com o cavalo, pois ele já estava muito velho para ir pessoalmente.

No terceiro dia, o António e o filho levaram os dez padres para a Lapa Escura, nas proximidades do Castelo Velho, tal como lhes mandara o contrabandista. Iam lá ficar escondidos algum tempo, conforme ele demorasse a combinar a viagem com outros. Ali ficaram ao frio, embrulhados em mantas, felizmente abrigados debaixo da lapa, comendo o pouco que a Maria Mendes lhes conseguia levar. Ao quarto dia, já não os achou.

Entretanto, na noite seguinte à ida dos padres para a Lapa Escura, quando sentiu que já todos dormiam, o António saiu sorrateiro com os três padres, pelo caminho das Lameiras, até à Senhora da Orada. Levava o mais fraco no macho e ele e os outros dois iam a pé. Depois, os outros revezaram-se na alimária.

O meu avô e o criado do padre Santiago já os esperavam. Não junto à capela, pois a casa do ermitão era logo por cima e os cães iam dar sinal, acordando os donos. Estavam no caminho, um pouco acima, antes da casa do Rabaçal. Os dois padres que vinham a pé subiram para as montadas e lá seguiram todos por aquela serra acima, a caminho do Fundão. Na Portela, desceram para o Vale d`Urso e daqui sempre caminho chão até ao Fundão. Chegaram à estação do comboio ainda mal clareava. Abrigaram-se debaixo de uns arbustos, em sítio afastado, onde ninguém passava. Esperaram e entretanto aproveitaram para comer uns pedaços de broa que tinham trazido para a desjejua. O criado do padre Santiago abriu a navalha e tirou da bolsa um chouriço que passou por todos. Depois meteu a navalha na bolsa e entregou-a ainda cheia a um dos padres, para a viagem, oferta do padre Santiago.

Meses depois, começaram a chegar ao Casal da Serra cartas de Espanha a agradecer aos Mendes a sua generosa hospitalidade.

 Nota: Esta história ficcional baseia-se em factos reais, testemunhados oralmente por gentes da nossa região. No seu blogue "Varanda da Gardunha", o Dr. Albano Mendes de Matos registou as histórias que lhe contaram sobre a fuga, pelo Casal da Serra, dos padres de São Fiel. Há poucos meses, o Pe. Jerónimo disse-me que um dia uma senhora idosa de São Vicente lhe contou que o seu pai ajudara a fugir alguns dos jesuítas do Colégio de São Fiel. Tudo indica que sejam verdadeiros estes relatos transmitidos de boca em boca.

Nenhum comentário: