sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Coisas do diabo

O Verão começara quente, um ar de moléstia. Eu andava com um catarral dos diabos, não sei onde é que o meu corpo tão pequeno ia buscar tanto escarro. “Deita essa porcaria fora, que te faz bem!”, encorajava-me a senhora gorda e de preto, a cada ataque de tosse que me assaltava. Ela visitara-nos nessa tarde, a pretexto de umas roupas velhas para a minha mãe aproveitar ou fazer fitas.

Estávamos na sala, com a porta da rua aberta, ela sentada numa cadeira e a minha mãe noutra, as duas a conversar, enquanto a minha mãe aproveitava para cortar panos velhos em fitas e cosê-las umas às outras. Depois enrolava-as em novelos, para, no inverno, tecer as mantas, no tear que tínhamos na loja, logo à entrada, por causa da luz.

Eu e as minhas irmãs andávamos por ali, entre a sala e o balcão, o balcão e a sala, à espera que abrandasse o calor para podermos descer as escadas e ir brincar debaixo da latada ou até para a quelha. Éramos como as moscas que volteavam pelo ar, sobre as nossas cabeças, na esperança de uma refeição que não terminasse numa palmada e respetiva esgorrachadela.

A certa altura parámos, pois a conversa das mulheres tornou-se interessante. O diabo agarrara-se ao marido da senhora e não o largava, às vezes até se via a sombra dele quase colada à sombra do marido! O homem dela andava desnorteado, a falar sozinho, completamente perdido.

Mais pela fresca, a senhora gorda, vestida de negro, foi-se embora para casa, muito ralada com o marido, e nós fizemos perguntas à minha mãe a tentar perceber melhor uma coisa que não tinha compreensão.

No dia seguinte, a minha mãe não estava em casa, quando eu acordei. Fora a uma horta longe e demorava. Mas eu não encontrava as calças. As minhas irmãs vieram contar-me que havia muita gente a passar na quelha, porque um homem se tinha enforcado nos pinheiros. E eu à rasca, de pindrico à espreita por debaixo da blusita.

Estiquei mais a blusa, inclinei-me um pouco para a frente e consegui acompanhá-las à quelha, onde o rio de gente não parava de subir. Alguns chegavam às traseiras da nossa casa e atalhavam logo pelo meio do leirão do Pe. Tomás, por baixo da figueira branca, sem se darem ao trabalho de ir à volta.

Apetecia-me segui-los, mas se tapava o pindrico mostrava as nalgas e se as escondia ele espreitava logo. Um desespero. Tanta coisa nova a acontecer, gente e mais gente numa quelha onde passavam tão poucas pessoas e eu sem calças... Voltei a casa, vasculhei os cantos todos, mas não tive sorte. As minhas irmãs, mesmo as mais velhas, também não encontravam solução para o meu problema.

Aquilo ainda demorou bastante, por causa da ida do médico, mas a minha mãe chegou tarde demais. Os homens e as mulheres já voltavam, a contar que o homem fizera um montinho de pedras e se pendurara no galho de um pinheiro.

Anos mais tarde, indicaram-me onde tinha sido. Uma vez fui lá ao mato com o meu primo, mas não achámos o toco do pinheiro que tinha sido cortado, segundo diziam. Nós não o encontrámos e havia por lá muitos pinheiros com galhos jeitosos onde se pendurar uma pessoa. E, naquele escuro de sombras, não andaria ainda por lá o diabo que atentara o homem da senhora de preto? Cavámos dali para fora e fomos cortar o mato para outro sítio!

Um comentário:

Anônimo disse...

Esta história tocou-me, sou da família do Sr. bem-haja pela descrição... o diabo infelizmente venceu. Mas segundo sei foi o trauma da guerra do inicio do século XX que também o afectou... Paz à sua alma...