quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Maria Albertina

Diz, quem a conheceu, que era bem parecida de cara, mas de corpo, fraca figura: baixita, magrizela, peito quase liso…
Ainda umas semanas antes, logo a seguir à Senhora da Orada, tinha ido a acompanhar o homem que abalava para o quinto, lá para os lados de Alcafozes. Saíram de casa de madrugada, passaram ao lado da Vila, direitos à Oles, Louriçal, e depois sempre em frente, até à Lardosa. Era lá que os esperava o carro de bois que levaria os cestos ou as sacas com os pertences de cada um; os homens seguiriam a pé, cortando caminho, até ao destino. Ela voltou para trás, sozinha.
De regresso a casa, já rente ao sol posto, ainda deu de comer às galinhas, engoliu uma malga de leite da cabra com umas sopas de pão, e foi para a cama (uma enxerga assente em quatro tábuas de pinho, por cima de dois bancos, encostada a um canto da única divisão que servia de sala, quarto e cozinha). Derreada das costas e estranhando a largueza da cama (nunca tivera uma só para ela: desde que se lembrava, em solteira, sempre tinham sido três ou quatro na cama, uns para a cabeceira e outros para os pés; depois de casada, aconchegada pelo seu homem), levou tempo a adormecer.
Enquanto o sono não vinha pensou no filho que ia nascer: seria menino ou menina? Não importava muito, era preciso era que viesse perfeitinho. Imaginou-o já nascido e ela a cuidar dele, como cuidara dos irmãos; mas agora era mãe de verdade e não havia de os deixar andar ranhosos nem berrar de fome. Estes pensamentos trouxeram-lhe à memória a sua própria infância naquela terra perdida entre cabeços e barrocas; só mato e pinheiros à roda.
Não andou na escola porque fazia falta em casa e, como dizia o pai, uma mulher não precisa da escola para nada. Saber ler e escrever só servia para se corresponderem com os cachopos, às escondidas, e sabe-se lá... Para desgraça, já lhes bastava terem nascido mulher.
Ainda criança, e já tomava conta dos irmãos mais pequenos, pouco mais novos que ela. Com pouco tempo para as brincadeiras da infância, cuidava deles como se fossem bonecas, fazendo de conta que era a mãe. O pior era quando eles, com a fome, dor de barriga ou outra maleita qualquer, berravam que nem desalmados, e ela sem saber o que fazer. Às vezes, ao mais novo, calava-o quando lhe enfiava na boca uma “boneca” de farrapos, já encardida, molhada em água com açúcar. Ao outro, dava-lhe uma fatia de pão besuntada de azeite e, às vezes, um bocadinho de açúcar por cima.
Também se lembrou da sova que apanhou quando tinha uns sete anos. Uma das tias mais novas que andava a servir na Covilhã veio a casa no Natal e trouxe uns sapatos que a patroa já não calçava e mandava para a mãe (era muito boazinha, aquela senhora…). Eram uns sapatos de verniz, salto alto e bico afiado, onde só cabiam pés de senhora fina. A mãe, só se os enfiasse nas orelhas porque os pés calejados e habituados às alpercatas (quando não a andar descalços) não lhes entravam dentro. E, mesmo que entrassem, onde é que já se vira, naquela terra, uma mulher de juízo andar com uns sapatos daqueles? Nem para ir à missa prestavam! Ficaram arrumados lá para um canto. Um dia desencantou-os e toca de os experimentar. Que maravilha! Assentavam lindamente nos seus pés de criança. Assumindo o papel de mãe, mas também porque queria mostrar a toda a gente as maravilhas da cidade, calçou os sapatos de salto alto e bico fino, escanchou o irmão mais novo à cintura e aí vai ela! Tinha esperança de encontrar na rua alguma vizinha que olhasse para ela e exclamasse: "Que azadinha que a Albertina vai! Está uma mulher feita, com o filho ao colo! E já tem uns sapatos à moda!" E se visse a Conceição ou a Trindade, cachopas da idade dela? Haviam de se roer de inveja… Mal assomou à soleira da porta e se preparava para descer, desequilibrou-se do alto dos sapatos, voou por cima dos três degraus de pedra e caiu redonda no chão. E o irmão aos berros, por baixo dela. Esfolou-se toda, mas o pior foi o menino que ficou com um galo enorme na cabeça; ainda por cima, à medida que a noite se avizinhava, o raio do galo ia crescendo e ficando mais negro. Ai dela, quando a mãe chegasse a casa! 
Nesse tempo o pai trabalhava nos pinheiros; ora colhia resina, ora cortava lenha para o comboio que vinha de Lisboa e passava na Soalheira, a caminho da Guarda. A mãe abalava de madrugada para a horta. Era ela que, sozinha ou com a ajuda de algum dos filhos mais velhos, tratava das batatas, das couves, do feijão e tudo o que pudesse colher. À noite, às vezes até altas horas, sentava-se ao tear que herdara da avó e tecia mantas de ourelos. Havia alturas em que não tinha mãos a medir, tantos eram os novelos de fitas que vinham da freguesia inteira!
Com doze anos foi pela primeira vez ao terço; primeiro para a Lardosa, depois para a Lousa. Andava por lá cinco meses a semear, regar, sachar e colher. Ao princípio ninguém dava nada por ela, cinco réis de gente, mas depressa apanhou o jeito e começou a render como as demais. Nos anos melhores ainda chegou a trazer para casa uns alqueires bons de milho ou feijão, mas houve outros em que mal deu para o caminho… De raro em raro vinha a casa para matar saudades e levar qualquer coisa para comer: pão, umas batatas (quando ainda as havia), um punhado de feijão pequeno, metade de um queijo de cabra, uma malga de azeitonas e, de conduto, pouco mais… Muito trabalho e muita fome! Ainda se ao menos pudessem comer a fruta que caía e apodrecia debaixo da árvore…Mas nem isso o patrão permitia, não fossem avezar-se e começar a querer também a fruta sã...
Ainda não tinha os dezassete anos feitos quando foi pela primeira vez ao quinto, lá para os lados da Idanha. Fazia o jantar, dava água aos ceifeiros, ia ao pão…Fazia o que lhe mandavam. Foi lá que no ano anterior conheceu o seu homem; ela com dezoito anos ainda por fazer, ele que mal passara dos vinte. Ao princípio eram só olhares tímidos, mas depois foi paixão descontrolada debaixo daquele céu enorme que de vez em quando deixava cair uma estrela.
O quinto acabou e ele continuou a visitá-la na terra dela. Ainda era um bom par de horas de caminho, para lá e para cá, mas quem corre por gosto, não cansa! Passado pouco tempo tiveram que casar. Um desgosto para os pais que não mereciam tal desonra nem o falatório do povo. Vergonha para ela que teve que enfrentar o olhar acusador dos sogros quando encararam com ela, magrizela, mas já de barriga empinada. Filho deles havia de merecer melhor sorte…
Por causa da barriga que já pesava, não pôde ir para o quinto nesse primeiro ano de casada, mas não lhe faltaria trabalho na horta ou em casa, enquanto o homem por lá andasse e o filho não nascesse, lá para Agosto. Nessa altura já ele estaria de volta, se Deus quisesse. Ainda tinha que fazer o berço e, se a coisa corresse bem, talvez pudessem vender uns alqueires de semente para comprar uns metros de flanela e fazer umas baetas, uns jaquézinhos e mais qualquer coisa para aquecer o menino no Inverno.
Mas o menino quis nascer antes de tempo. Uma noite despertou com uma dor tão grande nas entranhas que acordou os vizinhos com um berro de morte. Levantaram-se os velhos e foram ver o que era. Bateram; chamaram: "Albertina, ó Albertina, há novidade, cachopa?" Mas, de dentro, não veio resposta…
Os sogros acordaram com murros na porta. Que viessem a correr porque tinham ouvido gritos vindos da casa da Albertina, mas ela não acudia. Bateram; chamaram; bateram com mais força, mas qual Albertina? Trouxeram uma escada da azeitona e deitaram a janela adentro: lá estava ela, caída de borco, ao lado da cama. Não dava acordo de si.
Juntou-se logo ali a vizinhança toda, a ver o que era. Veio um homem à Vila chamar pelo doutor. Quando lá chegou, um par de horas depois, olhou e viu logo que ali não havia nada a fazer; tinham que a levar para o hospital. Mas como, se ninguém na terra tinha automóvel e o carro de bois levaria um ror tempo? Não se preocupassem, levava-a no automóvel dele. Um santo, aquele doutor!...
Quando chegaram ao hospital abriu-lhe a barriga e tirou lá de dentro o menino. Todo roxinho, o anjinho. Fazia dó! Ainda lhe deram umas palmadas, mas nem um gemido lhe arrancaram. E ela continuava sem dar conta de si.
Mandaram vir o homem de Alcafozes. Chegou já de noitinha, todo roto, na roupa e na alma. Ao outro dia, assim que avistou o médico à porta do hospital, caminhou para ele, descobriu-se e, de chapéu e coração nas mãos, pediu: "Ó doutor, salve a minha mulher, por amor de Deus; não ma deixe morrer..." O doutor encolheu os ombros e tardou na resposta: "Vamos fazer os possíveis…". E voltou as costas. O homem sentou-se nas escadas, cabeça baixa e a cara escondida entre as mãos, não fosse alguém ver as lágrimas que não conseguia segurar.
Mas as horas passaram e ela continuava sem abrir os olhos nem dizer palavra.
Quando os sinos dobraram pelo seu menino que ia a enterrar, dos olhos fechados correram duas lágrimas. Ainda houve esperança de que fossem sinal de vida e ela fosse acordar; mas não. Deu um suspiro e ficou-se. Eram vésperas de S. Pedro, dia em que faria dezanove anos. Foi fazê-los à terra, coitadinha… Tão novinha e tão boa rapariga!
Depois de enterrar a mulher, o homem voltou para Alcafozes. Quando regressou a casa trazia pão para todo o ano, mas não tinha quem lho cozesse. Por isso, e para não ter que devolver o pouco que a mulher tinha trazido como enxoval, combinou casamento com a cunhada mais velha. Esta sim, na opinião da sogra, uma mulher feita, um bom braço de trabalho para o que quer que fosse; e asseada que só visto!

Esta história é verídica e foi-me contada por um parente chegado da “Albertina”. O nome não é verdadeiro, mas foi escolhido por, como lembram os “Humanos” cantando Variações, ser um nome bem português. Infelizmente nem só o nome, mas também o destino triste de muitas mulheres em Portugal, num tempo que não é assim tão distante…

M. L. Ferreira

6 comentários:

José Teodoro Prata disse...

1. Adoro estas histórias que nos contam muito mais do que se quer contar. Cá temos o trabalhar ao terço, o ir ao quinto, os trabalhos sazonais na campina da Idanha...

2. A Libânia tem aqui o seu momento. Basta começar (arriscar), continuar (teimar) e depois surgem textos maravilhosos como este. Parabéns!

Anônimo disse...

O facto de esta história ser verídica torna-a ainda mais dramática. Como dramática era a vida do povo português naquele tempo, especialmente da mulher.
Salda-se o acontecimento por duas mortes que talvez se tivessem evitado se os responsáveis do país tivesse criado as condições mínimas de saúde pública para acompanhamento das mulheres grávidas, a tempo e horas. É a obrigação deles. É para isso que se pagam impostos.
Só há pouco tempo li (como deve ser) 'Os Gaibéus' do Alves Redol. E cá, na apanha do trigo e do centeio, como lá, no Ribatejo, na apanha do arroz (para onde também ia mão de obra das Beiras), percebe-se a vida difícil destas gentes.
Uma história triste, mas brilhantemente contada pela Libânia.

Zé Barroso


E.H. disse...

Parabéns cachopa!
Ernesto

Anônimo disse...

Muito bom.
Com tantos contadores de histórias, com tanto jeito, para escrever, dava para fazer um livro.
Fica a sugestão.

Anônimo disse...

Triste, mas uma delícia na linguagem e na narrativa.
Por outro lado, a alegria da descoberta do talento da Libánia.
agradeço-te este bom momento de leitura.
Francisco Barroso

Margarida Gramunha disse...

Adoro estes relatos. E os contadores deste blog sabem fazê-lo como nimguem.
Parabens