terça-feira, 10 de dezembro de 2013

De bicicleta II

A história “De bicicleta” publicada em Agosto, pelo José Teodoro, emocionou-me tanto que, na altura, fiquei sem palavras. Recordou-me um intervalo entre duas aulas (andávamos na telescola) em que a Santita, triste e em jeito de confidência, me chamou para um canto do balcão da escola. Abriu a mala (as malas da Santita, vindas de Lisboa, causavam inveja a todas as raparigas da terra!) e tirou lá de dentro um lenço e, de dentro do lenço, desembrulhou uma pedrinha com manchas de sangue. Disse-me que a tinha apanhado no sítio onde o pai caíra, quando regressava do trabalho para passar o domingo. Olhei para aquela pedrinha como se fosse a relíquia de um mártir. Para a Santita era muito mais do que isso, certamente.
Mas lembrei-me também das histórias que o meu pai contava do tempo em que andava nas minas da Panasqueira e fazia as viagens de bicicleta. Uma vez quase que morreu também, duma queda. Outra vez foi um colega de trabalho que, numa curva mal feita, caiu e partiu várias costelas. Ficou alguns meses sem poder trabalhar.
E isto era para os que tinham bicicleta… Os que não tinham, vinham de camioneta até ao Castelejo e depois, Gardunha acima, pela Portela, a pé até casa. Isto, depois de um dia de trabalho no interior da mina, a maior parte das vezes durante a noite, com frio e ensopados até aos ossos por causa da chuva. A viagem de regresso era outra odisseia… Se tinham medo? Ai não que não tinham! Principalmente se, por causa dos turnos, tinham que fazer a viagem sozinhos. Até as castanhas a cair dos ouriços os assustavam, mas de que lhes valia? Não tinham alternativas…
Todas estas recordações deram-me vontade de voltar às Minas da Panasqueira. Tinha por lá passado há alguns anos e guardava uma imagem muito desoladora daquele local. Também tinha ouvido falar no Museu do Mineiro, aberto há pouco tempo; um pretexto acrescido para uma visita.
Fui lá há umas semanas. Em Silvares segui em frente e almocei na Barroca: chanfana com ervas; tigelada à sobremesa. Do melhor! Segui depois por Dornelas, subi a serra (uma vista de morrer!) e, já na descida, a visão surpreendente da Aldeia de S. Francisco de Assis. Senti um baque no coração!
Já na Barroca Grande, aos pés daquela montanha enorme feita do interior da montanha, revi a vida dura do meu pai e a de tantos outros homens da nossa terra. O que eles passaram para poderem dar de comer aos filhos!
Senti que naquela montanha está um bocadinho de cada um desses homens.
Lembrei-me também daqueles que lá ficaram dentro ou morreram lentamente com o mal da mina, como ouvia chamar-lhe. 
 E a emoção e comoção foram tão grandes que não consegui conter as lágrimas.
O Museu estava fechado (acho que é mais um sinal da desertificação do interior de Portugal, de que tanto se tem falado ultimamente). Ao princípio fiquei um pouco desiludida, mas depois pensei que foi Deus a escrever direito por linhas tortas. É um bom pretexto para lá voltar um dia destes…

M. L. Ferreira

3 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Há uns tempos li um livro sobre as Minas da Panasqueira, com testemunhos dos antigos mineiros.
Aqui deixo o relato de um deles:
«Morria lá muita gente. Eu andei lá nove anos e lembro-me que nesses anos morreram 28 homens só em desastres dentro da Mina. O turno que saía antes de nós rebentava fogo. Quando nós entrávamos para aquelas galerias, que não tinham passagem nenhuma de ar para a Panasqueira, estava lá a poeira toda, ali pousada no chão. A gente começava a mexer no cascalho, aquele pó levantava-se e chegavam a vir trinta e quarenta homens em vagões, como mortos, cá para fora. Ficavam bêbados com o tufo.
E a quem vinha para a rua não lhe contavam o dia. Já viste como era?»
O Livro chama-se "A GUERRA DA MINA" e foi escrito por Daniel Reis e Fernando Paulouro. Foi-me emprestado pelo Francisco Barroso.

Anônimo disse...

A talho de foice e por curiosidade: verifico que 'panasqueira' ou 'panascal' designam uma terra pouco civilizada. 'Panasco' é uma pessoa de trajo e modos toscos (conf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Portanto, nada tem a ver com 'panasca' que é um termo do nosso calão que, como outros, significa homossexual (de acordo com o mesmo dicionário).
Posto isto, queria dizer que as Minas da Panasqueira são uma referência para, praticamente, todos vicentinos. Por boas e más razões. Em determinada altura do Séc. XX, dada a importância do metal que ali era extraído, foram o destino de muitos para trabalhar nas minas. Chegou a haver até, na vila, uma festa rija, no dia seguinte à Senhora da Orada, financiada por esses trabalhadores. Mas por outro, eram causa de morte e sofrimento, pela dureza e perigosidade daquele trabalho. Não eram apenas as difíceis viagens de ida e volta às Minas. É que a doença da silicose era comum entre os mineiros. Dois tios meus (o meu tio António e o meu tio Chico) morreram em consequência disso.
Lembrar aqui, no blogue, essas pessoas é uma forma simples, mas sentida, de as homenagear. Muito bem!

Zé Barroso




Anônimo disse...

Já agora acrescento que (é do domínio geral) a vida das minas tem dado azo a mais obras literárias (além da referida no comentário do ZT), incluindo um livro de Fernando Namora 'As Minas de S. Francisco' e foi objecto, há uns anos, de uma novela de um canal de televisão português, com vários actores conhecidos.

Zé Barroso