quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Autossuficiência

Eu nasci na casa da Oriana. A estrada já existia, mas só chegava ao fundo da barreira do Hospital e tinha de se passar pela praça. Foi no tempo do tio solteiro da minha mãe, que lhe deixou a propriedade. Ele lamentava-se por lhe terem cortado os leirões, para fazer a estrada. Isso terá sido por volta de 1900.
Já foi no meu tempo que se abriu a estrada da barreira do Hospital até São Sebastião e por isso é que se chama Estrada Nova. Derrubaram a casa onde morava a minha amiga Céu que depois casou com o José Matias. A casa dela ficava mesmo no sítio por onde passou a estrada e por isso fizeram a casa que está agora por baixo, no Pomar.
Nesse tempo, não se comprava quase nada nas lojas, como agora. O meu pai semeava milho, batatas, tudo o que era preciso para comer. Também tinha vinho suficiente para ele, mas não se bebia todos os dias! O azeite era das nossas oliveiras e até vendíamos. O teu avô vendia todo o azeite dos Canavéis, porque era de azeitona bical que dá um azeite muito fino. Por isso é que as oliveiras eram tão altas. Os homens, mesmo na ponta das escadas, mal chegavam aos ramos de cima. Até metia medo! Nesse tempo não se cortavam as oliveiras como agora, que é uma estragação.
­­De carnes, tínhamos o porco, as galinhas e uns borregos ou cabras. Comia-se o que havia. Também tínhamos árvores de fruto nos leirões da Oriana: laranjeiras, ameixeiras, macieiras…
Uma vez por ano, os sapateiros iam à nossa casa a fazer sapatos para todos. Trabalhavam na varanda. Eram o João Hipólito, o Fausto, o António Maria ou outros. Mas antes, o meu pai ia a Tinalhas, a pé, para comprar o cabedal, as solas e o fio. As roupas éramos nós que as fazíamos, com peças de pano que comprávamos. O mesmo com as mobílias, pois a nossa casa era uma casa de carpinteiros, o meu pai e os meus irmãos António e José.
Mas não julgues que vivíamos muito bem! Eu e as minhas irmãs dormíamos no quarto escuro ao lado do corredor e no inverno lembro-me de passar as noites a tremer de frio, só tapadas com uma mantita.
Semeávamos linho no lameiro e depois era arrancado, mergulhado na ribeira, posto a secar, batido com um maço, ripado e fiado. Com o fio tecíamos os panos de linho, para as roupas do corpo e da cama. Antes de casarmos, eu e cada uma das minhas irmãs tivemos de tecer todo o nosso enxoval: peças de linho e colchas. Fazíamos lençóis e fronhas que depois bordávamos. Eu fui das últimas a casar, porque era das mais novas. Como tinha um enxoval muito grande, a minha mãe foi à arca e tirou-me algumas peças, pois queria que todas as filhas levassem um enxoval igual. Tinham-me dado tanto trabalho!
Namorei com o teu pai cinco anos. Começámos antes de ele ir para a tropa e depois mandava-me cartas de Castelo Branco que um soldado lhe escrevia. Quando saiu, começou a aprender de pedreiro. Não podíamos casar sem ele ter um ofício para ganhar a vida.
O teu pai acompanhava-me no caminho da missa para casa, aos domingos. Com o tempo, ele já não se ia embora e eu vinha à janela e ficava a falar com ele. Depois ficávamos sentados à porta, mesmo no tempo frio, e mais tarde já namorávamos dentro de casa. Mas os meus pais arrependeram-se, porque ele era mais pobre do que nós. Voltámos a namorar à porta e um dia a avó até lhe atirou com água, para ele se ir embora. Mas não desistimos e eles acabaram por se conformar.
Depois casámos e nascestes vós…

José Teodoro Prata

3 comentários:

Anônimo disse...

Depois de ler esta estória, que pode ser estendida a tantos de nós, pergunto: onde está a crise de que tanto se fala? Só pode ser entendida em abstrato e face a este modelo de desenvolvimento. Quase tudo nas grandes cidades. Milhares sem emprego, que não sem trabalho. O país deserto praticamente do meio para o lado de Espanha. Boas terras em pousia décadas a fio.
Crise era naquele tempo em a ambição era ter meia dúzia de oliveiras e uma cabra ( quantos tiveram de emigrar para o conseguir) e que até para namorar tinha que se levar com bacias de água na cabeça sem desertar. Para provar a força do amor dos afetos e do sonho.
Agora amatilham-se, por vezes casam com festas tamanhas e quantos se aguentam nos embates da vida a dois, a três ou quatro. Parece que só metade.
Este modelo da riqueza material, em grande parte virtual, que ainda andamos a pagar, está também esgotado. E estamos na generalidade mais pobres nos afetos e nos bens.
Será preciso grande engenho e coragem para sair desta salgalhada e só se encontram falsos profetas. Deus nos acuda. De maneiras que é assim.
O Velho do Restelo (FB)

Anônimo disse...

Era assim naquele tempo, e até à minha geração não foi muito diferente. As famílias produziam quase tudo o que necessitavam para sobreviver e, mesmo quando tinham que comprar alguma coisa, nem sempre usavam dinheiro. Ainda há pouco tempo me contavam que quando o sardinheiro da Atalaia ia vender sardinha ao Casal da Serra e lhe perguntavam a como era a dúzia, ele respondia sempre que tanto podia ser uma abada de batatas ou castanhas, como uma malga de feijão ou um quartilho de azeite.
E não se desperdiçava nada: as cascas iam para os animais; do que se aproveitava da roupa velha faziam-se fitas para as mantas e espantalhos para a horta; das latas de sardinha ou atum e dos pratos que já não podiam levar gatos fazíamos brinquedos.
Deve ser por tudo isto que os nossos emigrantes em França chamam poubelle ao caixote do lixo. É que, no tempo em que de cá partiram, sabíamos lá nós o que isso era…
Já quanto ao namoro, não terá sido fácil vencer os preconceitos, mas deve ter valido a pena; pelo casal e pelos filhos que tiveram.

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

Foi por alturas do nascimento da minha mãe que surgiu a sociedade de consumo, nos Estados Unidos. Por isso, sempre que dou essa matéria, em História, conto o que aqui deixei sobre a autossuficiência na casa dos meus avós maternos (Na dos paternos também era auto, mas infelizmente insuficiente...).
Depois eles perguntam nas suas casas e as histórias que trazem são parecidas a esta.