quinta-feira, 21 de julho de 2016

Lugares aonde se torna - 10

A mulher do próximo

Juro que não a cobicei! – mandamento é sagrado, do primeiro ao décimo, e nessa matéria, para mim, é comer e calar. Mas não é questão de cobiça o que segue, é outra coisa.

Contextualizando: Verão, calor, praia, sardinhas, cerveja, petisco, menos roupa, corpinho escaldado, havaianas, bolas de berlim, ainda mais calor, a água está um caldo, cuidado com as bolas, respeitar o tempo da digestão, não tirar os olhos dos miúdos, ver as espanholas, cuidado com o peixe-aranha, banhistas cristãos e de outros credos exibindo criativas ou vulgares tatuagens, as filas na ida e na volta.

Nós, o grupo do costume, é bola a abrir a jornada, café a seguir e vista de olhos nos jornais, eis que chegam as respectivas, aluguer dos chapéus e cadeiras, t-shirt fora, uma voltinha para estudar a evolução do fio dental e de caminho verificar se o Adão de peito depilado continua a ganhar terreno ao tradicional Adão peludo, por ali nos vamos entretendo, e tal, com comparências periódicas no poiso – os chapéus 8 a 10 de sempre e, este ano, também o 11, porque este Verão conseguimos trazer o pássaro esquivo, alguns de vocês conhecem, o Zé Miguel, foi uma surpresa e é uma grande alegria, como se percebe, e trazia a “legítima”, que nenhum de nós conhecia.

Mas, acontece que há um senão na coisa. De somenos, é verdade, mas desagradável; é do foro pessoal, mas no grupo de amigos, em que temos um padrão de convivência, uma medida para a felicidade, dói-nos quando alguém não se comporta como nós, na prática negando-se a ser feliz como nós. Explico: 30 graus celsius, a praia, a areia, o mergulho à vista, a temperatura a subir, 35 graus e mais, só um militar ou um recluso seriam capazes de conservar a t-shirt no corpo. E o nosso amigo pássaro esquivo também. Foi assim no primeiro dia, brincámos, exigimos, sugerimos jogar ao adivinha-e-despe, oferecemos dinheiro, e nada; seis dias passados, tudo igual nessa área. É com ele, está claro, mas enerva, todos dentro de água e ele não, todos de tronco nu a jogar às cartas, a lavrar a areia à procura de bivalves para o petisco ou de serviço ao churrasco, mas ele não. A coisa deixa-nos tristes, uma tristeza de cada um para si, mas generalizada ao elemento varonil, feminil e pueril – uma tristeza pegada!

Esta manhã decidimos avançar para a traição. A uma certa hora da manhã, o Zé Miguel e a respectiva costumam abandonar a posição 11 do nosso poiso colectivo, despedindo-se “à francesa”, vão dar uma volta, fazer o footing diário, por receita médica, no mínimo 5 quilómetros. Voltam duas horas depois, com o ar mais normal deste mundo. Hoje, dois de nós seguimos o casal, a uma distância prudente, eles na praia, os pezinhos dentro de água, nós no paredão que acompanha a linha das praias. Foi como suspeitávamos, ainda que inexplicável: umas centenas de metros andados, vimos o Zé Miguel tirar a bendita t-shirt, seguindo caminho de tronco nu, com evidente prazer. Ah, filho do meu pai, a coisa não podia ficar assim, havia que exigir explicações, que a amizade também é verdade e lealdade. Entrámos na areia, continuámos a caminhar paralelamente a eles, mais perto, cada vez mais perto do casal fugitivo. Foi quando se operou em nós o milagre da revelação.

Do lado direito da linha de cintura do Zé Miguel desenvolvia-se para cima, tatuada, uma moldura com palmo e picos de lado, tendo dentro, transposto, o rosto de uma mulher, tão bem tatuado que, a dois metros de distância, parecia a três dimensões, de altíssima qualidade gráfica. Seguiam de mão dada e nós a acompanhá-los, procedendo instintivamente às verificações ditadas pelas circunstâncias, da correspondência da mulher de carne e osso com a reprodução que o nosso amigo tinha à cintura – pelos vistos há homens capazes de se amarrar assim a um compromisso para toda a vida, gravando-o na própria carne para sempre. Senti crescer em mim a admiração pelo Zé Miguel.

Dois minutos depois, parámos e deixámo-los ir. Sem sabermos o que fazer quando voltássemos. Não fizemos nada, não comentámos com ninguém. A mulher que segurava a mão esquerda do nosso amigo não é a mesma da tatuagem.

Sebastião Baldaque

Um comentário:

José Teodoro Prata disse...

Boa prosa esta do Sebastião, a contar-nos um caso embaraçoso de alguém que acreditou no absoluto e se lixou.