sábado, 9 de julho de 2022

Oxalá que não!

 O parabolista

Nunca foi apurado de onde partiu o primeiro disparo. As potências em conflito acusaram-se mutuamente, enquanto foi possível ouvir rádio. Nem sequer havia consenso sobre onde caiu a primeira ogiva nuclear. Aparentemente, houve um disparo de origem indeterminada, mas o que primeiro atingiu o alvo no solo terá sido uma resposta a esse fantasmático primeiro disparo. Só se percebeu que, em poucas horas, foram disparados alguns milhares de mísseis regionais e intercontinentais, portadores de bombas nucleares, dum lado e do outro do Atlântico.

As primeiras dezenas de disparos apontavam para as áreas de lançamento e armazenamento das ogivas inimigas. A maior parte foi travada pelos sistemas de interceção, mas as explosões aconteceram na mesma, só que em altitude. A ogiva que atingiu a zona de Aviano, em Itália, provocou o rebentamento de, pelo menos, outras quatro ogivas, em prontidão. A explosão resultante vaporizou milhares de toneladas de solo e causou uma cratera de mais de um quilómetro de diâmetro.

À medida que os satélites adstritos ao uso militar foram sendo derrubados, perdeu-se grande parte da capacidade de deteção e interceção. Também os mísseis lançados deixaram de poder contar com os satélites para os guiar; passaram a usar sistemas de navegação incorporados, o que lhes baixou sensivelmente o grau de precisão. O que devia atingir a base da Nato em Oeiras foi cair perto de São Domingos de Rana.

Havia semanas que Eneias punha a eventualidade da guerra nuclear como muito possível. Percebia os apelos armamentistas, a retórica de confronto, a escalada bélica em crescendo. Quando o clarão apocalíptico acendeu o dia no seu quarto estremunhado, seguido de um abanão pavoroso, imediatamente mobilizou a família — o seu pai, com mobilidade reduzida, e as duas filhas adolescentes —, carregaram todos os víveres que tinham em casa e desligaram tudo. Provavelmente, não voltariam tão cedo. Tinha passado apenas meia hora depois do impacto e da onda de choque que estilhaçou janelas e destruiu edificações num raio de vinte quilómetros, quando partiram de Odivelas em direção ao interior.

Eneias optou pela circular exterior de Lisboa, pensando evitar o provável trânsito denso da autoestrada, mas, apanhou um engarrafamento monstro, logo ao entrar. Viram passar apenas duas viaturas da polícia de trânsito. Circulou a passo de caracol, contornando os inúmeros destroços e evitando os conflitos de trânsito quase forçosos, num contexto de enorme crispação e terror, percetível em muitos rostos. Meteu pela A10, assim que pôde e só conseguiu entrar na A1 quatro horas depois.

As notícias, das poucas rádios que se mantinham em funcionamento, eram alarmantes. Boa parte do leste dos Estados Unidos tinha sido destruída, assim como todo o ocidente da Rússia e variadas zonas no resto da Europa. Milhões de toneladas de cinzas radioativas subiam na atmosfera e toldavam o sol. Aparentemente, tinham parado os disparos, embora, presumivelmente, ainda houvesse alguns milhares de ogivas disponíveis. Eram horríveis os relatos das destruições e do estado dos corpos dos que ainda sobreviviam.

Eneias sabia que, provavelmente, ele e a família já carregariam alguma contaminação. Esperava tão só que as doses radioativas ainda não fossem mortais. Não tinha grandes planos. Para já, só fugir dos grandes centros, alvos mais prováveis de novos disparos e obrigatoriamente foco de desordens sociais. Quando passaram pela zona de Torres Novas, perceberam que o centro comercial que se via da estrada estava a ser alvo de pilhagem. Os dias que aí vinham prometiam provações terríveis para milhões de seres humanos.

Ainda antes de Abrantes, a mancha de cinza, que escondia o céu a oeste, sofreu vastos acrescentos negros a grande altura, de norte e leste, que foram enchendo o céu até tapá-lo completamente. Uma obscuridade estranha foi crescendo até transformar-se numa escuridão densa, que se tornaria a companheira de todos os dias, mas não era sensato parar. Ao longe percebiam-se incêndios em algumas povoações. Pouco depois do cruzamento de Belver, estranharam a inação do pai de Eneias. Estava morto. Frio, sem pulso, sem respiração, sem embaciar o ecrã do telemóvel que lhe puseram à frente da boca.

Eneias sentiu-se perdido. Não era aconselhável entrar numa cidade; as complicações que se seguiriam quando apresentasse o caso poderiam ser muito penalizadoras. E, para quê? O pai estava morto, sem qualquer dúvida. Assumiu a decisão de prosseguir com o pai no lugar do pendura, bem preso com o cinto, bem direito no banco. Na confusão reinante e no escuro, nenhuma improvável patrulha iria averiguar a saúde do idoso.

Ultrapassou os contrafortes da Gardunha quando uma ténue luminosidade anunciava que, por cima das nuvens de cinzas, brilhava o sol. Seria assim, daí para a frente, não se sabia se por uns dias, se por meses ou anos.

A sua casa entre serras, junto a Silvares, seria o refúgio possível num mundo enlouquecido. Com a devida discrição, sepultaram o avô das meninas numa pequena elevação sobranceira ao vale. Ninguém iria notar, ninguém iria saber. Ele deveria gostar, se soubesse.

Ainda nesse dia começou a cair muita cinza; radioativa, provavelmente. Tinha um cheiro fétido, um misto de plástico queimado, com reverberações olfativas metálicas. Eneias tinha consciência de que cada inalação que permitisse representava um foco de radiações a destruir o seu ADN, a facilitar cancros. A temperatura tinha baixado abruptamente e todos os dias foi baixando mais. O aquecedor a gás, mais o elétrico, eram insuficientes. Acenderam a lareira, mas nada conseguia aquecer a casa. A pilha de lenha diminuiu a olhos vistos.

As notícias das poucas rádios em funcionamento eram caóticas. Ainda havia crispação das grandes potências, mas as pequenas nações apelavam ao diálogo e ao trabalho conjunto para reconstruir o mundo. Um pouco por todos os continentes, os saques, o morticínio de grupos demonizados, os levantamentos militares, as revoltas populares estraçalhavam o que restara. Regimes oportunistas de todos os quadrantes surgiam e desapareciam no mesmo dia. A energia elétrica faltou de vez ao fim de três dias. Devia ser geral, porque nem o rádio de pilhas dava sinal. A sociedade desmoronava-se.

A casa já não era porto seguro. As cinzas tomavam tudo. Não era possível colher vegetais enegrecidos e “queimados” pela radiação, não era aconselhável consumir qualquer animal, qualquer ser exposto às cinzas. Viviam de conservas. O frio tornava-se debilitante. A temperatura tinha caído uns trinta graus, numa semana. O “Inverno nuclear”, teorizado pelos cientistas, confirmava-se. Sem luz solar, as plantas iriam mirrando e a maior parte morreria em poucas semanas ou meses. Havia que engendrar uma maneira de sobreviver. Ou então ousar partir para melhor refúgio.

Foi a proximidade das minas da Panasqueira, juntamente com a memória de uma visita, em tempos, a umas minas de sal-gema na Suíça, que iluminaram o espírito de Eneias. A temperatura em minas costuma ser baixa, mas constante. Lá, não chegariam poeiras radioativas, lá poderia captar água não contaminada, lá poderia cultivar cogumelos.



Caspar David Friedrich, Abadia no Carvalhal, 1809–1810.
Coleção Castelo de Charlottenburg, Alte Nationalgalerie, Berlim.

Passaram seis anos desde que Eneias chegou às minas da Panasqueira. A comunidade de uns cem refugiados que lá tinha já procurado refúgio passou a chamar-lhe Lote, por ter chegado com duas filhas, depois de um cataclismo de contornos de bombardeamento, como no episódio bíblico. Eram sobretudo habitantes da região, alguns muito maltratados pelas cinzas radioativas, das quais não tinham sabido proteger-se. A maioria morreu nos seis primeiros meses, alguns em grande sofrimento; outros foram morrendo de enfermidades não imediatamente relacionáveis com as cinzas. Até o desmoronamento, provocado por um dos vários terramotos de intensidade média, que se fizeram sentir no primeiro ano, fez duas vítimas.

Lote era tratado com curiosidade, por ter passado a falar por parábolas, que alguns achavam acertadas, mas, respeitavam-no por ter apontado alguns dos vários aspetos que podiam ajudar a mantê-los vivos. Havia quatro fontes nas galerias da mina. Não tinham garantia de que a água não viesse a chegar contaminada, mas tinham esperança que ainda demorasse uns anos. A cultura de cogumelos tinha sido um êxito. Desenvolviam-se bem em regime de ausência de luz solar, eram proteicos e havia quem lhes encontrasse nuances de sabor. A temperatura na mina, conforme previsto, era baixa, mas tolerável, desde que complementada com muitos agasalhos. A comunidade decrescia, apesar de as filhas de Lote e outras raparigas terem tido crianças, no entanto, caminhava-se para um equilíbrio. Não podiam deixar morrer a esperança.

Na rotina do cultivo dos cogumelos, há sempre quem, para dar resposta aos seus pensamentos, faz uma ou outra pergunta:

— Lote, não teria havido uma maneira de travar a guerra no início?

Lote tornou-se um ancião de olhos encovados e face macilenta. Abranda por uns momentos a atividade e depois debita uma inspiração:

— Em tempos que já lá vão, um jovem combinou uma saída com os amigos, para celebrarem a noite, a amizade e o álcool. No Cais do Sodré, já depois de uns shots e em clima de boa disposição, o jovem foi surpreendido por uma chapada que quase o atirou ao chão, sem saber como nem porquê. Virou-se ao agressor, contudo, este era um marinheiro nórdico, cheio de tatuagens e um corpanzil que aconselhava alguma prudência. Mesmo assim, galarito empertigado, o jovem pediu-lhe satisfações, mas recebeu de volta outro bofetão. Aí, percebeu que era melhor nem tentar saber porque é que estava a levar pancada; o que era urgente era tentar apaziguar os ânimos, porém, os amigos começaram a atiçá-lo, a gritar-lhe que não se podia ficar, que tinha de retaliar. «Tu podes derrotá-lo. Lembra-te de David e Golias», gritavam-lhe. «Tu chegas bem para ele. Nem te vamos ajudar, porque aí ele pode puxar de alguma faca, mas ficamos aqui a desmoralizá-lo.» E faziam um coro ruidoso de «Cara de avestruz! Cheiras mal da boca. Vais morrer de cancro. Estás a levar tantas que já não te tens em pé. Bêbado!» Ora, o desgraçado rapaz fez o melhor que pôde, mas acabou a noite muito amassado e foi mesmo parar ao hospital. Verdade seja dita que os amigos foram todos visitá-lo à enfermaria e alguns levaram-lhe flores. Depois veio a saber-se que o moço teria dito um piropo à rapariga do marinheiro, ou, pelo menos, este assim o entendeu. Eis aqui que não havia razão suficiente para a agressão inicial, não obstante, foi uma temeridade insensata enfrentar sozinho o brutamontes. Mais valia ter reconhecido a desvantagem física e ter ido para casa só com um olho negro.

Na tarefa de aparar o fino fio de água gelada que escorre da rocha, lá vem com frequência uma dúvida:

— Lote, porque é que começou a guerra e o que é que a Nato e a América tinham a ver com o caso?

Lote olha para o negro invisível do fundo da galeria e, depois de uns momentos de silêncio, debita uma lucubração:

— Havia em tempos um grande apicultor que prezava muito a qualidade do mel que produzia. Gabava-se de que o seu produto estava isento de pesticidas ou outros químicos nocivos. Num outro concelho, havia um grande agricultor que ensaiava todo o tipo de práticas agrícolas para obter boas produções de cereais, incluindo o uso de agrotóxicos, que o apicultor abominava. Ora isto durou, e nenhum problema houve, mas, aos poucos, os pequenos lavradores vizinhos do apicultor foram passando a usar os mesmos químicos que o grande agricultor usava e produzia. «Não quero aqui venenos junto ao meu terreno! O vento traz tudo para o lado de cá. Mata-me as abelhas e estraga-me o mel», gritava o apicultor. Porém, cada pequeno produtor ripostava: «No meu terreno não posso fazer o que quero?» E o mandante instruía-os: «Ninguém manda no vento. Se vai para a terra dele não é culpa vossa.» No entanto, o apicultor sentiu-se ameaçado no seu negócio e no seu modo de vida. Vendo as suas colmeias a morrer e a qualidade do mel a deteriorar-se, foi acumulando ressentimento e vontade de retaliação, sobretudo contra o produtor de venenos e instigador da pressão tóxica sobre os seus colmeais. Um dia de junho, já muito irritado, aproveitando uma brisa favorável, acendeu dezenas de balões de São João e lançou-os, em procissão punitiva. Conforme esperava, alguns balões caíram nos terrenos próximos e outros elevaram-se e foram aterrar lá longe na propriedade do grande produtor cerealífero, incendiaram as searas e causaram uma destruição avassaladora. Ao furioso coro do “Núcleo Agro-tóxico Ocidental”, como lhe chamava, o apicultor respondia com todo o cinismo: «Acaso não posso festejar o São João no meu terreno? Ninguém manda no vento.» E, para si, autojustificava-se, com um aforismo ouvido há muito: “Dizem do rio que é violento porque arrasou todo o vale, mas ninguém se preocupou com as margens que o oprimiam.” Eis assim que no nosso mundo ambientalmente encapsulado, nenhum terreno é uma ilha. Faltou muito respeito mútuo, muita capacidade de se pôr no lugar do outro, muita empatia pelo que é diferente, muito diálogo, muitas relações de boa-vizinhança. Porém, uma conversa franca e honesta, um entendimento de seres racionais, podia ter evitado aquele desacato.

Nas muitas vezes em que a pequena comunidade se junta, durante horas, em círculo à volta de uma chama, para se autogerir, para conversar, para socializar — imagem pós-apocalíptica de um grupo de silhuetas espetrais, embrulhadas em cobertores, em ambiente de quase escuridão —, com frequência lá surge um lamento, uma especulação, um desalento: «Será que voltaremos a ver um céu estrelado, que um dia voltaremos a percorrer campos abertos, respirando ar puro a plenos pulmões, com o sol no rosto e o futuro nos olhos?» E outro acrescenta: «E, se voltarmos a ter uma vida lá fora, não teremos de nos armar para a guerra, nem que seja com paus e pedras, já que ela parece estar no nosso “ADN social”?

Lote está muitas vezes de cabeça baixa. Certos temas levam-no a responder:

— Um escritor escreveu um romance, em que um homem e os seus irmãos chegaram a uma terra desconhecida, onde construíram uma casa e em que moraram em harmonia durante muitos anos, entretanto, um dia veio uma cheia que lhes derrubou a casa e lhes destruiu as colheitas. Era, pois, um drama que passava uma mensagem de tristeza e desalento. Ora, o escritor não gostou daquele final, não obstante, em vez de o alterar, prosseguiu a história. Deste modo, pôs os irmãos a corrigir o percurso, a reconstruir a casa fora do leito de cheia e a levantar uma pequena barragem, para regulação do rio. Eis que a história já continha uma mensagem de esperança e resiliência, todavia, surgiram alguns conflitos, alguma falta de solidariedade, algum desleixo social. Assim, o escritor não resistiu a fazer rebentar a barragem, com a consequente destruição do que tinham construído. Ora, este final também não lhe agradou e novamente continuou a história. Entretanto, suspeitando que o autor tinha inclinação para a desgraça ou as personagens para a asneira, experimentou mudar de personagens; então, pôs a nova geração de primos a fazer a reconstrução, com novos paradigmas. As novas personagens, só por serem outras e jovens, levaram a história por outros caminhos: logo fizeram nascer uma grande quinta e uma pequena sociedade em que, ainda que havendo problemas, eram resolvidos com diálogo e racionalidade. Eis que, depois de um final dramático, pode-se sempre imaginar uma continuação, uma nova narrativa, um final motivador.

O pequeno círculo de espetros vivos parece esperar mais respostas, soluções concretas, mas Lote baixa novamente a cabeça e cala-se. A meditação de cada um começa a divergir da de cada um dos outros, talvez alguma vislumbre um futuro viável, para quando a missão de cada um aspire a mais do que só sobreviver outro dia.

Joaquim Bispo

3 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Recebo os textos do Joaquim Bispo via e-mail.
O autor é beirão, mora por cá, mas não tenho a certeza de o conhecer pessoalmente (talvez já nos tenhamos cruzado).
Desta vez, o Joaquim Bispo mandou-me um link e fui buscar o texto aqui: http://www.revistasamizdat.com/2022/06/o-parabolista.html

José Barroso disse...

Um texto interessante sobre um possível "Apocalipse" (Novo Testamento) ou mesmo sobre o "Harmagedeão" (Antigo Testamento). Tudo, não por determinação de Deus, mas por obra do homem, esse bicho enigmático que continua a não se saber quem é. Um enredo que vai ao encontro da corrente maioritária do pensamento atual e que levou Stephen Hawking (o cientista inglês da cadeira de rodas) a dizer que "se a humanidade desaparecer, isso possivelmente se ficará a dever à sua ganância".
É certo que a pegada do homem é uma realidade que não pode ser evitada; a própria noção de progresso acentua essa pegada. E isso vai da guerra nuclear aos simples pesticidas. Porque uma coisa e a outra, embora possa parecer que não, têm a ver com o mesmo: o interesse material. Recorde-se o que disse Hawking. Ou seja, todo o progresso do homem (mesmo sem pensar na guerra e, muito menos a nuclear), só terá viabilidade se for devidamente sustentada. E, para isso, é fundamental dar mais poder à ONU para moderar os interesses nacionais, controlar os recursos existentes e promover a reciclagem e as energias alternativas aos fósseis. Uma reflexão muito atual.
Abraços, hã.
JB

M. L. Ferreira disse...

Gosto destas histórias do Joaquim Bispo, principalmente daquelas em que, de forma tão imaginativa e quase alegórica, reflete sobre temas da atualidade. Esta é um bom exemplo.
E sobre as guerras, de que já aqui falámos algumas vezes, sabemos que nem sempre os bons e os maus estão só de um lado e do outro, mas nesta, que de certa forma nos afeta já tão diretamente a todos, não há dúvidas de quem são as maiores vítimas.
Nestas questões das guerras, da ecologia ou de tantas outras, gostava de acreditar que as gerações que se nos seguirem terão capacidade para construir um mundo melhor; assim nós consigamos deixar-lhes por herança um mundo ainda viável.