quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

A Ti Mari do Cu

 Nunca tive medo de ninguém, muito menos daquela mulher que via passar às vezes, rua abaixo, com a bacia da roupa ou o molho de caruma à cabeça. Bem me dizia a minha mãe que me metesse para dentro por causa do mau-olhado, muito menos que lhe comesse alguma coisa das mãos dela, que podia morrer. Mas eu não fazia caso.

Um dia de manhã, ia eu para a escola, e estava ela a apular água com um cântaro na Fonte da Mesarela (ainda hoje lá está essa fonte).

- Bom dia, Ti Mari do Cu!

Fiquei orgulhosa porque era isto que os meus pais me ensinavam: dar a salvação a toda a gente.

Nisto vejo-a vir atrás de mim com um pau na mão:

- Anda cá, minha lareta, que já te digo quem é a Mari do Cu.

Não percebi bem aquela reação, mas corri tanto que só parei na ribeira.

À tarde, quando cheguei a casa, contei à minha mãe o que me tinha acontecido; ela ainda disse que era bem feita, porque se lhe tivesse dado ouvidos, nada disso acontecia.

Nunca mais!

 

Doutra vez o meu pai foi com ela e com o homem à feira do Fundão. Cada um lá fez o que tinha a fazer e, já no fim, ela não terá achado bem algum negócio que o homem fez e zangou-se. Desapareceu do pé de nós mal o diabo esfrega um olho. Ainda andámos por ali a ver se a víamos, mas nada. E metemos também ao caminho, que se fazia tarde.

Então não é que quando chegámos ao Casal (da Fraga) ela já cá estava há que tempos?! Diz o homem que até já tinha acomodado a criação e posto a panela ao lume para cozer as couves para a ceia.

Ninguém queria crer: só mesmo coisa do diabo com quem andaria feita, de certezinha!

 

Doutra vez, uns anos mais tarde, vinha eu da escola e, para encurtar caminho, subi pela vereda que vai da sobreira até quase ao cimo da rua de Santa Bárbara. Naquele tempo havia ali umas casas de pedra baixinhas, com balcão: por baixo a loja, onde os animais dormiam; por cima um espaço onde as pessoas viviam o pouco tempo que passavam em casa, principalmente durante o verão.

Um dia ouço uns gemidos aflitos vindos de dentro de uma das casas. Subi as escadas do balcão e, a um canto, vi uma pessoa muito velha, deitada no chão, em cima duma enxerga, tapada com pouco mais que farrapos. Tentei ajeitar-lhe a roupa, mas, nuns restos de pudor, a mulher agarrou-a o mais que pôde, mas consegui ver que, vestido, nem uma combinação.

Passei por lá várias vezes para lhe fazer um bocadinho de companhia e levar qualquer coisa que ele pudesse comer: uma laranja ou o pão com queijo flamengo que nos davam na cantina. O que pudesse dar-lhe algum consolo. Mas um dia tive um desgosto: quando lá cheguei, a “cama” estava vazia.

Só passados alguns dias contei em casa o que se tinha passado. A minha família levou as mãos à cabeça, imaginando o que me poderia ter acontecido. É que a velha era a Ti Mari do Cu, a bruxa tão temida, por toda a gente.

Por estas e por outras é que nunca acreditei nestas coisas!

 

MLFerreira