terça-feira, 13 de agosto de 2013

De bicicleta

Os trabalhos eram poucos num mundo tão cheio. Ia-se para onde os havia e os companheiros pediam uns pelos outros. A Covilhã era a terra que empregava mais gente. Mas não havia transportes para o regresso de sábado ao fim da tarde. Então os trabalhadores juntavam-se todos e iam de bicicleta. O meu pai não tinha bicicleta, nem sabia andar, mas os trabalhos na vila continuaram a rarear e também teve de partir. Primeiro andou à boleia do irmão João, sentado no selim da bicicleta dele. Mas pedalar mais de 30 quilómetros, a maioria de terra batida, com o peso de dois homens em cima…
Comprou uma bicicleta em segunda mão e foi aprender para o campo da bola. Lembro-me bem desse sábado à tarde. Não pude ir, porque ainda nem andava na escola. Estava bom tempo, nem calor, nem frio, seria Primavera, com os dias já grandes. As minhas irmãs mais velhas subiram várias vezes à figueira pingo de mel do Padre Tomás, mesmo ao lado da nossa casa, para ver se o meu pai já sabia andar de bicicleta, mas diziam-me que só avistavam vultos a deslizar, às voltas. O tempo não passava, a tarde não chegava ao fim. Ao fundo do leirão também se via o alto da Devesa, mas era a mesma coisa, nunca mais acabavam de dar voltas pelo campo.
Voltou ao anoitecer. Já sabia andar, mas deixara a bicicleta em casa do irmão, no Casal da Fraga. Do Cimo de Vila para a Tapada seguia-se por um carreiro íngreme, estreito e pedregoso, entre paredes de leirões. Era caminho impróprio para bicicletas, por isso deixou-a sempre no Casal.
E no dia seguinte, domingo à tarde, partiu de bicicleta. Um dia, muitos anos depois, perguntei-lhe como conseguira ir até à Covilhã depois de ter aprendido a andar de bicicleta no dia anterior. Contou-me que parou várias vezes e se deixou cair outras tantas, mas os companheiros esperavam por ele e lá foi indo, que remédio!
O meu pai só andou na Covilhã pouco mais de um ano, pois partiu para a França. A bicicleta vendeu-a a outro operário precisado.
Poucos anos mais tarde, também no tempo bom, começou a anoitecer e as cabras da tia Carlota continuavam presas no leirão do fundo. Não paravam de berrar a chamar pela dona. Fomos ver e ela não estava em casa. Ficámos preocupados e esperámos, com as cabras sempre a berrar cada vez mais, até que se fez totalmente escuro e uma das irmãs, a minha mãe ou a minha madrinha, as foi meter na loja.
E alguém nos veio contar a desgraça: tio Manuel tivera um acidente já a chegar ao Casal e tinham-no levado para o hospital inconsciente. Quando ele e os companheiros iam a entrar na ponte do Casal do Monte do Surdo veio o camião da resina e encheu a ponte. Os ciclistas não couberam e tiveram de se desviar para a berma, estreita e inclinada. O meu tio saiu da estrada e caiu no ribeiro, de cabeça.
O tio Manuel morreu. Para o funeral, eu e os meus primos fomos lavar-nos ao ribeiro das Lajes. Passámos por lá a tarde, à procura de um charco com água suficiente, a correr atrás das libelinhas e a tentar apanhar freiras e alfaiates, às mãos cheias, nas pocinhas de água. No dia seguinte, fomos à Vila. A urna saiu de casa dos pais do meu tio e foi então que conheci o Zé, magro e de óculos, a estudar para padre.
A tia Carlota ficou triste e de luto todos os dias do resto da sua vida e os operários que trabalhavam na Covilhã não voltaram a ir de bicicleta.

José Teodoro Prata

domingo, 11 de agosto de 2013

Como novo

Já noticiámos, aquando do passeio pedestre, que a Junta de Freguesia desenvolveu um projeto de recuperação de algum do nosso património construído, em várias localidades da freguesia. Então, mostrámos a Fonte da Portela, e hoje, o Calvário, como novo, ambos na sede de freguesia.


José Teodoro Prata

sábado, 10 de agosto de 2013

O iníquo regime de castas


Ana Sá Lopes
Jornal i, 9 de agosto de 2013

O poder comporta-se como Maria Antonieta antes da Revolução Francesa
Portugal tem duas classes sociais: o povo, que serve de carne para canhão para cobrir o défice – através de aumentos de impostos, cortes salariais e redução de prestações sociais –, e a nobreza, cujos benefícios serão protegidos ad aeternum.
República há mais de um século, 40 anos depois de uma revolução que prometia “igualdade entre os cidadãos”, Portugal continua a funcionar como uma monarquia tradicional, em que, por lei, o povo tem a obrigação de sustentar uma família por um acaso de nascimento. Infelizmente, ao contrário da nossa monarquia travestida, as monarquias de facto têm a vantagem de ser claras e mais escrutinadas. Se os direitos aristocráticos desta república menor também se transmitem pelo nascimento, eles reproduzem-se nos clubes de negócios, no centrão político, nos grupos financeiros, nos grandes escritórios de advogados, no incrível carrossel dos amigos políticos e dos amigos financeiros, das ligações de famílias ou do que uma boa carreira dentro do PS ou do PSD pode dar. Tudo isto converge na divisão de um país em duas grandes classes sociais: a nobreza e o povo (o clero oscila entre as duas, conforme os protagonistas e os momentos).


A ideia de que existe um “nós” e um “eles” já foi totalmente apreendida pelo povo e está na origem do quase irremediável divórcio entre a população normal e as instituições políticas. Existimos “nós”, – os remediados a quem a crise rapa as poupanças e manda para o desemprego a família – e “eles”, os que nunca vão à falência, os que nunca irão perder o emprego, os que continuarão a almoçar no Gambrinus à conta de uma empresa pública falida, aqueles que o Estado ajudará sempre por razões equívocas. O poder comporta-se – e isso é particularmente doloroso de ver em momentos como este – como Maria Antonieta antes da Revolução Francesa: “Se não têm pão, comam brioches.” É esse estado mental que permite ao governo fazer uma lei para cortar reformas, excluindo magistrados, militares ou trabalhadores da Caixa Geral de Depósitos. E, para escândalo geral, nem uma palavra diz sobre um corte proporcional nas famosas reformas dos políticos.

O comunicado da Secretaria de Estado é lapidar desta total incapacidade de perceber que o fosso entre cidadãos e poder é dramático: o senhor secretário de Estado Hélder Rosalino admite que, “caso se justifique”, o corte nas reformas dos políticos “será tratado em sede própria”. Caso se justifique, ouviram bem? Comam brioches.

José Teodoro Prata

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Os leitões aprendem a caçar

A Felpuda perfilhou dois bacorinhos de dois meses. Dá-lhes de mamar e toma conta deles como faz com os seus filhos, três cachorrinhos muito vivos e engraçados.
E os cinco miúdos brincam juntos como se fossem todos cachorrinhos ou como se fossem todos leitões. São cinco bebés autênticos.
A Felpuda tomou conta dos bacorinhos no dia em que ficaram órfãos e nunca mais deixou que ninguém lhes tocasse. Arreganha os dentes e as pessoas recuam, assustadas. Considera-os seus próprios filhos.
Felpuda, antes de ter os três cachorrinhos e de ser mãe adotiva dos dois leitões, ia muito à caça com o seu dono e tinha arte para apanhar o seu coelhito ou levantar uma perdiz.
Agora, com os pequenos já crescidos, começou a pensar nesses belos tempos em que percorria os matos com o dono, a farejar a caça e, como boa mãe, entende que nenhum cão da sua raça deve deixar de saber caçar. Um dia disse-lhes:
- Bem, meus filhos, é a altura de começarem a aprender a caçar! Amanhã vamos para o mato e vou dar-vos a primeira lição.
E foram. Os três cachorrinhos, muito ágeis, compreenderam logo a lição. Nas lições seguintes fizeram grandes progressos e mostraram que haviam de seguir as pisadas da mãe: serem bons caçadores.
Quanto aos leitões, Felpuda não compreendia nada do que se passava com eles. Só pensavam em fossar a terra e nada de repetirem as lições que ela lhes dava:
- Vamos, meus filhos, cabeça baixa, uma pata no ar, quietos, é assim que se espera a caça.
E eles nada. Nada de repetirem o que ela lhes ensinava.
Ou então:
- Vá, toca a farejar, busquem, busquem por entre as moitas…
E os leitõezinhos, nada! Muito rosados, muito lindos, mas sem jeito nenhum para cães de caça!
Felpuda vive muito desgostosa. Como é que dois dos seus filhos puderam dar naquilo?
- É uma vergonha, é uma vergonha!
Mas não perdeu a esperança e lá vai com eles todos os dias para o mato para os ensinar a caçar.


Esta história chegou-me às mãos sem indicação de autor, nem de título do livro de onde foi extraída. Quem a escreveu, fê-lo a partir de uma notícia publicada no Diário de Notícias de 17 de abril de 1956.
Informava que o sr. João Teodoro dos Santos, residente numa quinta dos arredores de S. Vicente da Beira, tinha uma cadela que tomou dois leitões à sua guarda, os amamentava como se fossem seus filhos e os levava para os matos, com intenção de os ensinar a caçar.

João Teodoro dos Santos (1909-1995) viveu na Serra, acima dos Ribeiro de Dom Bento, ao lado das Lameiras. Por isso lhe chamávamos o ti João da Serra (ou Baloia). Na altura desta história, estava casado com Alzira Casimiro de Oliveira. Mais tarde enviuvou e voltou a casar, com a ti Delfina, que ainda vive na casa do topo da Rua da Cruz. O filho deste casal, o João, vive mais abaixo, na Rua do Convento.

José Teodoro Prata

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

As maleitas da infância

Tu e as tuas irmãs tivestes sarampo ao mesmo tempo. Metidos na cama, cheios de febre e eu sem saber para onde me virar, a levar-vos o comer, a tentar baixar a febre aos mais abrasados e a lavar as roupas da cama. Estáveis todos na cama do quarto escuro, com a porta para a sala, uns deitados para a cabeça e outros para os pés.
Depois melhorastes, mas as tuas irmãs mais novas apanharam logo tosse convulsa. Iam morrendo, sempre a tossir, com aqueles uivos que faziam impressão. Tinha de levar as duas ao hospital, todos os dias, para apanharem uma injeção de um remédio que era feito da resina.
Um dia vinha pela rua acima, com a mais pequena ao colo e a outra a chorar atrás de mim. Ela era só a pelinha e o osso, com a cara inchada e os olhos raiados de sangue, sem forças para andar. Quando passámos, no Cimo de Vila, em frente à casa do tio Miguel Jerónimo, estava lá a ti Jú à janela e perguntou-me porque é que a menina ia a chorar. Eu respondi que ela queria colo. Então a ti Jú desceu as escadas, pegou-lhe ao colo e foi-me levá-la à Tapada. Subimos pela quelha e, quando chegámos à casa velha, já lá vinha a ti Stela que não tinha podido ir comigo, mas que me vinha ajudar. Tirou-me a tua irmã do colo e levou-a o resto do caminho. “Agora a senhora vai sem nada e nós aqui carregadas”, brincou a ti Jú, que era muito reinadia. Mas eu pensei só para mim: “Estás enganada, eu já vou a carregar com outra.” Mas calei-me, porque nesse tempo não se falava da gravidez e tínhamos vergonha, pois as outras diziam logo que a gente é que tinha culpa de engravidar.
Lembras-te de ir casa do teu avô, na Oriana, a buscar folhas da figueira dos figos de picos que havia junto à estrada? Cortámos as folhas ao meio, metemos lá dentro açúcar e depois eu cosi as duas partes, com agulha e linha. Corria delas um líquido pegajoso que dávamos a beber às tuas irmãs. E foste aos pinheiros colher os rebentos da medrança. Depois eram fervidos, para desinfetar a casa. E a mesma coisa com a rama de eucalipto.
Quando elas ficaram boas, a mais velha voltou à escola, mas chegou a casa e deitou-se na cama, de barriga para baixo, sem falar. Agarrei nela ao colo e fui a casa do médico. Ele receitou-lhe umas injeções. Mas eu não tinha forças para andar com ela ao colo, para cima e para baixo, e por isso pedi ao ti António que ma deixasse ficar na casa dele, para o Zé Craveiro lá ir a dar-lhe as injeções. Mas arrependi-me, porque o teu tio chegava a casa para almoçar e, ao vê-la naquele estado, só lhe dava para chorar e não comia.
Só mais tarde é que tivemos papeira, contei eu. A Celeste era a nossa enfermeira e um dia levou-nos às castanhas, nos Carqueijais. Havia um castanheiro lá no alto, perto do caminho, que dava umas castanhas mais grossas. Cortámos caminho por baixo da figueira pingo de mel e depois seguimos a corta-mato até ao caminho. Lembro-me de ir nos eucaliptos do Padre Tomás e sentir as minhas bochechas pesadas a abanar. Mais à frente, no pinhal, ouvimos barulho de alguém e corremos a esconder-nos, deitados ao comprido, no rego da regadia das Lameiras. Era o senhor Bernardino com o burro, que vinha da Barroca. Debaixo do castanheiro achámos poucas castanhas, mas deu uma para cada um e voltámos contentes para casa.

José Teodoro Prata

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Pequeno Lugar

Povo da Beira, edição 1012, ano XIX, 30 de Julho de 2013

Pequeno Lugar era apenas o título de um poema de António Salvado, albicastrense de renome internacional, mas António Fernandes Andrade, amigo e admirador do poeta, tornou-o um amplo projeto com várias vertentes: ecológica, de preservação do património construído e do património imaterial, artístico e de divulgação da obra de António Salvado.
A sede é uma casa de xisto que António Fernandes Andrade reconstruiu e onde tem vindo a implementar o seu projeto. Abrirá portas ainda este ano.

José Teodoro Prata