domingo, 29 de setembro de 2013

O RENEGADO (texto integral)

O RENEGADO

Prólogo

Antes de mais, quero alertar para o facto de serem usados bastantes regionalismos, neste texto, por palavras ou expressões. Alguns, simplesmente, não existem nos dicionários, mas são conhecidos e utilizados, sobretudo pelos mais velhos. Devem ser interpretados segundo o sentido que lhes é dado no interior do país, especialmente na Beira Baixa, o que às vezes é difícil, dada a sua volatilidade, como acontece com todas as línguas, face ao passar das gerações.
Outro alerta é para a circunstância de se usarem algumas alcunhas associadas a nomes de pessoas. As alcunhas são muito frequentes em S. Vicente da Beira. Podem ser consideradas ofensivas. Mas quando aqui se referem é no sentido carinhoso.
Esta história foi-me contada pelo Ti’ Aurélio Moreira que este ano completa a bonita idade de 94 anos e, à época, teria os seus 30. Mas contou-ma muito rápido, no sítio do antigo Tronco, em três ou quatro penadas, portanto, com muito poucos pormenores. Não houve tempo para mais.
Ele próprio viveu alguns dos acontecimentos, sobretudo, da parte final da história, in loco. Mas nada sabia e, em boa verdade, nada podia saber, sobre o que se passou na Tapada quando o Renegado chegou a casa do Ti’ Zé Maria Prata, onde apenas se encontrava a esposa e os filhos deste.
Nestas condições e, como não pude contactar outras pessoas com conhecimentos da realidade fáctica (e sei que as há), vi-me obrigado a ficcionar a maior parte das cenas, das quais não tenho a mínima ideia como terão sucedido. Mas o fundo da história, esse, está lá.
Na parte final da narrativa há de o leitor inteirar-se, se quiser fazer o favor, do fim das aventuras deste homem. Segundo reza a crónica da tradição oral, de que a fonte me deu fé, terminou assim a vida do Renegado que assolou a região da Serra da Gardunha e com ele o mito daquele que, na fantasia destas gentes, ficou conhecido como PISTOTIRA, de que apenas aqui contamos uma aventura.
De tal maneira esta história estava enraizada na população que, muitas vezes, quando um homem da vila se dirigia a um miúdo, de alguma forma zombando um pouco dele, lhe perguntava: «Então, ó Pistotira! O que é que andas a fazer?»
Há outras histórias de outros Renegados da Gardunha, igualmente interessantes e com mais ou menos riqueza de factos, drama humano e recheadas de romantismo de que é sedento o nosso povo. Mas isso fica para depois.   
Não posso acabar, sem deixar de lamentar aquela cena que, essa, corresponderá a factos reais que me foram contados, em concreto, pelo Ti’ Aurélio, em que alguns dos da turba batiam no Pistotira.
É certo que, dentro da cadeia, ele não se encontrava amarrado de pernas. Se estava amarrado de mãos, não se sabe; ou esse ponto não me foi esclarecido. Mas sabe-se que era uma pequena multidão contra apenas um homem, sozinho, no meio do ajuntamento e isso não tem desculpa.
O que pode é haver alguma tolerância se atendermos à mentalidade da época, à euforia do acontecimento e talvez aos efeitos do álcool que, eventualmente, não deixaria de estar presente.       

______________________

O RENEGADO

A invernia nas faldas da Gardunha, naquele ano, como de costume, era das antigas. E aquele dia não era diferente dos demais. O céu estava carregadíssimo de nuvens negras. Anoitecera, tinham dado as cinco da tarde no relógio velhinho da torre. pouco se enxergava. Chovia água, se Deus a dava!
O forte temporal que se abateu sobre o povoado enregelava os corpos e o vento soprava, assanhado, fazendo remoinho nos telhados, levantando a telha mourisca de algumas casas que metiam água como se fora a Fonte Velha, cuja nascente, mesmo diminuindo um pouco, não falece, nem nos anos de maior seca.
Havia necessidade de consertar os algerozes por fora, durante o dia, mesmo debaixo de chuva ou tirar as tchincas das telhas, por dentro, pelo forro, às apalpadelas, com a candeia de azeite, de luz a tremelicar. Porque, no verão, o Ti’ Manel Ubre se encarregaria de correr o telhado, preparando-o para o inverno seguinte.  
A chuva enchera ribeiros e regatos. Vinha tocada a vento! Um homem acobertado atrás do casacão de surrobeco, mesmo que levasse por cima um guarda-chuva largo, de pastor, de pano grosso e ainda que vestisse safões de pele de cabra e polainas, não evitava que a água lhe entrasse pela véstia.
A termo de se ver tão abundantemente ensopado nos bragais mais chegados ao corpo, que começava a sentir aquela impressão desagradável da roupa molhada pegada ao pelo. Uma caminhada pela serra por mor de compromissos de negócio ou jornada no campo e era certo e sabido que se ficava alagado até aos fundilhos!  
«Nossa Senhora! Tanta água! Estava tentada a dizer que isto aqui na Tapada é o inferno, se não rezassem os Santos Livros que o inferno é de fogo! Credo! Está uma noite de lobos! E eu sozinha, sem ter aqui vizinhos. com os meus meninos, prestes a dormir!»
Estava a Ti’ Mari’ de Jesus nestas cogitações e, nisto, ia jurar que tinha ouvido, fora, o barulho de pancadas na porta.
«Quem é?» Mouta! «Quem é que está?» E não retornava resposta.
Teria sido uma saraivada mais forte de pedrisco e vento a matraquear na madeira? Não! Tinha a certeza que ouvira bater!
O Ti’ Maria, o seu homem, não seria. É certo que ele não tinha chave, pois havia apenas uma e essa estava na fechadura. À noite, tinha que bater quando chegava a casa, porque a porta estava sempre fechada por dentro. Mas, se fosse ele, à uma, batia à porta de uma forma que ela logo reconheceria pelo toque e pela intuição de mulher. E à outra, não era ainda a hora habitual do seu regresso.
Nos dias em que a intempérie não permitia afazeres no campo, costumava entreter-se, até mais tarde, com os amigos, na venda do Ti’ João Arrebotes, na praça, por baixo da casa onde vive o Coné.
Tirou-se de cuidados, levantou-se do banquinho em que estava sentada ao lume, onde fez o caldo, afoita, que ela ainda era nova e um pedaço de mulher! Embrulhou o tronco e a cabeça num xaile para não ir diretamente do calor para o frio e evitar, assim, constipar-se. Agarrou na candeia e dirigiu-se ao corredor que dava para a porta da rua. Rodou a chave da fechadura para a esquerda, correu o trinco e abriu.  
Surgiu-lhe pela frente, de alto a baixo, no recorte retangular das lajes de granito das ombreiras, uma sombra, com contorno de gente, mas mal definido. A fraca luz da candeia e o negrume da noite, não deixavam perceber quaisquer feições. Dava apenas para ver que se tratava de um vulto de homem.
Fosse quem fosse o visitante, visto assim de repente, metia respeito! Mas como por ali tudo corria na paz do Senhor, a dona da casa, embora receosa, susteve a surpresa, sem apanhar grande cagaço.
Levantou a candeia com uma mão e pôs a outra à frente do vento para que não se apagasse a chama, aproximou-a daquela visão fantasmagórica que ali aparecera inopinadamente e lhe pôde ver melhor a cara. Mas não o reconheceu. Nem de perto, nem de longe. Nunca o tinha visto!
Estava postado na moldura da porta, encharcado, e tiritava do gelo da noite. Tinha barba e cabelos negros bastante compridos e em desalinho, com alguns laivos grisalhos. Homem dos seus 50 ou a passar, atarracado, mas espadaúdo.
Via-se que se encontrava fisicamente debilitado, certamente pela fome ou pelos trabalhos e agruras da vida. Apresentava um aspeto andrajoso, mais do que permitiam os costumes. Mas parecia ainda mais maltratado, porque saltava imediatamente à vista que não tinha quaisquer cuidados com a barba e os cabelos.
Apercebeu-se que estava ali aquela mulher e, eventualmente, crianças dentro da casa e que, por ora, não havia qualquer presença de homem. Mas não fez qualquer gesto intimidatório. Pelo contrário. Procurou fazer um ar sereno e um tanto humilde, como convinha a um visitante.
Fosse porque era pessoa de bem, que se tivesse por ali perdido na serrania, a caminho da Charneca ou do Louriçal, mas isso estava por provar; fosse porque precisava de se enxugar e de uma mão amiga que lhe estendesse um pedaço de pão e um prato de sopa quente. Parecia esgalfado!
Perante a porta aberta de uma casa de família, com o aconchego, mesmo momentâneo, que isso podia representar para si, a sua voz era baixa, calma e vacilante, diante da mulher que lha abrira.
«Deixe-me enxugar no seu lume, por um bocado e dê-me um prato do seu caldo; seja por quem tem.»
Tratando-se de um indivíduo estranho, mal apresentado, com ar de poucos amigos e, ainda por cima, aparecer ali àquela hora e com aquele tempo, tudo isto tinha posto a mulher, de início, em alerta. Mas esta postura do homem, de falinhas mansas, que parecia que deitava a alma ali no chão de pedra do limiar da entrada, levou-o a ganhar alguma confiança.
Parecia apenas um pobre homem. Um ferrabrás. Um maltês, sem pau nem manta. Um faminto, sem eira nem beira, como tantos outros. Um pobre diabo; ou, quando muito, um fora da lei de pequenos delitos, de roubar para saciar a fome. Que bem podia ter pertencido à quadrilha do do Telhado, se tivesse sido seu contemporâneo. Um herói mais romântico que sanguinário.
E, por aqui, havia tempo sem notícia de assaltos a pessoas ou casas, por delinquentes de vário grau de gravidade. Que iam de pequenos furtos a ameaças com faca ou arma de fogo ou mesmo morte de homem, como se dizia à boca pequena, porque isso não era fácil de confirmar.  
«O que é que o traz por aqui com este tempo, homem de Deus?»
«Perdi-me aqui na serra…»
«Entre, ali para o lume a aquecer-se, que eu lhe arranjo uma tigela de sopa quente. E não faça muito barulho, que os meus filhos estão no quarto a dormir.»
O homem entrou. A dona da casa atiçou melhor o lume, com um abano e pôs mais dois troncos de pinho até fazer uma valente boutcha que iluminava a pequena cozinha até ao teto. O inesperado visitante despiu o velho casaco que trazia e pôs-se de pé diante da ala, que atingia quase um metro de altura. Virava-se, alternadamente, de frente e de costas e logo as suas roupas soltaram rolos de vapor para o ar, como se fosse uma panela a ferver, tal era a quantidade de água que trazia em cima.
Mais ou menos meia hora, esteve nesta espécie de rito gestual, a enxugar-se. Foi o tempo durante o qual teve ainda que suster a fome de lobo que trazia, antes de sentir o sabor da sopa que lhe havia sido prometida.
Mas era necessário. Já tinha feito tantos sacrifícios, era mais um! Não podia sorver uma sopa quentinha das que aquecem a alma e ao mesmo tempo sentir a roupa molhada em cima do corpo! Era como se fosse apenas meio prazer. Ao cabo, sentou-se num banco em frente à lareira, bastante mais reconfortado.
«Há lá lume como o seu, senhora Maria! Isso há ele! Ná! E para mim, nesta hora, é como uma santa bênção!»
«Por que jornada e por que trabalhos vem a estes sítios num dia como este e da maneira que tem estado este ano, criatura do Senhor? Não o conheço por cá!»
«Sou um homem das serranias acima do Fundão, onde estou acantonado. Tenho vida errante e ando por caminhos tortuosos, porque preciso de comer. A fome e a penúria empurraram-me, por minha culpa, para o abismo. Vejo-me forçado a procurar alimento e a descer ao povoado, como os lobos.»
E mais não adiantou. Teria teto com soalho, na serra? Vivia da agricultura e calcorreava a montanha em busca de oportunidade de negócio para algumas peles ou para uma ou outra cabeça de gado? Como era e como não era a sua vida e como angariava proventos para se alimentar?
A Ti’ Mari’ de Jesus procurou uma malga na cantareira, onde tinha a loiça deborcada e deitou o caldo para dar ao inusitado visitante, a fumegar, apetitoso, ainda a escaldar, que a panela ainda fervia quando meteu nela a concha para o tirar! Estendeu-lha, com um bocado de broa.
«Aqui tem e que lhe faça bom proveito!»
«Bem haja e que Deus lhe dê saúde, que a merece.»
O homem comeu sofregamente, ainda a queimar, aquela reconfortante malga de sopa de couve e feijão, onde assomava um pedaço de toucinho do alto, cozido. Comeu tudo e soube-lhe a pútegas porque a magana da fome era de dias. Pousou a malga sobre a pequena mesa da cozinha, delicadamente.
«A senhora Maria acudiu-me numa hora difícil. Estou certo que Deus lhe de contar este gesto para desagravo dos pecados, quando um dia estiver diante d’ Ele; mas que esse dia venha ainda longe!»
«Bem haja, bem haja!»
Toda esta aparente cordialidade tinha deixado, primeiramente, no espírito da dona da casa alguma tranquilidade. Mas os lapsos e as explicações pouco convincentes e pouco esclarecedoras da vida errática do metediço, não eram de molde a configurá-lo, como acontecia com os mais, como um homem de assento. Tudo isto e mais as histórias que por ali se contavam, de vez em quando, sobre renegados e assaltantes dos caminhos, começaram a levá-la a ficar um pouco inquieta.
Enquanto ele comia a sopa, a mulher tinha reparado que pegava na colher de forma diferente do habitual, segurando-a como quem pega no cabo de uma ferramenta pesada, com o polegar oposto aos restantes dedos; em vez de a suster de forma usual, entre o polegar e o indicador. E descobriu que isso se devia a faltarem ao homem dois dedos da mão direita: o mínimo e o anelar. Dessa maneira ele disfarçava a imperfeição física. O sinal indissipável daquele corpo, pelo muito que teria penado durante a vida, que se adivinhava muito aventurosa. O homem estava marcado!
Isto conferia com uma daquelas histórias de terror sobre homens que se acoitavam na serra e se acercavam das redondezas das povoações para roubar casas e pessoas. A própria mulher ouvira dizer que um dos tais foragidos era conhecido por ter dois dedos a menos numa mão. Mas como nunca tivesse tido um mau encontro com gente dessa laia, graças ao Senhor; nem ouvido falar de forma fidedigna desses acontecimentos, pareciam-lhe loas do soalheiro, do imaginário, do disse que disse. E atirava-as, inexoravelmente, para o sótão do esquecimento porque tinha mais que fazer!
Mas o raio é que tudo o que se passava, desde um bom migalho, paredes adentro da sua própria casa, condizia com algumas das descrições dessas histórias!
Um farroupilha de homem que lhe apareceu numa noite de cães, de chuva, frio e vendaval, esfomeado e a tiritar, que mais parecia um ladrãozeco; narrando uma história pouco consistente, não contando, ostensivamente, o que parecia dever contar; tudo fazia pouco sentido e não merecia credibilidade. E, sobretudo, agora, a falta dos dois dedos na mão do homem, tal como ela ouvira numa das histórias que ali corria!
A Ti’ Mari’ de Jesus começou a ligar as pontas. Congeminou, congeminou, tirou a sua conclusão e ficou em pulgas!
«Meu Deus, é ele! É ele! É o Pistotira!»
«Tenho em casa um bandido! Um matador dos caminhos! Aquele que dizem que tem dois dedos a menos numa das mãos e de quem se têm contado histórias de roubos, ameaças e assaltos! Nossa Senhora! Credo! O que é que eu fui fazer ao dar guarida a este homem na minha própria casa!»
Assim mesmo manifestava a dona da casa o seu pânico. E não era para menos! Não pelo que tinha acontecido até ali, pois o homem até se tinha revelado cordato e educado. Na verdade, nada de mau se tinha passado. Mas se era quem ela pensava, a sua inquietação redobrou ao menos pelo que ainda poderia vir a suceder. Pois, verdadeiramente, nada sabia dele. Podia ter estado a fingir o tempo todo e ser uma pessoa malfazeja, muito diferente do que até ali aparentara. E mudar a sua atitude, tornando-se agressivo, capaz de roubar os seus haveres e até agredi-la ou fazer mal aos filhos.
Fazia exames de auto mortificação, condenando-se a si mesma por não se ter apercebido da espécie de indivíduo que metera em casa. Como cristã, limitara-se a oferecer-lhe hospitalidade. Agora não podia arriscar mais. Tinha que engendrar um plano para se ver livre daquele intrometido que sabia agora tratar-se de alguém com má fama, a condizer com os sinais do Pistotira.  
Mas para levar adiante tal façanha, a dona da casa não podia dar-se por achada. Nada de dar a entender que tinha acabado de descobrir a verdadeira identidade do meliante. Conversa daqui, conversa dali, para entreter, sobre o tempo, a vida assoberbada e as dificuldades das gentes da região. A páginas tantas, desculpou-se dizendo que tinha que ir ver as crianças aos quartos, onde estariam prontas para rezar a oração da noite e adormecer.
«Ó alma de Senhor, vou ver as crianças que estão para adormecer e já venho! Ponha aí mais duas cavacas de pinheiro, enxugue-se melhor e aqueça-se para a jornada que, ao que imagino, deve ser longa!»
E lançou ainda, como forma de robustecer a sua própria (mas aparente) confiança e dominar o medo:
«O meu homem não deve tardar. Nestes dias pequenos costuma chegar mais cedo para a ceia!»
«Vá, vá, Ti’ Maria, vá!»
Esgueirou-se a mulher, quase a correr, pela porta estreita do fundo da cozinha e dirigiu-se ao quarto onde se encontrava o filho mais velhito, dizendo-lhe em surdina:
«Filho, não faças barulho, mas estamos metidos num grande sarilho!»
«Levanta-te, agasalha-te bem com um casaco velho, grande, que ali está na cadeira. Pega num dos guarda-chuvas que estão atrás da porta e acoita-te bem debaixo dele para não te constipares com a chuva e o frio. Sai devagarinho e vai depressa dizer ao teu pai à venda do Ti’ João Arrebotes que está aqui em nossa casa o malandro do Pistotira! Não te demores. Vai num pé e vem no outro. Vá, anda lá, filho!»
O miúdo andava pelos seus 12 anitos e era vivo e fino. Mal pôs o pé fora de casa, leve como era e habituado como estava às correrias da brincadeira, a saltar paredes e cômoros, calcorreou a rua num ápice até à praça. E, em menos de um amém, estava à porta da taberna do Ti’ João Arrebotes. A entrada era vedada a jovens e crianças daquela idade.
Lá dentro, os homens formavam, entre si, diversos grupos dispostos em roda, que tagarelavam segundo o assunto de interesse de cada um; fosse por causa do tempo; fosse por mor das fainas agrícolas e dos negócios. Alguns rapazes contavam dichotes uns aos outros, por brincadeira, como forma de mangar e passar o tempo; outros jogavam o tanguinho por pontos, à rodada. A vozearia era elevada porque cada um se queria fazer ouvir por cima do barulho que pairava no ar.
O miúdo esperava fora quando um dos homens ia sair e se dirigia ao urinol de água corrente que existia por baixo da Fonte da Praça, a mijer; e onde alguns também iam despejar a saburra do odre avinhado. Chamou-o.
«Ó senhor; senhor!»
Como não havia luz pública, com o fraco brilho que vinha do candeeiro, de dentro da taberna, o outro não o reconheceu.
«De quem és tu rapaz? O que é que tu queres! tocaram as avé marias e ainda aqui andas a esta hora?! devias estar em casa! Descuida-te e ainda levas uma sova do teu pai com algum cinto!»
«Sou filho do Ti’ Maria Prata; está dentro; diga-lhe que chegue aqui; quero dar-lhe um recado; depressa!»
«Ah! O quê? Ti’ Maria? Ah! Então, espera aí. Espera aí, rapaz!»
Veio o Ti’ Maria e o filho pô-lo ao corrente do que se estava a passar na sua casa, na Tapada, acima da vila, como lhe dissera a mãe; e que estava o bilontra dum homem que parecia mesmo o Pistotira.
O Ti Maria ainda que dissesse de si mesmo que era “o número um de S. Vicente”, batendo com o direito no chão, para reforçar o discurso laudatório; e ainda que fosse bem constituído, forte de pulso, capaz de enfrentar o mais pintado, mesmo assim, ficou varado com a notícia. E principiou a vociferar:
«O Pistotira na minha casa?! O Pistotira debaixo do meu teto, onde tenho a mulher e os filhos?! Pode ser! Vou deitar a mão àquele alma do diabo! Àquele desgraçado! Ah, se me faz mal à Maria ou aos filhos! Vou persegui-lo até ao quinto dos infernos!»
Assim mesmo gritava ele, fora de si, que o seu receio não era por ele próprio, mas pela família.
Porém, pelo facto de o vadio se encontrar dentro de casa, dava a lei ao dono possibilidade de usar de auto defesa. Podia detê-lo por suas próprias mãos, da forma que fosse possível, sem prévio recurso às autoridades. No limite, levado por sério receio, podia até matá-lo. Disso tinha a certeza. Tanto mais que se tratava de um suspeito, um tratante com fama de ladrão e assaltante. Estava legitimado!
Alvoroçou-se a taberna com a clamunha! Pariu ali a galega! O que é, o que não é? Pouco a pouco, todos foram sabendo a razão do alarido. A história do Pistotira e a sua fama eram por demais conhecidas na região.
E logo o Ti’ Zé Maria se apressou a ir direito à Tapada a ver pelos seus próprios olhos o que lá se passava, prontamente secundado pelo Ti’ Zé Pedro, mais conhecido por Zé Gato e amigo de longos anos. Queriam prender o Pistotira!
Mas, tratando-se de deter alguém, o alvoroço e o alarido eram maus conselheiros. Iriam certamente alertar o homem e este escapulir-se-ia, que ele tinha aprendido a ser lesto de pernas, qualidade que o tinha safado em muitos apertos, dos quais, pelo que se contava, a sua vida era pródiga. 
Decidiram, então, calar-se quanto podiam e foram rua acima, silenciosos, tanto quanto o permitiam a emoção da tarefa e a exaltação do vinhito que tinham emborcado no Arrebotes. Os outros, talvez uns 15, ficaram na praça, mas não arredavam pé da porta da taberna, na expectativa, a ver o que a coisa dava.  
Os outros dois lá iam. À frente o dono da casa, que se esforçava por pôr no semblante o ar mais natural possível, como se fosse da venda, de seroar, sem nada saber, quase ombreado pelo Ti’ Zé Gato. Como já tinham combinado, este ficaria à entrada da soleira da porta, em silêncio, para o que desse e viesse. Era preciso prevenir, não fosse o homem estar armado com faca ou com algum pistoleco e pudesse haver derramamento de sangue.
O indivíduo continuava a aquecer-se, lá dentro, ao lume, como se fora visita de bem. A Ti’ Mari’ de Jesus entrava e saía da cozinha, atarefada com os afazeres da casa, como de costume, que o dia seguinte era de trabalho, assim o tempo o permitisse. Os filhos dormiam. Tudo numa aparente paz doméstica.
Bateram à porta e ela foi abrir, com o coração aos pulos, procurando disfarçar a agitação interior. Era o seu homem. Que percorreu o corredor e, breve, apareceu no traço da porta da cozinha.
«Boa noite», entrou logo a dizer. E assim que deparou com o homem:
«Temos visitas?»
«Temos», respondeu a mulher. «Esta criatura apareceu aqui encharcado, cheio de fome e de frio. Tem estado a enxugar-se. Comeu uma tigela de caldo quente com toucinho e pão e tem estado a aquecer-se para seguir jornada.»
Tudo isto fazia parte da encenação que não fora, mas parecia ter sido combinada. Ainda não se sabia se o indivíduo estava ou não armado. Era preciso tato e bom senso para não deixar que pudesse criar perigo para qualquer dos membros da família.  
E o Ti’ Maria dirigindo-se a ele: «Então e você o que o traz por estas paragens, se não leva a mal o perguntar?»
«Perdi-me por esta serra.»
«Com um tempo destes a perder-se na serra?!... Nem os lobos por andam e os cães mal ladram nos casais!»
«Pois sim, mas tenho que porfiar… Vida e corpo a sustentar…»
«Homessa! E como vai o amigo?» Disse o Ti’ Maria ao mesmo tempo que lhe estendia a mão para o cumprimentar. O outro ia também a estender-lhe a mão. E é quando o dono da casa confirma aquilo que esperava e era por demais conhecido da história que se contava acerca do Pistotira: a falta dos dedos da mão! A sua marca corporal tinha-o denunciado!  
«Ah! Seu malandro! Seu ‘filha da puta’! Você é mas é o Pistotira, procurado por assaltos a casas e pessoas, que inquieta muito tempo a gente destas terras com ameaças e extorsão de bens! Então você vem aqui, alberga-se abaixo das minhas telhas, mesmo nas minhas barbas, bem sei eu se com intuito de roubar-me o que é meu e molestar a minha família?! Você está preso! Preso, ouviu?! de pagá-las agora todas juntas!»
Enquanto isto dizia, o Ti’ Maria, que era um homem na força da maturidade, deitou-lhe os galfarros aos gorgomilos, atafegou-o e imobilizou-o, para que não se socorresse de alguma faca ou arma de fogo, caso a trouxesse.
Quando viu que fora descoberto, o homem ainda esboçou alguma resistência, mas podia ele nada contra o Ti’ Maria! É que, este, redobrou de esforço e energia. À uma, porque estava em sua casa o que lhe dava mais ânimo e confiança, que tinha para dar e vender. E, por outra, tratava-se de se safar a si próprio e à sua família daquele perigo e inconveniência!
O Ti’ Gato que aquilo ouvira entrou também de rompante na cozinha para ajudar o amigo. Seguro e imobilizado o Pistotira, manietaram-no pelos pulsos, por forma a não poder fazer qualquer gesto agressivo.
A intenção era metê-lo na cadeia que se situava por baixo da antiga casa da câmara, na praça, uma espécie de fortaleza de granito. Dali não fugiria! No dia seguinte, seguiria debaixo da força de cabos de ordens, a pé, até Castelo Branco, para ser presente a tribunal. Era a oportunidade de o Pistotira ir, finalmente, enfrentar a justiça e ser condenado pelas patifarias que tinha praticado durante anos.
Se assim pensaram, melhor o fizeram. Sempre de olho nele porque apesar das mãos atadas, as pernas estavam livres e podia tentar fugir, mal se descuidassem os seus captores. Um de um lado, outro do outro e ele no meio, levaram-no até à praça.
A chuva amainara, mas percebia-se que o astro permanecia nublado. Nenhuma estrela era visível no firmamento. A noite era breu e, como se sabe, não havia luz na via pública.
em frente da taberna do Ti’ João Arrebotes, à vista da pouca claridade que vinha de dentro, puderam os presentes divisar o prisioneiro e os que o traziam preso e amarrado. Cresceu a algazarra. A notícia correu por todas as tabernas da redondeza. Todos os que souberam do caso, foram aparecendo, gradualmente, até formarem um adjunto de 25 ou 30 homens. Uns mais maduros, outros na força da mediana idade e outros ainda rapazes acima de casadoiros, feros e capazes de arremeter contra castelos!
Acercavam-se do energúmeno, primeiramente, por curiosidade. Queriam ver de perto o vilão mas também, de algum modo, herói de aventuras. Afinal tinha sido preso um dos homens de que tanto se falava, cuja fama de malfeitor corria pela Beira. Um dos fora da lei que há muito se tinham assenhoreado daquelas serras. Podiam agora tocar-lhe, que estava ali à distância de um braço. Como se só pelo toque pudessem confirmar a existência daquela figura quase lendária que lhes parecia ter saído da fantasia dos livros de quadradinhos. 
Foi chamado o regedor que, após se inteirar do caso, confirmou a detenção. O forasteiro dormiria no local apropriado e no dia seguinte seria levado a Castelo Branco. O resto ficaria à responsabilidade das autoridades da comarca. Todos acreditavam que a situação dispensava investigação. Podia dizer-se que o caso era público e notório e não necessitava de prova, tal a má fama de que o indivíduo gozava em toda a riba Gardunha. Mas, se necessário, testemunhas contra ele não faltariam.   
Era preciso metê-lo no calabouço. Veio um candeeiro. A turba iniciou a marcha com o clamor que a circunstância deixa adivinhar e o prisioneiro no meio, atado de mãos, em direção ao edifício onde se situava a cadeia, no topo da praça. Elevou-se a gritaria, o homem sempre vigiado pelos cabos de ordens e por muitos populares. Formavam-se grupos de indivíduos que transbordavam euforia, abraçados uns aos outros, aos urros, que iam e vinham, dentro da roda do ajuntamento, aos avanços e às arrecuas. 
Entraram pela porta que hoje dá acesso ao gabinete do presidente da Junta de Freguesia, aberta para a praça velha, agora praça Dr. Hipólito Raposo. O rés do chão era amplo, mas havia divisão dos espaços, de acordo com as necessidades. Uns destinados à zona das detenções, outros aos serviços administrativos e outros com funções auxiliares ou não especificadas. 
Até ali, tinha-se criado à volta do indivíduo um halo de proteção. Uma espécie de estado de graça generalizado entre os membros da malta, pela surpresa e curiosidade que suscitara a sua aparição. Mas começaram a levantar-se, a pouco e pouco, vozes de censura. A admiração deu lugar à chalaça, primeiro, e à provocação, depois. Desvaneceu-se a fantasia da lenda e veio ao de cima a lembrança do desassossego provocado pelo malfeitor nas populações, durante anos. 
Dentro da cadeia, pendurou-se o candeeiro em sítio adequado, suficientemente alto para iluminar o local, com o detido no meio do aglomerado das pessoas e o regedor e os cabos de ordens por perto.
Circulava entre os presentes, entusiasmados pela façanha conseguida, um cântaro de tinto do Arrebotes, oriundo da muito ténue encosta ensolarada das Vinhas do Poço, abaixo da Fonte da Portela, a expensas da rapaziada ali reunida.
A certa altura da função, fosse por força da excitação do préstimo feito à sociedade, prendendo o facínora; fosse pelos copos escorropichados desde que anoitecera, às cinco da tarde daquele dia de inverno; e, com as veias das frontes a latejar, as testas brunidas e o hálito vinolento, turvou-se-lhes o espírito.
«Hás de pagá-las agora, cão», dizia um. «Safado!» Dizia outro. «Espera-te o degredo em África para o resto da vida!» Regougava aquele. «Acabou-se o teu reinado, ladrão!» Volvia ainda um outro.
            Dizendo isto, atento o currículo de torpezas do biltre, antecipavam-lhe já um futuro negro, mesmo antes de a justiça se pronunciar. E a vingança, ainda que ligeira, já começara. Um passava por ele e dava-lhe uma lambada; outro um pontapé; outro, ainda, empurrava-o e caçoava dele. E assim se viu o homem encurralado e sozinho.    Salvo seja, parecia mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo entre os algozes. É certo que ele era culpado e pecador e merecia castigo. Mas até na condenação um homem tem direito à dignidade.
«Ah! Damonho! Tantas fizeste que vais acabar a espernear numa corda!» «Chegou o teu fim! Não voltas a ver sol nem lua!» Iam dizendo os do bando.
E porque torna e porque deixa, levaram umas boas duas horas nesta léria, bem regadas de tinto.
Não tugiu. Uma palavra dele e aumentaria ainda mais a sanha da chusma.
Tanto quanto lhe era possível e porque, até àquele dia, em todas as ocasiões se tinha saído por cima do cadafalso que lhe haviam armado, principiou logo a pensar em tirar partido da ineficácia daqueles cérebros toldados pela exasperação. Que era nada menos que uma mistura feita de muita emoção e alguns meios quartilhos de tinto do Arrebotes! Tinha que espreitar uma aberta para dar às de vila diogo, se não queria ir bater com os costados na enxovia. 
A tramoia ameaçava prolongar-se noite dentro e pela madrugada fora, até à saída do prisioneiro para Castelo Branco. Porém, a certa altura, não se sabe bem o que sucedeu. Se foi algum gesto feito à toa; se terá sido alguma pancada com intenção de alguns causarem a desordem e fazer justiça popular já ali, criando as condições de impunibilidade para os autores; se foi por falta de combustível. Fosse lá por que razão fosse, o que se sabe é que o candeeiro se apagou de repente e ficou tudo às escuras! Pânico! 
«Aqui d’el rei que o preso foge!» «Aqui d’el rei!» «Acudam!» «Agarrem-no!» «Não o deixem fugir!» Gritavam. E andavam feitos tarantas na escuridão, às apalpadelas, aos encontrões uns nos outros, sem atinarem ou enxergarem o que quer que fosse.
            Era a oportunidade do Pistotira! Ele já tinha mirado uma janela que dava do edifício da cadeia para a praça velha, situada a cerca de apenas um metro de altura do chão, hoje serviço da Junta de Freguesia. Encontrava-se aberta. A pequena multidão, desleixada pelo excesso de confiança da sua missão, não a fechara.
Mal se apagou a luz e ele se sentiu livre, afastou os vigias mais próximos com dois encostos. A coberto daquela abençoada escuridão, deu dois saltos empurrando mais alguns dos que inopinadamente lhe estorvavam o caminho. Que ele, como já se referiu, era lesto de pernas e ágil de movimentos. Habituado que estava a livrar-se de encrencas como esta, deu um pulo pela janela e estava na rua como pássaro fora da gaiola!
Em menos tempo do que se leva a rezar uma avé maria, afastou-se do local e pôs-se de largo. Os do adjunto, meio a tatear, lá acenderam o candeeiro. Foi então que puderam confirmar a falta do prisioneiro. E vieram logo para a rua onde reinava a grande aliada do fugitivo, a treva, às apalpadelas. Ainda deram umas voltas pela zona da praça, pensando que, com a noite que estava, ele não iria muito longe. Mas podiam lá eles apanhá-lo com a mente que levava, incendiada pelo ânimo, direito à liberdade!
Nunca o apanharam. E assim acabou, que se saiba, a aventura do Pistotira por estas serras. Teria rumado a sul, onde continuou a fazer das suas.

Uns anos depois, no Vale de Santarém, em desavença com alguém a quem teria cobiçado os haveres, em fuga desenfreada, caiu num poço que se lhe atravessara no caminho e que não lobrigou, afogueado como ia a escapulir-se, mais uma vez, para não perder a liberdade.
Terá sido a sua derradeira aventura. Consta que ficou muito mal nessa queda e que acabou mesmo por morrer quando a GNR quase lhe terá arrancado as orelhas ao puxá-lo do poço. 

José Barroso 

Nota: Publica-se o texto em versão integral, para que os leitores o possam ler no seu todo e não por partes, como aconteceu na primeira publicação. 
José Teodoro Prata

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

À caça do texugo

Este ano, ainda não tinha visto sinais dele e por isso já andava preocupado. Mas no fim-de-semana passado encontrei uma videira de moscatel branco só com os engaços pendurados, os bagos já tinham sido comidos. Foi de certeza o texugo, pois era um trabalho bem feito, sem estardalhaço, ao contrário do javali, capaz de arrancar uma videira para lhe comer apenas metade de um cacho. Por outro lado, a raposa é lambisqueira, passa e come uns baguitos, aquilo foi trabalho metódico, só de um texugo.
A minha irmã Isabel já o viu e diz que é preto e branco, mas eu nunca lhe pus a vista em cima. O primeiro e único texugo que avistei foi na primavera de 2012. Convidara o Pe. Jerónimo para apresentar, em São Vicente, o meu livro “O concelho de S. Vicente da Beira nos finais do Antigo Regime” e por isso fomos dar uma volta pelo território do antigo concelho. Entre o Barbaído e o Freixial lá ia um, todo lampeiro, na berma da estrada. Era acinzentado, com zonas mais claras e outras escuras, bem lustroso e felpudo.
Mas já o conhecia do “Romance da Raposa” do Aquilino Ribeiro, quando o li para mim e depois, repetidamente, para os meus filhos. E ainda antes, na minha infância. Nas noites quentes de verão, apareciam luzes na serra, por cima do Caldeira. Eram as almas penadas, mas alguém duvidava, talvez fosse o Joaquim do Bernardo que deixara uma lanterna no meio do milho, para afugentar o texugo.
Ele gosta de milho, não das folhas e do caule, mas dos grãos da maçaroca. Embarra-se na cana do milho e, com os dentes, rasga o folhelho que envolve a maçaroca. Depois enche a barriga e volta lá no outro dia e no outro e no outro. Como vai fazer com as minhas videiras!
O milho em São Vicente, na parte da encosta e dos vales ribeirinhos da Gardunha, é de regadia e só amadurece lá para finais de Setembro. Por isso a história da minha caçada ao texugo faz agora anos.
Tínhamos milho no Ribeiro das Moças, uma pequena propriedade das Quintas, dentro do grande vale da Ribeirinha. O texugo andava nele e já fizera bastantes estragos. Então o meu pai decidiu fazer-lhe uma espera. Eu também fui requisitado e por isso lá parti, já noite cerrada, com ele e com a minha mãe. Levávamos uma lanterna, mas só foi necessária para o caminho estreito da regadia do Carquejais, pois o restante era largo e os nossos pés já o sabiam de cor.
Chegados à horta, o meu pai fez a distribuição do pessoal: ele ficou no leirão do fundo, junto à regueira que descia leirões abaixo, e eu e a minha mãe no rego do ti António Romualdo, que levava a água da nossa mina, no terceiro leirão, para a propriedade dele. Os três armados com sachos, para o esmagar, logo que ele desse sinais.
Ficámos por ali, deitados no chão, a sentir o fresco e o cheiro da maresia, sem falar, nem nos mexermos. Sempre de ouvido à coca, quando não passávamos pelas brasas. A meio da noite, o meu pai veio fazer o ponto de situação e voltou para o seu posto. Nada. Um pouco antes de começar a aclarar, ainda noite fechada, sentimos barulho do lado de onde esperávamos o texugo, mas apareceu-nos o Tonho Romualdo, de sachola às costas, que vinha despejar a mina. Admirou-se de nos ver ali e nós explicámos. Depois chegou também o meu pai, a saber que barulheira era aquela.
Desistimos e regressámos a casa. Talvez o texugo tivesse dado pelo nosso cheiro ou o Tonho Romualdo o tenha espantado. Raio do homem, a regar à hora de dormir!

Esta, o texugo já vindimou!
José Teodoro Prata