Toda a vida fomos pobrezinhos, cá em
Portugal, mas dizem os antigos que mesmo assim sempre houve muitos cobiçosos a
quererem tomar conta da gente. Diz que duma vez foram os espanhóis que vieram
por aí adentro. Parece que eram muitos! Tinham boas espingardas e bons cavalos;
andavam bem comidos e bebidos; armados em valentes! Os nossos, coitaditos,
esganados com fome, muitos deles descalços e nem armas como deve ser tinham.
Mas parece que deram bem conta deles todos, mesmo quase só com machadas e
forquilhas. Diz que uma ocasião, uma padeira deu cabo duns poucos só com a pá
do forno. Se é verdade ou se são histórias, isso não sei; é o que ouvia contar
aos antigos…
Mas dizem que os piores foram os franceses que vieram
a seguir, no tempo do Napoleão. Parece que eram ruins, os filhos do diabo! Toda
a gente tinha um medo deles que se pelava. Pilhavam tudo por onde quer que
passassem: casas, hortas e até as igrejas e as capelas! E diz que matavam as
crianças e que faziam mal às mulheres; tanto se lhes dava que fossem velhas ou
novas. Não respeitavam ninguém! Piores que bichos! Constava-se que no Açor
mataram uma cachopinha muito linda, ainda donzela, que tinha ido com outra à
lenha. Quiseram gozar-se dela, mas como a rapariga se defendeu, deram-lhe um
tiro que caiu logo ali, redonda no chão. Diz que no sítio onde fizeram esse
serviço, nunca mais nasceu uma ponta de renovo.
Para fugirem dessas desgraças e para não serem
obrigados a ir para a guerra, muitos homens pegavam nas mulheres e nos filhos e
abalavam dos povos. Fugiam para a serra, ou para onde calhava, e ficavam por lá
escondidos até que as tropas abalassem.
Foi o que fez um homem do Vale da Figueira, quando se
começou a constar que os soldados andavam para aquelas bandas. Pegou nos três
filhos e na mulher, que já andava outra vez com barriga de fim de tempo, e
foram-se a esconder numa cabana que fizeram com paus e ramos de gesta, para os
lados da Ribeirinha. A mulher e os meninos dormiam lá dentro, deitados numa
cama de fetos. O homem dormia ao relento, a tomar conta, não fossem os soldados
ou algum bicho aparecer por lá.
Passaram muitos cuidados e muita fominha, enquanto por
lá andaram. Não é que não estivessem já avezados a viver com muitas precisões,
sem farturas nem grandes novidade, mas naquela ocasião foi muito pior! A única
coisa que tinham para comer era uma talêga de milho e uma amotolia de azeite
que tinham trazido de casa, por isso os cachopinhos só comiam umas papas de
carolo, aguadas, quer de manhã quer à noite; o homem e a mulher, o mais das vezes,
era um caldo de beldroegas ou de saramagos engrolados, temperado com um fio de
azeite.
Ele bem procurava! … Todos os dias pela tardinha ou
logo de manhã, muito antes do sol nascer, saía à cata de qualquer coisa com que
matar a fome aos filhos e à mulher, mas o mais das vezes voltava de mãos a
abanar. Pelas hortas, nem se atrevia! Eram tempos de miséria e de pilhagem, e o
que ainda não tinha sido roubado estava bem guardado pelos donos, de dia e de
noite. Os figos ainda em leite e os gachos e as amoras tão verdes que nem os
cães os queriam. Ir pedir às portas, nem pensar! Se o agarrassem, lá tinha que
marchar também… Por sorte que era o tempo dos ninhos, e de vez em quando lá
trazia uns passaritos ainda mal vestidos ou um coelho tirado da toca. Era uma festa,
nesses dias! E duma vez que agarrou uma cobra?! Deu uma caldo melhor que canja
de galinha!
Um dia, já pela tardinha, andava ele nestas andanças e
a mulher sozinha com os filhos. Os dois mais velhos estavam entretidos a
escarafunchar num buraco com uma palha, a ver se agarravam um grilo que não
parava de cantar de dia e de noite; a mãe estava sentada à porta, a catar o
mais novo. Nisto começou a ouvir uma grande algazarra e passadas de cavalo, lá
ao longe. Aflita, só teve tempo de agarrar nos cachopinhos e arrastar-se com
eles para dentro da cabana.
Espreitou por uma fisga e viu uma carreira de
soldados, em cima de cavalos, a virem na direção da cabana. Ficou sem ação, de
tanto medo. A única coisa que foi capaz de fazer foi agarrar-se aos filhos e ajoelhar-se
no chão, defronte para o buraco da porta, a rezar à Nossa Senhora. Pensou que
tinha chegado a hora dela e a dos seus meninos. Só um milagre da Virgem lhes
poderia valer.
Quando chegaram perto da cabana, um dos soldados
desamontou-se, pegou na espingarda que trazia ao ombro presa com uma correia,
abaixou-se e assomou lá para dentro, de arma apontada. Viu a mulher de joelhos
abraçada aos filhos, os olhos esbugalhados, como se dissesse: «Pelas alminhas
de quem lá tem, não faça mal a estes inocentes…»; viu também os cachopinhos,
quase encarrapatos, todos a tremer; só lhes luziam os olhinhos, de tanta fome e
tanto medo. À mulher pareceu que o soldado se aprontava para entrar na cabana.
Mal pôde suster um grito. Mas, nisto, viu-o a dar um passo atrás, virar-se para
os outros e abanar a cabeça, como que a querer dizer: «Vamos embora que aqui
não há nada.» Pôs a arma ao ombro, amontou-se outra vez no cavalo e sumiram-se
ao fundo da vereda.
Quando o homem chegou, já noite alta, entrou na cabana
e viu a mulher espojada no chão, tolhida com dores; os filhos à roda dela.
Nunca se vira metido em tais andanças e nem sabia o que havia de fazer numa
ocasião daquelas, mas como não tinha de quem se valer e a natureza não espera,
aforrou as mangas e fez o que pôde. Passado um bocado, estava cá fora uma
menina. Tão enfezadinha que mais parecia um coelho esfolado, mas berrava que
nem um bacorinho.
Puseram-lhe Mariana. Toda a vida lhe chamaram a
Mariana da Ribeirinha, por causa do sítio onde tinha nascido. Foi sempre miudita,
mas dizem que era rija e esperta que nem um alho. Tinha já muita idade, quando
Deus a chamou. Foi a minha bisavó!
M. L.
Ferreira
Nota: Esta
história foi-me contada por uma vizinha. Pode não ter muito rigor factual, mas
mostra-nos um pouco da maneira como as pessoas entendem alguns acontecimentos
da nossa História, passados oralmente de geração em geração.