terça-feira, 28 de abril de 2015

LUGARES AONDE SE TORNA – 4



T, de Talassa, ou os Guês pelos Esses

Há nomes que encerram enorme complexidade. Jesus e Eugénio são exemplos que baste.
Jesus, vai para um ano que o conhecemos – um episódio insignificante. Nas palavras do próprio (reproduzem-se de memória, não vá a realidade desmentir-me) o personagem propôs-se à militância em favor dos maltratados pelo capital e outro necessitados, mas os profissionalões da causa olharam-no de lado porque a missão pedia nomes de guerra consequentes. Querendo ser verdadeiros, há que declarar que conhecíamos o dito Jesus por outro nome – um prosaico José, que também é nome com peso bíblico, mas, vamos lá, de segunda linha; entre nós, para nos defendermos da dificuldade em pronunciar algumas sílabas – eg, Jogé, por Jozé – tratávamos o pobre por Zé.
Foi uma vocação que se perdeu, vamos lá. Banalizando, mais um tiro na causa da redenção dos humildes que o nosso poeta se propunha servir.
Cabe aqui outro José, o rimador, que dizem colega de Ernesto Hipólito, um outro poeta nosso conhecido de há muitos anos. Fontinhas, o versejador, fez-se gente na Atalaia e poeta no Porto, onde o dão como profissional dos serviços médico-sociais (outro escriba, em meu lugar, escreveria “modesto funcionário”). Foi o próprio que explicou como se fazem versos: “Toda a ciência está aqui, na maneira como esta mulher dos arredores de Cantão, ou dos campos de Alpedrinha, rega quatro ou cinco leiras de couves: mão certeira com a água, intimidade com a terra, empenho do coração. Assim se faz o poema”, lia-se em 1992 no Rente ao Dizer. Como diz o Martinho, poeta sem obra escrita, que vende livros usados, não pode ser feliz quem não tenha lido versos do Eugénio. Pode ser exagero, mas quem conhece o Martinho – e o Eugénio, vamos lá – compreende o que o homem quer dizer. Poesia à parte, recentremo-nos na razão de trazer aqui o rimador: fosse porque o José lhe fugia para Jogé, fosse para separar o funcionário do poeta, o companheiro de escola Zé Fontinhas é, para toda a gente, o Eugénio de Andrade, poeta.
Mais um José que se fez outro.
E há um terceiro que tal. Vem no jornal e, para que conste, aqui vai em meia dúzia de linhas. Havia notícia de que ZTP iria dar uma lição de História na única terra do país (que eu saiba) que conserva uma fonte/chafariz de duas bicas que evoca a capacidade realizadora da Ditadura Nacional – “Obra da Ditadura, 1932”, está lá gravado na pedra. Organizado por monárquicos – coisa que agora não tem o peso que teria quando se fez a Fonte Nova ou Fonte da Ditadura – o anúncio do evento declinava um único nome na coluna dos oradores, o Teodoro da Tapada. Porque a alguns cai mal que ainda deixem andar os monárquicos por aí à vontade, porventura temerosos de uma bernarda restauracionista, vitimaram o pobre com uma catadupa de recados e mensagens, não poucas com ameaças, basicamente exigindo a retractação do melro, se o homem era dos nossos, isto é um irrepreensível republicano, ou se era um convertido à causa dos cacetismo miguelista ou outra especialidade do tempo dos reis. Inclusive, um que conheço, nascido e jurado detractor de “raposões” e “talassas” (termos amigáveis com que morde, palavras dele, “a canalha monárquica”, seus “declarados inimigos”), esse artista se me declarou esperançado em ascender a algum título ou prebenda, quando fosse tempo, pela mão do bondoso da Tapada. À-vontades que eu não tenho, meus senhores!
Sosseguei quantos pude e como soube – “acompanhar com, não é o mesmo que ser”, pareceu-me argumento bastante, ainda que fraco. Só que a glória estava guardava para quem a havia de ter – no caso, os tipos da má-língua, os detractores do costume, que vieram aí ontem, atirando-me às ventas (o termo é forte, mas adequado, dadas as evidências) a página do jornal da paróquia, desta sexta-feira. Pintaram a manta lá à porta, “talassa” para aqui, “talassa” para acolá, as palavras como balas dirigidas ao mestre dos Enxidros, brandindo o jornal, aberto na notícia com o título assassino: “Monárquicos contam a história do Louriçal”, com foto do mestre palestrando para uma plateia de utentes da Fonte da Ditadura.
Foi gente rija, aquela com que me bati, que a mim tanto se me dá se o homem é talassa ou outra coisa política. Para ser prático, vou-me preparando, que já sei de uns quantos plebeus que a história tornou titulares – saibam quantos… que eu pedir, não peço, pois não está no meu feitio, mas se sua excelência quiser lembrar-se de mim para um título ou imunidade, não sou eu quem o vai decepcionar: tem aqui um soldado às suas ordens.
Seja ou não seja, amigos como dantes. Se é que me faço entender.
Vosso, do c.,

Sebastião Baldaque

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Santa Bárbara



É verdade que a Santa Bárbara este ano não nos protegeu muito bem nos dias da festa, mas já os antigos diziam que “Abril águas mil”. Diz-se também que quando na festa do Sobral faz sol, chove na Santa Bárbara. Cumpriram-se os ditados e a chuva fazia cá falta para as batatas…
Fiquei há dias a saber que a Santa Bárbara é também padroeira dos mineiros. A canção (cante) que fala disso é O hino dos mineiros de Aljustrel. Lindíssima!


M. L. Ferreira

Nota: O Ernesto Hipólito é o autor da foto e enviou-ma com o título "Santa Bárbara Padroeira dos Artilheiros". Cada um pede-lhe para o que o aflige e o Ernesto é um velho combatente...
José Teodoro Prata

domingo, 26 de abril de 2015

Crenças Populares



Nascer de boca aberta

Por causa da tua avó é que a minha mãe teve um menino que nasceu de boca aberta.
Eram irmãs, a tua avó e a minha mãe, e sempre foram muito chegadas uma à outra. A tua avó era a mais velha e foi ela que ajudou a criar os irmãos enquanto os pais andavam por lá, a trabalhar no campo. Criaram-se ambas cá na Partida, mas quando a tua avó se casou foi morar para S. Vicente porque o homem era de lá. Uma vez, por alturas das Festas do Verão, já a minha mãe se tinha casado também e estava no fim do tempo do primeiro filho, chega a casa da mãe dela e diz-lhe assim: Eh minha mãe, hoje é que a nossa Piedade lá há de ter uma sopa de grão boa! Quem me dera cá uma malga dela!
Com medo que a filha ficasse de desejos e o menino nascesse defeituoso, a mãe foi de cá, fez também uma panela de sopa e foi-lha levar a casa. Ela comeu uma malga cheia, mas mesmo assim parece que não ficou satisfeita. Quando o menino nasceu vinha aguado, de boca aberta, e morreu passado pouco tempo. É que a mãe tinha comido a sopa de grão, mas o que ela tinha cobiçado era a sopa da irmã, com que se tinha criado.
Dizem que as crianças ficam aguadas quando cobiçam alguma coisa que veem alguém a comer e não lhes dão um poucochinho. Começam então a andar com fastio e a ficar pasmadas, sempre de boca aberta e olhar mortiço. Podem mesmo morrer se não se lhes acudir a tempo.
Para curar o mal tem que se pedir sopa a cinco ou sete vizinhas (o número tem de ser pernão). Misturam-se todas e dá-se um bocado a comer à criança; o resto dá-se a um gato. Se o gato aparecer morto ou desaparecer, é porque a criança andava mesmo aguada, mas vai ficar curada. Se não, pode ser outra coisa qualquer, por exemplo mau-olhado…

M. L. Ferreira

Nota: Esta história foi-me contada há dias, na Partida, por uma prima, filha de uma irmã da minha avó. Achei-a deliciosa, principalmente por ter acontecido há tantos anos e falar um pouco da minha avó que nem conheci.
Atualmente ainda há quem acredite nestas coisas (há pouco tempo bateram-me à porta a pedir a tal sopa). Mas não admira, porque as pessoas quando estão desesperadas, principalmente com a saúde dos filhos, acreditam e recorrem a tudo; até a bruxarias. 

sábado, 25 de abril de 2015

LIBERDADE


Em 1974, eu tinha 14 anos e foram estas as duas canções que mais me marcaram, curiosamente ambas a cantar a liberdade.

José Teodoro Prata

sexta-feira, 24 de abril de 2015

25 de Abril


Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar,
Nos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio,
Convocando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança,
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincando e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa

Em 1972, José Afonso foi preso pela PIDE e levado para a Caxias.  E ali, numa sela minúscula, ele que sofria de claustrofobia, compôs esta linda canção. A linguagem é simbólica, fruto dos tempos e das histórico-filosóficas em que era formado.

José Teodoro Prata

quarta-feira, 22 de abril de 2015

LUGARES AONDE SE TORNA – 3


O homem que mordeu o cão

Todos conhecemos o homem que mordeu o cão; ou julgamos conhecer. Liga-se a telefonia de manhã e lá está ele – como se dormisse na casa de cada um.
Agora que qualquer filho de Deus pode entrevistar um homem na Lua, como se ele estivesse na Fonte Ferreira, a filharada acredita que o homem da Rádio Comercial é que inventou o conceito com que se veste. Já se verá que não foi.
«É uma forma de dizer, um supônhamos», na expressão do senhor Baldaque, uma vez em que se falava do Pelourinho, em frente da loja do Joaquim Boas Noites. Instado, trocou a coisa por miúdos – «se o cão do Pinura ferrasse as canelas da menina Emília, isso não era notícia, era um fait divers, quando muito, paroquial; mas, se o doutor Alves tivesse mordido o cão do Pinura ou aqui do Tónio Fiambre, isso, sim, era uma notícia a sério, e haviam de ver o nome da nossa nos jornais e televisões de todo o mundo!»
Era um homem enxuto ao modo de outros tempos, opinioso, um metro-e-dez sempre cheio de razão – mais verbo que obra, tinha, contudo, a clarividência dos visionários. Nunca soube o nome dele ao certo. Declarava uma grande queda pela América, para onde ameaçava emigrar a qualquer momento – «um dia, se me chateiam, ala moço, América com ele, que é a terra do futuro». Esse dia nunca chegou. Sempre de fato castanho, com riscas cremes na vertical, colete no Verão, em lugar do casaco, esse homem, Sebastião ou Viriato, não sei, foi para mim, sempre, o senhor Baldaque.
Entre nós, no grupo, tudo, gente simples, quando se fala no homem que mordeu o cão, é no senhor Baldaque que pensamos. Não é nesse da rádio, nem mesmo no eminente bispo que o doutor Mário de Carvalho, advogado não praticante, pôs em livro há um par de anos. Eu explico.
Mário de Carvalho, com mais que idade para ter uma ranchada de netos, é um conhecido brincalhão, avezado a amassar histórias e a conceber personagens e situações menos canónicas. Uma dessas histórias, vinda dos anos de 1990, mantendo as qualidades que distinguem o cavalheiro – a graça, sobretudo, nas situações que cria e na maneira de contar - reproduz, digamos, em boa prosa, a tese baldaquiana. No caso, a jornalista Eduarda, e uma multidão de jornalistas, investigam, em Grudemil, que é como quem diz Braga, o episódio do bispo local que mordeu um cão. Os pormenores estão lá, na novela Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto, que se lê com uma cara de sorriso permanente, às vezes exaltada em gostosa gargalhada, um texto indicado, digamos, para todos os dias – no dizer do próprio, uma verdadeira «crónica jocosa da vida portuguesa dos nossos dias».

O senhor Baldaque comentava o Pelourinho muitas vezes. «A nossa terra, cachopos, merecia mais». As histórias que ele contava, o entusiasmo com que o fazia – aquilo era homem, se era assim, a falar, o que seria a escrever! Tivéssemos nós percebido, por estas bandas, a importância da comunicação social, e teríamos dado ao mundo o jornalista que nos faltou.
Não raro, entravam com ele, a provocá-lo, sempre a propósito da história do cão, como a tirar dúvidas sobre a complexidade do conceito: «então, e se o doutor Alves, em vez de morder o cão, tivesse mordido a menina Emília, ou até uma cachopa mais nova, também era notícia?», perguntavam. «Tu queres mangar, companheiro!», tornava-lhes ele, invariavelmente, sem dizer mais.
Até um dia. Confrontado por uns tantos, ali à beira da praça, sobre a mesma questão, foi ouvi-lo – um autêntico visionário: «Então eu explico: podia ser o doutor Alves, mas até era melhor se fosse o bispo, irmão do padre Tomás. No dia a seguir, eu até já estou a ver, era São Vicente por todo o lado, nas televisões e nos jornais, até da América. Ah, raios, com a notícia do bispo que mordeu o cão, era garantido que voltava para cá o concelho, e havia de ser gente e mais gente para aí, da comunicação, turistas e isso». Já em jeito de retirar-se, diz só para eu ouvir, piscando-me o olho: «Isto é como deitar pérolas a porcos – um homem mata-se para levar o nome da nossa terra a todo o lado; mas, dando com gente desta, parente, lá se vai o concelho outra vez».

José Miguel Teodoro