quarta-feira, 2 de setembro de 2015

A volta ao mundo II

Através da imaginação, o viajante segue viagem.
Desço a rua eis-me em frente a um grande rio, ou será mar!
Juncado de pequenos e grandes barcos a navegar
Uma grandiosa praça, ao meio uma estátua real
Montado num garboso cavalo, um grande rei de Portugal
Foi naquela praça imensa, que vindo de Vila Viçosa
Um rei e seu primogénito morreram ficando a rainha chorosa
Sigo viagem no meu mundo de fantasia
Estou em frente à Sé do Porto que alegria
Ao lado um monumental pelourinho
Ao fundo o rio, Porto cidade do vinho
Da Torre dos Clérigos, qual sentinela, vigia
Rabelos, tripas, sem vós; a cidade como seria!
Já me encontro em Compostela
Cidade antiga, mas tão bela
Tiago te deu a fama e o proveito
Tanto peregrino te presta preito
Do botafumeiro sai um perfume de macela
Nunca vi uma catedral como aquela
O caminho faz-se caminhando
Parto com saudade, vou andando
Madrid, cidade monumental
Prado, Almudena e Palácio Real
As costas te vou virando
Cada vez mais estou gostando
Eia; onde me encontro neste momento
Estou extasiado, sentado num lindo assento
Junto a mim uma torre grandiosa
Muito bela e maravilhosa
Cidade das luzes, tanta azáfama e movimento
Paris, tão bela; tanta emoção não aguento
Como a vida é uma descoberta
Quero estar sempre alerta
E novos mundos conhecer
Roma, gosto de te ver
Coliseu, tanta coisa bonita pela certa
São Pedro, Cistina. Estou pasmado, de boca aberta
Atenas, berço da nossa civilização
Na Acrópole o Parthenon vejo com admiração
Edificado para a deusa Atena cultuarem
Onde o oráculo incitava as pessoas a rezarem
Neste lugar estão nossas raízes como saberão
Filósofos, democratas...tamanha é minha emoção
Já me encontro na Praça Vermelha, em Moscovo
Cercada de palácios e catedrais, é um mundo novo
Soldados empertigados marcham garbosamente
Lenine cultuado e amado por muita gente
Não sei qual o rumo a tomar, amanhã resolvo
Gente que passa apressada, é o povo

                                                   (continua)
Zé da Villa

domingo, 30 de agosto de 2015

LUGARES AONDE SE TORNA - 6



Nem bom vento, nem bom casamento
“[Um dos elementos fundamentais na estratégia de desenvolvimento passa pelo] aprofundamento e melhoria das relações transfronteiriças…cimentando a convivência com Espanha.» (in Estratégia de desenvolvimento do concelho de Castelo Branco, 2015).

Sebastião Baldaque, como nós todos, arreava nos espanhóis forte e feio. Depois, ficou diferente, por causa duma santa, dizia ele. É um caso de perversidade, mais uma malfeitoria que eles nos fizeram.
Sobre não gostarmos deles, todos sabemos as razões. Dois ou três exemplos, só para sinalizar a atitude: primeiro, aquela vergonha do conde Fernão Peres, metido na cama da dona Tareja, a viúva do nosso conde Henrique, e o D. Afonso VI a dar guerra ao nosso rei fundador, negando-lhe a nossa independência; uns séculos passados, foi Atoleiros, foi Aljubarrota, foi a descendência espanhola do imperador Carlos V, que nos deu uma dinastia de Filipes, a nossa terceira, foi Olivença, perdida na episódica Guerra das Laranjas, e, já no nosso tempo, salvo seja, no limiar da Segunda Guerra, a invasão de Portugal pelos falangistas do Franco, que esteve a pontos de acontecer. Não basta? Então, o que nos veio de bom daquele lado, hein? Os cemitérios cheios de mortos pela gripe espanhola?  
O Cantinflas e o Joselito não nos mudaram, mesmo se parece o contrário. Pois, davam na televisão os filmes do Cantinflas (afinal, mexicano, que é uma espécie de espanhol, para pior), mas nós não lhes achávamos graça nenhuma; do Joselito, era mais as canções, os miúdos às vezes punham-se a cantá-las, mas a gente “assoava-os”, e a coisa ficava resolvida.
Houve ainda a invasão dos calendários. Era raro, mas houve quem o fizesse – uma fugida a Piedras Albas, com variante a Zarza La Mayor, a comprar loiça de pirex. Na altura ainda se deitavam gatos em pratos e caçoilas partidos. Funcionava de uma forma simples: metiam-se os três ou quatro num carro, à saída da missa, em São Vicente, e ala para a fronteira; em geral a coisa corria bem, a Guardia Civil, na presunção de se tratar de cristãos, fechava os olhos; do lado de cá, o santo e a senha era o nome do agente Fr…., da brigada móvel da Pide, conhecido, ou da família, por sinal cá da terra. À volta, traziam pirexes: pratos, copos, jarros para água e para o vinho, transparentes, em verde ou castanho – e calendários de pendurar na parede, cada um trazendo quantos quisesse. Todas as casas tinham um, às vezes mais.
Mas sofriam, os pobres que se metiam em tais aventuras. Fome, quero dizer. Em tais terras, logo que se passa a fronteira, não se consegue comer nada de jeito – falo pelo que ouvi dizer. Comida de garfo, não sabe uma pessoa como há-de perguntá-la, pede-se uma sandes de presunto e eles não sabem o que é; acaba por se comer, sempre, umas sandes de queijo, que é a única palavra, de conduto, que eles entendem, que, a tudo o que se diz, quando topam que somos portugueses, é só “não entiendo! não entiendo!”, a gente tentando explicar, e aqueles filhos da mãe sem quererem perceber.» Um pobre lusitano que ponha o pé em terra do lado de lá, arrisca-se a morrer de fome.
Bem o desafiaram, mas Sebastião nunca quis ir. Não obstante, em casa dele, a data do dia conferia-se pelo calendário da Casa Pantrigo, de Zarza La Mayor, por sinal pendurado na cozinha.
Sebastião Baldaque apareceu-nos um dia bastante variado, assim como se tivesse abandonado a religião dos pais, convertendo-se a uma outra. Na altura, ainda a missa era em latim. Primeiro veio com aquela do Viriato – dizia ele que, sendo um herói português, era também (calculem!) um herói espanhol; um tempo depois, que tinha lido uns versos de Lorca, que até não era mau poeta, e Os prazeres e as sombras, do Ballester, que era um dos grandes romances do século XX. O homem estava mal, concluímos, e a doença não era passageira.
Nós não entendíamos a grande volta que dera o tio Sebastião. Percebendo a nossa desorientação, Baldaque deixava escapar que tudo era obra da santa de Málaga – que, assim de repente, não sabíamos que santa fosse. Eu, por mim, achei que era uma figura de estilo, mas havia outras interpretações (o Patanucho, que já tinha estado em Lisboa, diria, um tempo depois: «Santa? De Málaga? É a Marisol, aqueles olhos viram a cabeça a qualquer um!»). Enfim, opiniões, cada um ficou no que lhe pareceu.
Fosse como fosse, o que o virou era espanhol ou tinha vindo de Espanha. E, em boa verdade, se poderíamos – até – fazer tábua rasa da história e esquecer a tradição, passar um pano sobre as ofensas que deles recebemos, e darmo-nos com eles, mais que não fosse, por caridade cristã, isso deixara de ser possível. Entenda-se: Sebastião Baldaque era para nós uma referência, a sua opinião era a nossa opinião; provavelmente era o único sanvicentino que não nos importaríamos de ver em estátua, na praça de São Vicente – com o pelourinho ao lado, ou mesmo sem ele. Terem virado um homem assim, como fizeram, é inultrapassável, atingindo-nos no que temos de fundamental. Isso não se perdoa.
Agora que andam por aí outras modas, fique o registo. Já somos menos do que noutro tempo, os que não gostamos dos espanhóis, mas resistimos. Somos gente simples e honrada. Também por isso, como no passado, quando as trovoadas vêm mais fortes, batidas a vento do lado da serra, queimamos folhas de loureiro e rezamos a Santa Bárbara, enquanto ensinamos aos filhos que “de Espanha, nem bom vento, nem bom casamento”.

José Miguel Teodoro

sábado, 29 de agosto de 2015

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Volta ao mundo



Volta ao mundo sem sair de casa
Hoje veio-me à memória uma coisa engraçada
Para o que me havia de dar nesta caminhada
Vou explanar o tema, a ideia é o pensamento
Tão simples quanto isto, não é barulhento
Mas num instante me coloco noutra estrada
Julgo que esta ideia não é nada errada

Da minha janela vejo um céu plúmbeo, frio
Astro triste, ao longe troa o trovão oco e vazio
Assim divagando, sonhando e com inspiração
Irei fazer a viagem sem carro, barco ou avião
Percorrerei o mundo de fio a pavio
Contemplarei  o monte, o vale, a planície, o prado e o rio

Escolho o que mais agrada ao meu coração
Dou asas às minhas fantasias como verão
Não há perigo de acidentes, filas ou colisões
Gastos com combustíveis, ou outras preocupações
Limpa que é esta viagem, não tem poluição
E não é necessário andar com o volante na mão
Começo a minha viagem no lugar onde nasci
Naquela Praça tão bela onde brinquei e corri
Com sua "Domus Municipalis," Pelourinho e Igreja
A Misericórdia como vizinha para que toda a gente a veja.
Eis-me no Parque da cidade, outro assim ainda não vi
Podem crer, venham também saborear e ver isto aqui
Senhora da Conceição, Senhora bela e formosa
Padroeira nossa, tem seu solar na linda Vila Viçosa
Vila do Terreiro do Paço e do Palácio Ducal
Monumentos como estes ainda não vi em Portugal
Terra de Florbela Espanca, poetisa famosa
São Bartolomeu, Agostinhos e gente bondosa
Brrom...estou no Rossio, no alto o castelo roqueiro
Foi da mourama, conquistado por Afonso o primeiro
Num morro mais perto, outras ruínas, o que serão!
Pertenceram a um convento, lá viveu um bom beirão
Foi Condestável de Portugal, grande santo e guerreiro
Libertador, distribuíste e deste todo o teu dinheiro.

"Continua"
Zé da Villa

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Poluição


No ano passado, o Externato Capitão Santiago de Carvalho, de Alpedrinha, fez uma campanha publicitária pela região, através de painéis verticais.
A nós coube-nos um num dos locais mais bonitos de São Vicente: a varanda sobre a barragem do Pisco (ao fundo da Barreira do Hospital).
Entretanto, o material ficou ali durante todo o ano, foi-se rasgando, o vento levou-o aos pedaços e hoje só resta a estrutura metálica.
Este ano já não houve campanha publicitária e mas lá continua o esqueleto, à espera não sei de quê.
A minha foto é do inverno, quando ainda havia pedaços de plástico a esvoaçar ao vento, num cenário triste como o dia que estava.
Sei que nas cidades esse é um cenário habitual. Parece até que os citadinos se resignaram com a fealdade das suas cidades. Veja-se em Castelo Branco: uma linda rotunda com repuxos, cercada por painéis publicitários. É arte urbana, dirão. Pois, mas na nossa terra não havia necessidade, como dizia o outro.

José Teodoro Prata

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O Zé do Casalito

Fez há poucos dias um ano que festejámos as bodas de ouro sacerdotais do Pe. Hipólito Jerónimo. Na altura, foi posta à venda a sua autobiografia, da qual deixo aqui um trecho.

Capítulo III
Ida para a escola
(...)
Entrada na escola; a professora Dona Susana
A escola primária foi um tempo feliz para mim. Adorava ir à escola! Gostei desde o primeiro dia. Durante quatro anos, fui aluno da professora Dona Susana Barroso, senhora jovem, com raízes familiares na terra.
A Dona Susana era excelente professora e catequista, delicada de corpo e de trato. Raramente levantava a voz ou recorria à cana e muito menos ainda à palmatória para manter a ordem. Só me lembro de ter levado uma leve palmatoada, durante os quatro anos de escola primária!
Um ou dois anos depois, chegou outra professora, a Dona Teresa, irmã da Dona Susana, bem mais alta que ela. Ficou com as raparigas. Quando acontecia, embora raramente, que uma delas faltava, a outra juntava os alunos de ambas. Havia ainda outros dois professores bastante mais antigos, um casal, a quem chamávamos os professores velhos.
A escola primária tinha, pois, ao todo, quatro professores e oito turmas, quatro de rapazes e quatro de raparigas.

O edifício das escolas
As escolas funcionavam no edifício da antiga câmara municipal de São Vicente da Beira. Situado no centro da vila, era e ainda hoje é uma grande construção nobre, de granito. O espaço de recreio era a praça da vila, logo em frente. Tudo o que era mais importante ficava, aliás, muito perto: a igreja paroquial, a igreja da Misericórdia, o pelourinho, a farmácia, os fontanários e os sanitários.

O coreto
No centro da praça, erguia-se o coreto da música, onde atuava a filarmónica local, em dias de festa. O rés do chão servia para arrumações, mas também como prisão ou cadeia, por algumas horas. Quando havia uma zaragata maior ou alguma bebedeira mais carregada, principalmente por ocasião das festas, a autoridade local, o regedor, que, nesse tempo, era o senhor João Ribeiro, homem respeitado pela estatura e modo de ser, metia ali o prevaricador.
No dia seguinte, se havia escola, nós, os miúdos, íamos logo meter-nos com o preso. Chamávamos-lhe bêbado e outros mimos. Quando isso chegava aos ouvidos da professora dona Susana, era certo e sabido haver ralhos, algum leve puxão de orelhas e, de longe em longe, uma reguada.

Visita do Pe. Caio à escola de São Vicente da Beira
O ano escolar de 1948/49 aproximava-se do fim e começava já a viver-se com alguma expectativa o final da escola primária que culminava no respetivo exame da quarta classe em Castelo Branco.
Eis se não quando, aconteceu algo de absolutamente inesperado. Num dia de maio ou junho, da parte da tarde, irrompeu na sala o pároco Pe. Ramalho, senhor vigário, no tratamento local, acompanhado de uma figura roliça de sacerdote, o Pe. Caio, com sotaque brasileiro. Este, de repente e sem mais delongas, lançou-nos o desafio:
- Quem quer vir para o novo seminário missionário que vai abrir no Tortosendo?
Cinco levantámos logo o dedo: o meu primo Francisco Nicolau Jerónimo, o José Maria Roque Lino, o Francisco Alves, o Manuel Dias Clemente e eu. O Pe. Caio perguntou-nos imediatamente onde é que moravam os nossos pais, pois queria falar com eles.
Foi tudo tão imprevisto e rápido que nós quase nem respirávamos.

Conversa do Pe. Caio com a minha mãe
O Pe. Caio obrigou-me a levá-lo logo até à casa dos meus pais, pois era a que ficava mais longe. A minha mãe andava na barreira a regar couves plantadas de fresco, com a água que alguém tirava à burra da levada. Sem perder tempo e enquanto a minha mãe limpava o suor do rosto com o avental e procurava refazer-se da surpresa e compreender o motivo e o alcance da visita, o Pe. Caio atirou-lhe:
- Vai abrir um novo seminário no Tortosendo, um seminário missionário e eu ando a recrutar rapazes que sejam bons mininos e bons estudantes e possam vir a ser bons seminaristas. O senhor Vigário e a senhora professora disseram que aqui o seu minino, o José – e apertava-me o pescoço com força – é bom aluno, inteligente e bem comportado. É muito bom que ele venha para o seminário! A senhora não acha?
A minha mãe respondeu a tartamudear:
- Isso era bom, era … mas não pode ser! Fica muito caro e nós não podemos pagar a pensão, porque somos pobres e o Zezito tem muitos irmãos, alguns ainda mais pequenos do que ele. Gostava muito que ele fosse, porque gosta de estudar, aprende bem e diz que quer ser padre, mas nós não podemos pagar a mensalidade… Além disso, também é preciso preparar-lhe o enxoval. Tudo isso custa muito dinheiro e nós não temos posses.
Enquanto falava, uma lágrima desprendeu-se-lhe dos olhos…
- Qual muito caro! - replicou vivamente o Pe. Caio - A senhora decerto tem alguém conhecido e amigo ou algum parente um pouco mais abastado que talvez possam e até desejem contribuir com alguma coisa, para a roupa e mesmo ajudar a pagar a pensão do minino… É preciso confiar na Divina Providência! Nossa Senhora também vai ajudar…
- Não, não! Tenho muita pena, mas não pode ser. - soltou, aflita, a minha mãe.
O Pe. Caio, porém, continuou a batalhar por mais algum tempo. Disse-lhe que falasse com o marido e rematou:
- Fulano e cicrano, colegas de escola do seu José, também vão. Os pais deles já disseram que sim e agora vou falar com os que ainda faltam. A senhora e o seu marido certamente não querem ser os únicos pais que não deixam ir o filho para o seminário… Isso seria muito mau! Eu fico até amanhã em casa do senhor vigário e, antes de me ir embora, quero uma resposta, que deve ser sim.
Em casa dos meus pais, começou logo a viver-se a ideia de eu ir para o seminário, com alguma intensidade, ora dizendo-se que sim, que se havia de arranjar alguma maneira de preparar o enxoval e pagar a mensalidade, ora repetindo-se que a família não podia suportar as despesas e … ponto final.

Exame da 4.ª classe em Castelo Branco
Entretanto, aproximava-se o final do ano escolar e o exame da 4.ª classe em Castelo Branco. Para isso, fomos todos os alunos da 4.ª classe para Castelo Branco e ficámos uns três ou quatro rapazes hospedados na mesma casa, pertencente a parentes distantes de dois de nós. A mãe do Zé Maria Lino e a do Chico Alves revezaram-se a ficar connosco e a cuidar de nós.
Eu, sempre mais ou menos distraído, arranjei logo maneira de bater com a canela da perna direita no rebordo de uma banheira velha que servia de floreira, no pequeno jardim interior da casa. Num primeiro momento, a ferida não me causou grande incómodo, mas continuava a sangrar e por isso lá tive de ir fazer curativo ao hospital. Ainda hoje tenho a marca do golpe na canela…
O exame da quarta-classe decorreu sem sobressaltos (...).

José Teodoro Prata