sábado, 7 de setembro de 2019

A fé é que nos salva


Sempre fui muito apegado à Senhora da Orada. Já cá venho desde que era pequeno, ainda com os meus pais e os meus irmãos. Naquela altura não havia carros e os caminhos eram mal andamosos, mas ninguém lhes tinha medo. A rapaziada nova vinha sempre ansiosa por chegar e correr para as tendas, todas cheias de novidades, brinquedos e gulodices, esperançados em voltar para casa com um chapéu novo na cabeça ou uma santinha de açúcar pendurada ao pescoço. Os mais velhos, era na fé que arranjavam a força que os trazia cá, todos os anos, a pagar promessas antigas, ou a pedir alguma graça para o ano seguinte.
Quando me casei, fui para fora e andei por lá uns tempos largos, sem poder cá vir tantas vezes. Mas quando regressei, já com os filhos criados, continuei a vir com a mulher, todos os anos, a pedir por nós e pelos que andavam por lá a fazer pela vida; e a Nossa Senhora nunca nos faltou, nem com saúde nem com o pão de cada dia.
Mas há uns anos estive muito doente, com um nascido nos intestinos. Fui operado, mas as coisas não correram nada bem à primeira, e ao fim de pouco tempo tive que ser outra vez cortado. Estive para cima de um mês no hospital, cheio de tubos por todo o lado, sem autorização para comer nem beber fosse o que fosse. Cheguei a estar tão mal que os médicos, quando entravam no quarto, olhavam para mim e abanavam a cabeça, como se quisessem dizer que ali já não havia nada a fazer. E até eu já só pedia a Deus que me levasse, quanto mais depressa melhor, antes que desse em doido.
Um dia, o enfermeiro que tinha entrado de turno ouviu-me a gemer e foi logo a ver o que é que se passava. Eu mal me podia mexer, todo amarrado e sem poder falar, mas ainda tive força para lhe pedir que me desse ao menos um bocadinho de água, que já não aguentava mais com tanta sede que tinha. Respondeu-me que não, que não tinha ordem para me dar nada; só o médico é que podia dar autorização.
Naquele momento, era meia-noite em ponto, vi aparecer uma nuvem encarnada no canto do quarto, aos pés da cama. No meio da nuvem estava uma Nossa Senhora, tal e qual a que está ali dentro da capela, com as mãozinhas posta e tudo, e disse estas palavras:
 - Ande lá, dê um copo de água ao homem, que não lhe há de fazer mal nenhum; mas dê-lhe daquela que ali está.
E apontou para o armário onde estava uma garrafa cheia de água que a minha mulher me tinha levado. Tinha-a aqui vindo a buscar, de propósito. O enfermeiro tirou a garrafa do armário, deitou um bocado num copo e deu-ma a beber, aos poucos. Bebi-a aos golinhos, mas com muita fé e a pedir à Senhora da Orada que me curasse. Durante uns dias, sempre à mesma hora, o enfermeiro dava-me um copo daquela água, e quando foi ao fim de pouco tempo já nem parecia o mesmo; nem os médicos foram capaz de arranjar explicação para umas melhoras assim, tão repentinas, e toda a gente disse que só podia ter sido um milagre.
A partir daí, na minha casa não se bebe doutra água. Venho cá pelo menos uma vez por mês a buscá-la. Até comprei este carrinho, de propósito. Já lá vão uns poucos de anos e nunca mais senti nada, e acredito que foi graças à água desta fonte e à fé que tenho na Senhora da Orada que me salvei. É bem certo o que ali diz naqueles versos:

Nossa Senhora da Orada
Vossa água tem virtude
Com ela muitos doentes
Recuperam a saúde

M. L. Ferreira

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

A fonte antiga da Orada



O dístico na mó da 1.ª imagem informa que as cantarias em volta da bica são as originais. Mas se tinha bica, porque lhe chamam fonte de mergulho?
A placa da mó ao lado da entrada da capela identifica os membros de uma comissão de melhoramentos, que de facto fez um trabalho notável. Mas porquê aquela comissão e não outra? Devia era explicar-se que mós são estas e de onde vieram!
Todo o resto, ótimo, como sempre.
Obrigado a quem dedicou o seu tempo a este melhoramento.

José Teodoro Prata

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Ainda há milheirais


Este milheiral situa-se na margem da Ribeira da Senhora da Orada, um pouco abaixo do lagar da Natividade Lino. É talvez o único grande milheiral da nossa terra., infelizmente.

José Teodoro Prata

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Os cavaquinhos do Tó Sabino


Jornal Reconquista, 22.08.2019

José Teodoro Prata

terça-feira, 27 de agosto de 2019

O neto


Alguns membros da família diziam que Bernardo Garrancho — Garrancho era como se auto denominava na roda de amigos, por ter um dedo torto causado por acidente de trabalho — e a mulher, a ti’ Maria Santo, tinham tido dez filhos; outros falavam em doze ou mesmo treze!
Talvez uns três ou quatro, não tenham sobrevivido à idade jovem; ou hajam morrido em criança ou, mesmo, à nascença, dadas as penosas conjunturas da gravidez ou do parto. É já um lugar-comum dizer-se que, naquele tempo, infelizmente, era assim!
Por razões culturais e religiosas as mulheres antigas da vila encobriam a gravidez. Muitas punham um xaile por cima da barriga, para disfarçar. Pouco se falava do assunto; quase tudo era dissimulado porque era visto como pecaminoso, se comparado com o celibato que se considerava o estado mais próximo do ideal da pureza.
Depois de a criança nascer sã e escorreita e, após ser batizada, é que desaparecia, de todo, a questão da sexualidade, patente na protuberância do ventre. O que, certamente, contribuiu para que houvesse esta incerteza sobre a narrativa dos filhos que nasciam nas famílias.  
Em todo o caso, o número exato de rebentos do casal diga-se, em abono da verdade, também não é aqui importante. O que se sabe — e é isso que aqui interessa — é que eram muitos! Ele e ela eram duas boas cepas, como demonstrava a evidência!
A venerável avó Santa — assim tratada pelos netos! — no auge da vida e abençoada da natureza, pegava no seu âmago como as silvas nos cômoros, mesmo nas mais difíceis condições; a lembrar os tempos bíblicos dos patriarcas e sua vasta prole! Tudo se criava!
Confiamos todos que ela esteja em bom lugar, porque há muito que não está connosco. E que um anjo amigo lhe possa ler, desde o paraíso, o que aqui escrevo, porque o escrevo de boa mente, já que, na terra ela era — e, decerto, ainda é — analfabeta; pois, no céu, não consta que haja escola…! Mas os anjos, esses, cremos nós, sempre souberam ler, porque são imortais e participam da omnisciência de Deus!   
Na época e, pese embora todos os problemas da vida, a maior dor de cabeça — pelo menos para quem tinha uma leira — não era a falta do pedaço de pão; a não ser nos anos das guerras, em que havia que recorrer ao caldudo de castanhas como base da alimentação da casa; períodos em que não se topava sequer com semente de cultivo, mormente, de batata Arran Banner que não podia vir dos Países Baixos; e em que as famílias enganavam a fome, semanas a fio, com sopas de ervas daninhas — beldroegas ou saramagos apanhados nos caminhos — que balançavam nas paredes internas dos estômagos depauperados daqueles crentes de Deus!
Tirante tais períodos, no entanto, havia de tudo o que a terra dava! A complicação maior, para um cidadão daqueles tempos sem cidadania, eram as moléstias contagiosas do corpo, que quase não tinham atalhação. Daí resultou que apenas oito dos filhos chegassem à idade adulta.
A certa altura da vida, como era seu destino, todos estavam casados. Nenhum quis ir para padre, freira ou militar, embora lábia para tais andamentos não lhes faltasse. Contudo, preferiram comportar-se como pessoas comuns. Uns sujavam os pés na terra como os progenitores; outros foram parar às minas de volfrâmio; elas casaram com homens da terra de idêntica classe e condição que não importa agora especificar.
Mas sucedeu que mais um infortúnio de uma doença bateu à porta deles e lhes arrebatou, num ápice, ainda outro filho e, logo de seguida, a nora, pais de um menino que, a bem dizer, acabara de vir ao mundo.  
Na casa da serra, onde em tempos a grande família permanecia nos estios, restavam agora só os dois — cabeças de geração mais antigos ainda vivos — e o neto; o qual, tinham prometido criar, à beira do leito de morte dos ente-queridos. Cuidar dos netos eram histórias sofridas, perdidas e não contadas nos livros, daquela gente simples!

Num dia, como tanto outros, alvorecia ainda timidamente para os lados de nascente; a manhã vinha limpa e branca; e a claridade ia-se elevando com o andar da terra na sua rotação. Ambos estavam já a pé, como era hábito! Costumavam dar uma sapatada nas mantas, logo que luzia a caleira de vidro no teto mourisco sem forro, à telha vã! O vislumbre dessa pequena lucerna era o relógio onde tinham aprendido a ver as horas.
A criança dormia!
Garrancho subiu para o degrau de cantaria de granito, bem talhado, da entrada principal e abriu a porta que dava para o terreiro em frente da casa; encheu os pulmões de ar fresco e revigorou. O corpo, as articulações, já se iam ressentindo dos anos, mas a mente estava preparada e renovada para a fadiga de mais um dia!
Pegado ao largo térreo, tinha a ti’ Maria o canteiro do cebolo, das couves, tomates, alfaces e alhos, que tratava com desvelo. As pequenas plantas sairiam dali para o plantio definitivo em leirões de regadio, para crescerem e amadurecerem. No verão, era chegar lá e colher um tomate, uma alface e uma cebola, lavá-los bem lavados na água da Mina Nova e migá-los para uma travessa; um pouco de azeite, vinagre e sal e a salada estava pronta!
Um regalo!  
Os dias lá em cima passavam quentes e devagar. O sol assentava na planura de Castela; e, não conhecendo fronteiras, flagelava igualmente o chão da raia portuguesa a que, desde a serra da Gardunha — a varrer para sul — chamavam, justamente, Beira Alentejana. Do limite da sua propriedade, em que agora só havia mato para as cabras — mas onde, com o rancho de filhos pequenos, já semeara pão de centeio — podia Garrancho ver essa planície dilatada, enchendo sempre os olhos de imensa luz!
A serra, por si, fazia jus ao nome. A Gardunha ou Guardunha, pusera a recato, em tempos de antanho, o guerreiro lusitano, antes de este se expor ao romano invasor, em campo aberto; o mesmo terá acontecido nas guerras com a mourama. Conquanto sem as investidas bélicas de outrora, a serra continua lá de guarda, alcantilada; as pessoas é que há muito a deixaram, num irreversível fenecimento de terras e de gentes do interior, subjugado à voracidade da vida moderna!

O intrépido serrano continuava a ajuizar o tempo daquela manhã, com a sua experiência de quase sessenta! Se tudo corresse como era normal, o sol ao meio-dia estaria a pino a massacrar tudo!
— Vem aí outra vez o diabo…! — dizia, postado à porta de casa.  
Ali ao lado, os vivos já tinham principiado a matinal gritaria. Cada um em seu sítio: o porco na furda, a burra e as cabras nas suas lojas e, no galinheiro, as galinhas em alvoroço a cacarejar!
— Já vos atendo, já vos atendo…! — ruminava Garrancho.
Adivinhava-se um calor abrasador, a desfazer, cada dia, a terra, em pó. A pô-la como a cinza do borralho!
— Este sol vai-me dar cabo de tudo! — disse, para si, mas sabendo que a mulher andava nos afazeres da casa e estava a ouvi-lo. — Mal empregado pão que semeei além no alqueve! Parte dele, levaram-no as pegas e as rolas, aquelas velhacas! E agora esta torreira a calcinar…!
Não chovera muito naquele ano. O pão crescera muito ralo! Do que restara, pouco se aproveitava; a própria palha centeia não dava, sequer, para nagalhos.
— Tomara-me a reunir a companha para ceifar e malhar, senão fico sem nada! E a semente que cair, talvez nasça para o ano! — dizia irónico.
Ele sabia que grão que ficasse na terra, não se perderia e criaria pasto para o gado. A secura do solo preservava-o. Os milhões de pequenos frutos, mansos ou bravios, potenciais de vida, tinham apenas, no momento certo, que se aproximar de uma gota de água e cumprir o seu destino: germinar! Chegado o tempo, ainda que sem sementeira por mão humana, desabrochavam e cobriam os campos de erva e flores, executando fielmente os planos da natureza no próximo ciclo. Lá cantava o poeta:
Vem o mês de agosto,
Vou dormir no prado,
Tudo lá foi posto,
Sem ferro de arado! (a)


Mas aquela manhã adiantava-se. Ao longe, já se via a grande massa de ar esbranquiçado da atmosfera — indiciando calor — a ondular em camadas vítreas por efeito da refração da luz intensa. Tinham vindo em abril as últimas águas da época, por assim dizer, regulares. E as derradeiras trovoadas desabaram, tremendas, nos fins de maio; já lá iam dois meses de sol duro e sem chover!
No pino da calma, não se dava por um roçar de asa. Apenas o cantar irritadiço da cigarra, atravessava o ar a estalar da canícula. E só trazia algum conforto a pessoas e animais, a sombra revigorante de uma árvore; ou o recolhimento, às horas de torpor, na frescura, dentro das paredes grossas de granito da casa ou das lojas do gado. 
Antes que aumentasse mais a temperatura, estava na hora de deitar as cabras. O Zé Inverno, rapaz próximo de casadoiro, antes de ir para a tropa era, em certos dias, o pastor do rebanho; sempre arranjava dinheiro branco para ombrear com os homens, ao domingo, no balcão na taberna da Viúva! Mas o rapaz tinha compromisso com uns dias noutro patrão. Naquela manhã não lhe calhava fazer de zagal. Tinha que ser o dono a tomar conta das cabras.  
 — Precisam de ir um bocado para o mato a afiar os dentes! — congeminava Garrancho.  
Se assim o ajuizou melhor o executou. Mas, antes, precisava dejejuar. Pegou num canjirão que se encontrava deborcado na cantareira da casa, foi direito à corte e ordenhou três cabras que tinham sido as últimas a parir; ainda davam bom leite para o almoço dos donos, para o biberão do neto e para renovar a queijaria; o resto das cabras estavam secas! Despejou o leite da ordenha numa pichorra e colocou-a ao lume, até ferver; deitou uma parte numa malga, migou-lhe um pedaço de broa, juntou-lhe um pouco de mel das suas colmeias e comeu. A ti’ Maria trataria do resto da refeição da manhã, tanto para si própria como para o neto; iria também deitar de comer às galinhas e coelhos e dar a vianda da manhã aos porcos; tudo ali ao pé da porta de casa.   
Ele é que já estava com a ligeireza toda! Tinha que ir para mais longe e, ala moço, que se faz tarde! Deu os caneirões à burra, deitou a cabrada e lá foi atrás da sinfonia das campainhas e chocalhos, de cajado na mão; um varapau de marmeleiro de dois metros de comprimento com que mantinha em respeito todo o rebanho — que ainda era coisa que se visse — auxiliado pelo Tejo, o cão, caso os caprinos intentassem mordiscar os haveres alheios nas estremas com os vizinhos. Então, levantava o bordão:
— Ai o raio parta isto, mais as cabras! Quiá, quiá! Vá lá ver!
E atiçava também o Tejo.
— Tejo, volta, volta!
O cão percebia que estava a ser útil ao dono e lançava-se num rodeio, cheio de excitação, em corrida desordenada, trapalhona, a voltar o rebanho; mas, por vezes, metia-se nas giestas, desarvorado, tonto de todo, orelha viva, a latir, a latir! Tinha farejado o rasto de um coelho!
— Deixa os coelhos, Tejo! O que é que te mandei fazer?! — gritava Garrancho para o bicho, como se de pessoa se tratasse.
— Ai, o raio do cão! Filha da puta parece que é doido! Valha-me Deus, valha, valha…! Vamos lá! Volta, volta! 
Finalmente, as cabras, aparvalhadas e temerosas do ladrar do cão, lá regressavam a tosar os rebentos do mato dentro dos limites do senhorio do dono. Só mais tarde, quando chegasse o calor, voltariam à loja, como era hábito, para a função de remoer durante a sesta, enquanto os donos comiam ao meio-dia e adormentavam um pouco.        

No entrementes, era a meio da manhã e, na casa, o menino acordara. Para adiantar o jantar, a ti’ Maria tinha já começado a descascar algumas batatas, uma cebola e a cortar couves para meter numa bacia de água e lavar. Tudo cozido com um pedaço de toucinho da salgadeira com boa fêvera, era o jantar do dia. Sopa da matação, uma fatia de broa, um tinto para o ti’ Bernardo, água da Mina Nova e fruta variada, compunham o restante menu do repasto.  
Mas ao primeiro vagido do recém-nascido a avó foi buscá-lo. Deu-lhe banho numa bacia de folha de zinco cintada no fundo, em água tépida tirada da panela grande de ferro, sempre ao lume. Embrulhou-o em panos mais leves lavados na pedra do tanque do leirão do meio. Deu-lhe o biberão de leite, já morno, que o marido tirara às cabras pela manhã. Polvilhou a chucha com um pouco de açúcar amarelo e colocou-lha na boca. O menino, de barriga cheia e ainda que de olhos vivos, sossegou no seu berço.  
Com tanto que sempre havia que fazer nas fazendas, a ti’ Maria não podia tratar apenas da criança! Enquanto o marido andava lá para o mato com as cabras, ela tinha que ir fazer as regas; convinha que fosse de madrugada ou à noitinha para melhor se conservar a frescura na terra; mas cuidar do neto não lhe permitia fazer as tarefas às horas certas.  
  Precisava de ir regar as hortícolas e leguminosas no leirão fundeiro ao pé da Piçarra Grande, local da fazenda a que chamavam o Canchal. Só voltaria a casa lá para o meio-dia novo para meter tudo na panela, pôr a cozer e jantar com o marido que, entretanto, regressaria com o rebanho. Mas — neto, a quanto obrigas! — tinha que levar o menino! Não estaria sossegada se o deixasse em casa, sozinho no berço, sem o vigiar. Era assim que fazia, desde que tomara conta dele.
Alcofas eram coisa de luxo, para quem vivia nas cidades; então, pegou nele, aconchegando-o nas suas roupinhas, meteu-o com todo o cuidado, num cesto de verga de castanho que tinha ali ao lado, forte e suficientemente largo, onde o bebé cabia maneirinho. Pôs o cesto à cabeça e pegou no sacho da peta, leve, com um cabo comprido, que lhe servia de amparo. Saiu de casa, fechou a porta atrás de si e desceu a horta, passando pelos vários leirões onde se via tudo semeado; aproveitava-se cada canto de terra com o que pudesse dar. Nada se desperdiçava! Caminhava com cautela e apoiava-se com firmeza no cabo do sacho, porque carga mais preciosa que a do cesto não havia no mundo!
Chegou ao local da rega, escolheu uma oliveira ramuda e colocou o cesto à sombra com a criança — que dormia — em cima de uma pedra larga e lisa; deu uma última olhada ao neto antes de ir abanar a tranca da Mina do Meio.  
— Não há maior santidade que a inocência! — murmurou, observando-o. Depois, levantou-o, beijou-o e foi, logo ali pertinho, ligeiríssima, buscar a água.
A rega, feita rego a rego, demorou o seu tempo. Via-se que as plantas estavam com sede e o terreno ressequido do calor que tinha feito nos últimos dois ou três dias. Ocupava-se da horta com o mesmo carinho que cuidava dos canteiros ao pé da casa. O trabalho é que era um poucochinho menos pesado; se, para os canteiros tinha que carregar a água da Mina Nova, a regador, à força de braços, aqui a regadia era feita pelo pé; a água da mina passava pelos chaboucos dos leirões, como forma de controlar o caudal, até ao fundo da fazenda. E a ti’ Maria lá foi regando.
De quando em vez, enquanto a água enchia cada rego do renovo, ia ao pé do cesto para se certificar se tudo estava bem!
Estava mesmo a finalizar o trabalho e, pela altura do sol, calculou que estaria na hora de voltar à casa e pôr a panela ao lume com as batatas as couves e o toucinho. O marido estaria ali também a rebentar para ambos comerem e dar o biberão ao petiz.
O jantar decorreu com a habitual tranquilidade da serra. Mas agora, depois de tantos anos, desde que tinham tido a última filha, com a nota alegre de uma criança — filho do filho como se deles filho fosse — a enriquecer-lhes o avanço dos anos.
Às vezes, no final das refeições, a ti’ Maria, depois de beber da água da Mina Nova, fresquíssima, de fazer doer os dentes, dizia para o marido:
— Ó Bernardo, põe-me aí um dedal de vinho num copo! Mas só um dedalzinho, homem! Pões?
Queria celebrar aqueles dias felizes! Quem estivesse de lado a contemplar a cena, via duas pessoas no outono da idade — como se tivessem voltado a jovens — sem mais mundo, a tomar as suas refeições na paz do lar; enquanto iam olhando, embevecidos, o neto, lindo e tranquilo no seu berço improvisado, aconchegado a um canto da casa.
Dava a sensação que emanava da fronte perfeita e quase divinal do menino, toda a serenidade do universo!

(a) Arlindo de Carvalho, Hortelã Mourisca
Nota: Neste texto podem ter sido usados termos ou expressões regionais ou locais que não constam da ortografia ou dicionários oficiais. 

JOSÉ BARROSO

sábado, 24 de agosto de 2019

Apicultura: O 1.º desdobramento


Já vos contei que um dos meus dois enxames teve problemas em abril e por isso não aproveitou o máximo da floração e consequentemente produziu pouco mel.
Em fins de junho já não se fazem desbobramentos, pois as flores rareiam e por isso há pouco pólen para alimentar a criação. Mas o silvado do ribeiro estava a começar a floração e por isso decidi rentabilizar esse enxame e a partir dele fiz o meu primeiro desdobramento.
Usei quadros dos dois enxames, com criação de abelhas e zangãos. Estes são fundamentais para fecundar a futura rainha. No final da operação, concluí que não tinha criação de um ou dois dias (para as abelhas produzirem uma nova rainha), nem realeiras ou mestreiros (ovos de rainha). Mas decidi não abortar o desdobramento.
Dias depois fui ver como estava o gado e encontrei uma realeira num dos enxames. Levei-a logo para o novo enxame.
Um mês depois, este enxame já tinha muita postura de ovos, o que significa que tinha uma rainha. Agora, com dois meses, o novo enxame está bem e recomenda-se, como mostra a imagem acima. 

José Teodoro Prata