quinta-feira, 1 de abril de 2010

Os Martírios

Cantavam-se no escuro da noite, no tempo em que ainda não havia electricidade. Um grupo de pessoas, homens e mulheres, param nos locais de onde se podem ouvir bem, em toda a povoação, e cantam em coro. No passado, às vezes eram acompanhados por um pífaro.
Habitualmente, os locais são a Fonte Velha, a Praça, a Corredoura, (entroncamento com a Rua do Eiró e/ou com a Rua da Cruz), o cruzamento da Rua Velha com a Rua Nicolau Veloso, a Fonte de Santo António e o Calvário. A escolha dos locais depende do gosto dos cantores, mas o Calvário é fixo, pois ali terminam os Martírios, à meia noite. Em cada paragem, entoam-se três ou quatro estrofes.


Corredoura, no entroncamento com a Rua do Eiró. Era aqui que, nos anos 70, começávamos a cantar os Martírios. Subíamos as escadas e cantávamos de frente para a povoação. Acompanhavam-me o Ernesto Hipólito (o maestro), o Francisco Barroso, o Joaquim Trindade, o João Maria e outros.

Bendito e louvado seja
A Paixão do Redentor
P´ra nos livrar das culpas
Que morreu pelo nosso amor

Sofreu tão grandes tormentos
Duros martírios na cruz
P´ra nos livrar das culpas
Morreu por nós ó Jesus

Vossos divinos cabelos
Em sangue foram ensopados
Sangue que foi remido
Pelos nossos feios pecados

Vossos divinos cabelos
São mais finos que o próprio ouro
De onde ele tem a raiz
Tem a minha alma o tesouro

Vosso divino nome
É Jesus de Nazaré
Quero viver e morrer
Pela Vossa santa fé

Vossa santa cabeça
Coroa de espinhos cravados
Por grandes dores incríveis
Fontes de sangue derramaram

Vossos divinos olhos
Sofreram lágrimas internas
P´ra livrar as nossas almas
Do fogo e penas eternas

Vosso divino nariz
É um lindo diamante
É o cravo mais bonito
Que se cria no mirante

Vossa divina boca
Vinagre e fel amargoso provou
Poupando as nossas almas
Do castigo eterno horroroso

Vossas divinas faces
Sofreram mil bofetadas
Por duros ferros algares
Escarnecidas pisadas

Vossos sagrados ouvidos
Estão ouvindo os meus pecados
E lá, no dia do Juízo
Eles serão perdoados

O vosso puríssimo rosto
Cheio de escarros nojentos
Por nossos duros pecados
Senhor de tantos tormentos

O vosso divino pescoço
Grossas cordas o ligaram
De rua em rua com ele
Como réus o arrastaram

Vossos divinos ombros
Pesada cruz conduziu
De rua em rua com ele
Ainda mais chagas se abriram

As vossas mãos puras divinas
Pregadas nesse madeiro
Nele ficaste pendente
Bom Jesus verdadeiro

Os vossos divinos pés
Foram com ferros ofendidos
Mas foi rasgada a sentença
Contra milhões de perdidos

O vosso divino peito
Foi cruelmente rasgado
Todos nos dizem quanto horrendo
Quanto medonho é o pecado

Vossa sagrada cruz
É de pau de oliveira
É a rosa mais bonita
Que se cria na roseira

Quem me dera estar na fonte
Quando o Senhor pediu água
Eu lhe dera de beber
Dava-lhe bem a minha alma

Ó almas que tendes sede
Vinde ao Calvário beber
O Senhor tem cinco fontes
Todas cinco a correr

Ó almas que estais dormindo
Nesse sono tão profundo
Rezemos um Padre Nosso
Pelas almas do outro mundo

Estas duas últimas cantam-se no Calvário, onde terminam os Martírios.
É curioso que os momentos altos da religiosidade, em S. Vicente da Beira, sejam o Natal, a Páscoa e o Santo Cristo, nas festas de Verão. No primeiro, comemora-se o nascimento de Jesus e nos outros dois sofremos com a sua morte, para depois nos alegrarmos com a ressurreição. É Deus na sua humanidade que nós melhor entendemos, porque mais se parece connosco.

Recolha de Maria Isabel dos Santos Teodoro, trabalho manuscrito, Escola Secundária de Alcains, 1985

Um comentário:

Tina Teodoro disse...

Que bom haver quem nos faça recordar estas tradições, estes momentos que nos ligam ao passado, à nossa infância, à nossa terra! E sobretudo que nos fazem esquecer por momentos a vida agitada que levamos.
Obrigada por estes momentos...
Nunca desistas...ainda há alguém que se lembre de fazer alguma coisa...seus mandrões (nós)...
A mana Tina