quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

O Cagadouro

Situava-se mesmo no princípio da quelha que levava à Tapada de Dona Úrsula, logo a seguir ao Cimo de Vila, à esquerda, na bifurcação da Corredoura para o lado direito, encosta acima. Foi o nosso último vestígio das lixeiras que, ao longo de milénios, coexistiram com os homens e periodicamente matavam a torto e a direito.
Houve exceções, como nas cidades romanas, com as suas redes de esgotos e de abastecimento de águas. Depois, voltou tudo ao mesmo. Ficou célebre o rei francês que levou com uma penicada em cima, mas perdoou à mulher que atirara os dejetos para a rua. A fim de evitar que tal voltasse a acontecer, não proibiu aquele mau hábito, apenas impôs a obrigação de gritar “Água vai!” antes de lançar as porcarias pela janela, a fim de as pessoas terem tempo de se desviarem.
Séculos depois, após o Terramoto de Lisboa de 1755, o Marquês de Pombal já reconstruiu Lisboa seguindo as regras de higiene defendidas pelos que associavam a falta dela às constantes mortandades. Um dos sábios desses tempos foi o beirão Ribeiro Sanches, cristão-novo de Penamacor, afastado da pátria pela intolerância religiosa da Inquisição. Publicou as suas ideias sobre as regras de saúde pública que os governantes deviam cumprir e fazer cumprir no planeamento e gestão dos centros urbanos. Graças a ele, a Baixa de Lisboa foi reconstruída com rede de esgotos (com um buraco para despejos, no rés do chão de cada prédio), vidros nas janelas e ruas calcetadas com valetas. As coisas foram melhorando, muito lentamente, até chegarmos à data de 1970, em S. Vicente da Beira. Mas já lá vamos.
Primeiro há que explicar que o Cagadouro era uma lixeira geral usada pelas pessoas do Cimo de Vila que não tinham hortas por perto, onde despejar os lixos, vazar os penicos ou mesmo arrear a calça. Tudo normal para a época, até a ignorância do perigo que era ter uma lixeira acima da povoação, com a consequente difusão de bactérias, quando as chuvas lavavam os caminhos e as espalhavam pelas ruas.
Nos anos 60, notou-se uma gradual diminuição da utilização da lixeira. No início, tínhamos de passar com cuidado, sempre pelo meio, como se houvesse um acordo entre transeuntes e utentes. De noite é que era mais complicado: fazíamos fila indiana, com o credo na boca, na esperança de a regra ter sido cumprida. Mas, no tempo chuvoso, mesmo de dia, era sempre uma lástima! De pessoas que lá se fossem a aliviar directamente, só topei com um ou dois cus ao léu, atrapalhados entre a urgência da necessidade e a vergonha da exposição.
A malta da Tapada descia a quelha sempre a altíssima velocidade, tudo a descer até à Escola, na Praça. Um dia, só no momento da abalada me lembrei da assinatura da minha mãe na prova. Nem a meti na bolsa, pois os meus primos já tinham desaparecido. Encostei-a à barriga e ala que se faz tarde. No fundo do Cagadouro, tropecei no rego da regadia das Lameiras e estatelei-me no chão da Corredoura. A prova ficou mais colorida: o castanho da terra e o verde da erva no azul das letras, em fundo que fora branco. Mas, se eu tivesse tropeçado uns metros atrás…
Com o fim da década, a lixeira deixou de ser utilizada. Nesses anos, a Vila teve rede de água e esgotos e, embora a recolha dos lixos urbanos tenha começado só na década de 80, as pessoas já eram mais cuidadosas. Depois do 25 de Abril, no final dos anos 70, usavam-se bidons cortados ao meio para o depósito do lixo pelas ruas da Vila. Era Presidente da Junta o senhor Ramiro Lima e, como construtor civil, talvez ele mesmo os tenha arranjado. Numas Festas de Verão, trouxeram-se todos os bidons para a Praça, onde eram muito precisos, mas deixaram-se as ruas sem locais para vazar o lixo, numa altura em que mais o havia. Uns jovens escreveram numa parede, com seta para a Praça: “Visite a exposição de bidons do lixo”. Tempos de miséria, como diria o meu pai, mas também tempos de aprender a ser cidadão, digo eu, um dos que escreveu aquilo na parede.
Penso que foi logo depois de 1970 que o Cagadouro deixou de ser cagadouro, embora, como disse acima, já não fosse quase utilizado como tal. Nesses anos, o meu tio João Teodoro, da Serra ou Baloia, regressou do Canadá e reconstruiu a casa situada no topo cimeiro da Rua da Cruz, já na Corredoura. No quintal, fez um palheiro para a burra, com entrada pela quelha. Antes das obras, limpou tudo, meio metro de altura de entulhos, levados em vários tractores.
Lembro-me de passar por lá e conversar com o meu pai, do caminho para o alto da obra. A certa altura, ele fez-me uma pergunta e eu respondi que não. “Não é NÃO que se diz, é NÃO SENHOR! Estes rapazes de agora já não têm educação como dantes!”, ralhou lá de cima o meu tio João Teodoro, o Pontífice. Achei que o meu tio estava a ser injusto comigo, pois eu fora educado na resposta ao meu pai e, por isso, atribuí o seu reparo à diferença de idades entre nós. Raciocínio típico de um adolescente: nasci em 1957 e, em 1970, tinha 13 anos.
Outros tempos...


Local da antiga lixeira, visto a partir da Corredoura.


A parte superior do mesmo local, agora visto por quem desce a quelha. À esquerda, o palheiro da burra do tio João da Serra.

2 comentários:

Anônimo disse...

Um postal maravilhoso para quem é desses tempos. Por causa dessas memórias é que a 1.ª vez que visitei a Feira da Ladra comentei: isto é á quelha cá do sitio.
Outra coisa fenomenal que deixou de existir era sicialização na quelha, isto é, os putos iam em conjunto a aliviar-se com a maior naturalidade doo mundo. Home come-se em conjunto, mas descome-se em privado. São os tempos.
è bom que continues a escrever para os teus seguidores. Um abraço do Xico

Ernesto Hipolito disse...

Também havia a Quelha das Fontainhas na zona das agora escolas velhas.Servia os mesmos interesses mas mais conhecida pelo pessoal do fundo de vila.

E.H.