sexta-feira, 4 de março de 2011

O resineiro

José Candeias nasceu em 1921 e é o homem mais velho de São Vicente da Beira. Vive na Tapada da Dona Úrsula, com a sua mulher Estela Prata, ainda entretido com umas cabritas e no amanho das terras, depois de uma vida de muitos trabalhos, entre os quais a ida para França e mais de 20 anos como resineiro.


Comecei a trabalhar na resina aos 16 anos, ainda descalço. No primeiro ano, ganhava 15 escudos por dia, mas, no ano seguinte, já me pagavam como aos homens, 17 escudos.
Se era uma vida dura? Deus te livre, afilhado! Saímos de casa por volta das quatro ou cinco da manhã, para pegar ao nascer do sol, sempre a subir e a descer barreiras, com o caldeiro da resina às costas. Comíamos a merenda por volta das dez horas: uma orela de pão, com um bocado de queijo ou azeitonas, numa bolsa presa ao cinto das calças. No tempo quente, andávamos horas sem encontrar água, mortos de sede. Metíamos uma palhinha na boca, para entreter. Às vezes, num ribeirito quase seco, fazíamos uma poça no chão e bebíamos aquela água ludra, a saber a terra e a raízes. Nalguns dias, só matávamos a sede depois de largar, cerca das duas horas da tarde, quando passávamos na fonte de Santo André.
A exploração da resina ocupava-nos de meados de Fevereiro a meados de Novembro. Primeiro fazia-se o descarrasco, com a machada, desbastando a carcódia do pinheiro até quase à pele, na parte que queríamos explorar nesse ano. Na volta seguinte, colocávamos a bica (lata de zinco, em forma de meia-lua, espetada no pinheiro), a cunha e a tigela de barro, entalada entre a cunha e a bica. Feito este trabalho em todos os pinheiros, começava a exploração: cortávamos uma tira de pele do pinheiro, rente à bica, para a resina sair. Depois, até Outubro, íamos cortando mais tiras de pele, pelo tronco acima, para que houvesse sempre feridas novas por onde o pinheiro sangrar. A colha fazia-se com uma espátula, tirando a resina da tigela para o caldeiro. No tempo quente era mais fácil, pois a resina corria quase como água. Caldeiro cheio e era necessário ir despejá-lo ao barril e voltar, voltar as vezes necessárias. Quando os bidons estavam todos cheios, vinha o camião da fábrica a carregá-los ao estaleiro. A campanha da resina terminava na primeira quinzena de Novembro. Antes, dávamos uma última volta, a raspar a resina seca que ficara na ferida do pinheiro. Depois, com um pau, amassava-se bem dentro do caldeiro, para desfazer a resina seca na líquida.
O José Neves era um dos três donos da fábrica da resina, em Castelo Branco, onde agora está o Modelo. Também explorava a resina na nossa terra. Os resineiros trabalhavam para ele. Chegámos a ser doze resineiros. Resinávamos todos juntos, levando os pinheiros a eito. Começávamos pela margem esquerda da Ribeirinha, no Valouro, e depois pela Oles, Barragem, Serra, Lameiras, Senhora da Orada, Mata Redonda, Casal Pousão (até quase à Paradanta), Vale Covo e finalmente Vale Feitoso, em frente ao Valouro, onde tínhamos começado. Esta enorme volta demorava oito dias. Também fazíamos o Peral, uma grande propriedade da Casa Conde, por cima do Tripeiro.
Trabalhávamos juntos, mas cada resineiro tinha a sua volta diária, com cerca de 450 a 600 pinheiros para fazer. Isto é, andávamos na mesma zona, mas longe uns dos outros. A cada resineiro era atribuída uma volta diária, às vezes por sorteio, pois havia voltas maiores que outras ou em terrenos mais difíceis. Era um trabalho solitário, horas sem ver vivalma. Mesmo bichos, só raramente topávamos com um texugo ou uma raposa, além dos gritos de gaios e de corvos.
Mas os trabalhos dos resineiros não se ficavam por aqui. Ainda íamos à Barroca do Zêzere ou a Dornelas, por nossa conta, a pé, com uma saca às costas, buscar pedras para desgastar as ferramentas. Dornelas é uma terra muito bonita, sobre o rio, e nas barreiras apanhávamos as pedras, do tamanho da mão. Isto era por volta de 1950.
Anos mais tarde, o senhor José Neves começou a contratar com um resineiro a exploração da resina numa zona. Era melhor para os dois: o resineiro ganhava mais e o José Neves recebia mais resina, pois era colhida com mais cuidado, de forma a não cair nada para o chão. Eu contratei com ele a exploração da resina no Vale Covo, Vale Feitoso, Vale Moreno e Canada. Trazia comigo três resineiros: o meu irmão João, o meu irmão Domingos e o Tonho da Lígia. A tua madrinha também colhia! E íamos à fábrica assistir à pesagem dos bidons, para sabermos quantos quilos tínhamos colhido. O camião da resina levava-nos para Castelo Branco e voltávamos na camioneta da carreira. Num ano, tive de lucro 12 contos, livres de despesas. Dei 500 escudos a cada resineiro, pois tinham-me ajudado a ganhá-los.
Mas, em 1962, abalei para a França, a salto, à procura de uma vida melhor.


José Candeias e Estela Prata

2 comentários:

Susana Jerónimo disse...

Foi isto que me fez crescer respeitar, e amar, são estas as raizes do meu ser foi tudo isto que me fez amar e respeitar o próximo, foi esta a vivência em que se criou os meus maiores valores, não conheci os meus avós paternos infelizmente mas o meu pai transmitiu o papel deles na integra, conheci e conheço os meus avós maternos e o orgulho que tenho deles é mais que muito...muito obrigado por tudo por ser a mulher que sou hoje pelos valores que me transmitiram e por me ensinarem que se olhar para o lado existe alguém e que esse alguém é um pouco mais que nós... muito OBRIGADO FAMILIA... muito obrigado primo por tudo por "teres posto ao de cima coisas que nem o tempo apaga"... Susana Candeias Jerónimo

Margarida Gramunha disse...

O meu avô Joaquim Barroso ambém foi resineiro mas não falava muito desses tempos. Foi bom ficar a conheçe-los aqui no dos enxidros. Recordo com muito orgulho o meu avô agricultor. Aprendi muito com ele, além de que era um otimo contador de histórias.
Também gosto de ver o meu tio Francisco a subir descalso a serra, e a felicidade com que vive a liberdade da serra...É tão bom como o Pai . É tambem uma grande referência na minha vida. É verdade que é a familia que nos faz quem somos e ainda bem que assim é.