quinta-feira, 10 de maio de 2012

Nossa Senhora

Eu tive uma cabra mocha, castanha amarelada, mais castanha nas costas e amarelada na barriga. Quando nasci, a minha mãe sofreu de uma infeção nos bicos das mamas e por isso teve de comprar leite de cabra para me criar. Então os meus pais, já com quatro filhos pequenos, decidiram comprar uma cabra. Era uma chibinha quando a trouxeram, mais ou menos da minha idade.

Desde pequeno que eu fiquei o seu pastor. À saída da escola, os outros rapazes iam nadar para o Pelome, na ribeira, mas eu não podia, tinha a cabra, na loja, à minha espera. A missão do meu primo era igual. A cabra dele era cornuda, de pelo escuro e maior do que a minha. Como nas Festas de Verão era costume comer borrego assado e guisado, o meu pai ia ter com o Nonga, o pastor do tio Albano, que mal conseguia falar, mas entendiam-se, porque eram amigos. Ele apalpava a barriga das ovelhas e sabia quantos borregos traziam. Se houvesse uma com três, então um ficava prometido para nós. Comíamos um dos dois cabritos da nossa cabra e metíamos-lhe o borrego, para ela o criar. Por isso, além da cabra, eu tinha de guardar o outro cabrito dela e o borrego.

Ao lado das nossas casas havia uma encosta muito grande, chamada barreira. Descíamos por ela, sem pressas, ao ritmo das cabras que iam comendo mato, sobretudo de giestas brancas, até chegar ao ribeiro das Lajes. Aí regalavam-se com a erva tenrinha e depois começavam a subir pela barreira oposta, ainda mais calmamente.

E demorávamo-nos no ribeiro, sobretudo na presa da regadia, pouco funda, mas o suficiente para pregarmos uma partida ao meu cão. Chamava “Bobi” e ele vinha a correr, a abanar o rabo de contente. Pegava-lhe ao colo e atirava-o à presa. Ficava aflito, mas nascera a saber nadar e por isso saía da água rapidamente. Nessa tarde não voltava a aproximar-se de mim, mas no dia seguinte já não se lembrava.
A água da presa vinha de uma mina, em parte a céu aberto. Se apanhávamos a presa vazia, entrávamos pela mina e víamos peixes cabeçudos e salamandras preguiçosas, às manchas pretas, vermelhas e amarelas. Depois íamos a ver das cabras, que já mal avistávamos.

A meio da barreira havia um poste metálico dos telefones. Então pegávamos numa pedra e batíamos nele, às vezes depressa, outras devagar, com mais ou menos força, a tentar conversar com as pessoas que estavam ao telefone, nós que nem sabíamos o que isso era. Outras vezes subíamos a uma piçarra e fazíamos um relato de futebol:
“O Coluna passa para o Costa Pereira, este chuta para o Jaime Graça que centra para o Torres e é GOOOLLLOOOO!”

Além da mãe do meu primo, tínhamos outra tia nossa vizinha ainda mais religiosa que as nossas mães. Ela costumava ranhar-nos quando nos portávamos mal e falava-nos dos pastorinhos de Fátima, querendo que nós fossemos como eles. Um dia emprestou-nos uns livrinhos sobre o Francisco e a Jacinta. A Nossa Senhora tinha-lhes aparecido e pedira-lhes que rezassem muito e jejuassem. Andámos aterrorizados muito tempo, pois éramos pastores e podia-nos acontecer o mesmo. Rezar, ainda vá lá, mas deixar de comer… Não descansámos enquanto não lhe devolvemos os livros!

Mas voltemos à vida de pastor, que o ganal tem de comer todos os dias. Na barreira do lado de lá do ribeiro, o mato era de carquejas e algumas giestas amarelas. As cabras gostavam de comer as flores e os rebentos tenros. Talvez também gostassem, como nós, de ver a encosta matizada com o castanho da terra, o negro das rochas e o colorido verde e alaranjado dos matos. Por isso se demoravam lá tanto, facilitando as nossas brincadeiras no ribeiro.

No alto da barreira, havia um pequeno planalto, com uma pedra enorme a sobressair na encosta, como se fosse uma varanda sobre a presa. Antigamente era lá que se malhava o pão, mas para nós era mais um bom sítio com imensas oportunidades para brincar. Havia vagar, pois as cabras adoravam o mato branco lá do alto.

Um dia, já sol-posto, corremos pelo mato para virar as cabras de volta a casa e demos com um ninho no chão. Tinha quatro passarinhos já vestidinhos, completamente pretos. Pegámos neles, dois para cada um, e regressámos apressados, para mostrar às nossas mães e irmãs.
“São cotovias, os passarinhos de Nossa Senhora. Tendes de ir depressa colocá-los no ninho, pois é pecado tirá-los. E esperemos que a mãe não os enjeite, por terdes mexido neles!”

Corremos no escuro do anoitecer, com eles na concha da mão. Descemos a barreira, subimos a barreira e metemo-los no ninho. Voltámos com o coração apertado, pois já se ouviam uns pios tristes, seriam os pais a chorar pelos filhos.

Nos dias seguintes, não voltámos ao alto da barreira e ao entardecer ficávamos sempre de ouvido à escuta, tentando ouvir os pios dos pais cotovias a quem nós havíamos roubado os filhos. Felizmente, deixámos de os ouvir, embora ainda hoje se ouçam todos os dias ao anoitecer

Sargaço


Giesta amarela


Mato branco

7 comentários:

Anônimo disse...

que bonito o seu relato. Fez-me recordar tambem a minha infancia.
Quando chegava-mos a S. vicente queriamos ir logo a correr para a serra,chegados lá gritava-mos bem alto e arrastadamente - avô Quim.
Ainda hoje quando lá vou me apetece gritar da mesma forma na esperança de o rever... E o avô respondia e iamos ter com ele. Era maravilhoso quando nos mandava guardar as cabras para que não comessem as videiras nem as couves nem o milho,brincar com os cabritos pequenos, ordenhar as cabras e ver a minha avó a fazer o queijo ... Confesso ter saudades do meu maravilhos avô, De partilhar om ele a apanha do milho, o descamisar e fazer soltar os grãos das maçarocas esfregando uma contra a outra. Apanhar o feijão. O brincar na eira, e tentar uzar o mangual. Apanhar as batatas por ordem de tamanhos.ir abrir as presas e regar com os pés nus enfiados nos regos...usar brincos de cerejas...fazer a vindima e esfregar os gachos no cerindão como quem lava a roupa... Apanhar a azeitona, atira-la ao ar para a limpar e leva-la ao lagar ...Ir à Srª da Orada e comer nossas senhoras de açucar. Foi bem rica a minha infância na companhia dos meus adorados avós . Aprendi muitissimo com eles. Bem haja pelo seu relato que me fez relembrar tempos tão doces.

José Teodoro Prata disse...

O seu comentário é muito bonito. Em poucas linhas, sintetizou os trabalhos agrícolas e tantas sensações e afetos que lhes estão ligados.

Ernesto Hipólito disse...

Estive à espera para ver quem ia comentar um texto tão lindo como este que começa da melhor maneira, " Eu tive uma cabra mocha " .Os Barrosos (Chico e Zé) devem andar a pensar na Senhora da Orada pois não disseram nadinha. O que valeu foi este anónimo que com a memória bem fresca disse tudo. Parabéns Zé e um grande abraço.
E.H.

Anônimo disse...

Ernesto, tens toda a razão. O texto é mesmo muito bonito, porque estamos a ver as letras e ao mesmo tempo a Tapada, O Zé, o João, a Ti Carlota, as cabras e o mato florido.
Este texto é cinema ao contrário, porque tem as imagens depois das letras. Vi também no comentário da Guida o meu pai, na serra e eu também a guardar as cabras. E quem é que me vai dar uma mãozinha, a minha sobrinha que também tem alma de pastora, quando me reformar
Um abraço do Chico Barroso

Anônimo disse...

Ó Ernesto Hipólito, aguenta aí as ... cabras !
José Barroso

Anônimo disse...

"Zé Teodoro:
É só para te dizer que, no fundo, todos nós, que andámos lá por S. Vicente, nos revemos um pouco no que contas nos teus artigos; a tua infância é, afinal, a infância de muitos de nós; as narrativas são de um realismo tocante; e o segredo pode estar no uso de uma linguagem acessível, que permite a construção de imagens de muita cor e vivacidade, próprias dos temas que abordas.
Como disseste, tenho mais uns anos que tu, mas nesse tipo de vivências (porquanto elas se prolongaram por gerações), a nossa idade parece, de facto, a mesma. Continua.
José Barroso

Tina Teodoro disse...

Zé, como é bom recordar esses anos das nossas vidas.Eu vivi o mesmo, senti o mesmo e muitas vezes dou por mim a recordar essa parte da minha (nossa) infância. Eu levava os trabalhos de casa que fazia na barreira e, à tardinha as cabras regressavam a casa, quase sem nos darem trabalho,bastava segui-las. E as tigelinhas de barro que fazíamos com terra e água, quando vinha a água da regadia, o contemplar das vacas louras, o apanhar dos grilos...e tantas outras coisas que tornaram tão doce a nossa infância e tenho tantas saudades.
Continua
Tina Teodoro