Entre a Quarta-Feira de Cinzas e a Missa da Aleluia, vivia-se
em tristeza e sacrifício. Era no momento em que Deus se tornava igual a nós, homem
e sofredor, que mais nos identificávamos com Ele.
Abstínhamo-nos de distrações mundanas, num
crescendo de concentração e privações. Fazíamos as ladainhas à noite, depois as novenas na
Misericórdia, no passado mais longínquo em procissão à Senhora da Orada, e a
Procissão dos Terceiros, a lembrar homens e mulheres que mais se haviam
aproximado de Deus. E ainda os martírios e a encomendação das almas, para
estarmos à altura do seu sofrimento, já anunciado na festa do Domingo de Ramos.
Na Quinta-Feira Santa, Cristo fez-se o mais
humilde dos homens e lavou os pés sujos dos seus discípulos. Depois um deles
traiu-o e nenhum de nós queria ser esse judas. Da quinta para sexta, sofreu o
que só Deus, seu pai, sabe. Na sexta à tarde colocaram-lhe uma cruz às costas e
nós seguíamos atrás dele, para que não se sentisse abandonado. Na Fonte Velha,
juntávamos ao cortejo a sua mãe e seu discípulo João, para melhor o
reconfortar. E assistíamos à sua morte terrena, no calvário. Um manto de
silêncio e tristeza abatia-se sobre a Vila. Nem os sinos soavam, substituídos
pelas matracas. À noite, no escuro, fazíamos o seu enterro, em ambiente de
consternação total, envoltos pelo toque choroso da marcha fúnebre da filarmónica e pelo canto triste da Verónica.
E as nossas vidas ficavam em suspenso até sábado
à noite, mesmo nos preparativos da Páscoa. E à meia-noite, quando o senhor
Vigário proclamava a Aleluia, os fiéis explodiam de alegria, ao toque de
campainhas e chocalhos, a festejar a ressurreição de Cristo. A festa prolongava-se
pelo domingo e semanas seguintes, pois tão importante era sermos solidários com
o seu sofrimento como alegrarmo-nos com a sua passagem para o Pai.
São estas tradições ancestrais que podemos
revier, este ano, em São Vicente da Beira.
Nenhum comentário:
Postar um comentário