quarta-feira, 24 de julho de 2013

A magia da cidade

Desci à cidade, por uns dias. Eu e o meu primo, com as nossas mães, ficámos numa casa a meio da Rua de Santa Maria, de uma família do Casal da Serra, conhecida das nossas mães. Vínhamos ao exame da 4.ª classe, ali bem perto, na Escola do Castelo. Primeiro foi a prova escrita. Não correu mal, embora eu desconfiasse muito da minha escrita, farto que estava de apanhar reguadas por causa dos erros.
Depois houve um ou dois dias de espera e passámos parte do tempo dentro de casa, entre o sofá e a janela rente à rua, como animais enjaulados, senhores que éramos das barreiras da Gardunha.
Numa das noites foi diferente. Havia as Festas da Cidade e fomos passear. Era de noite e parecia de dia, toda a cidade iluminada como que por magia. Passei por baixo da ponte por cima da rua, que eu desenhara na escola, para um concurso. Era tal e qual como no postal, talvez com menos vasos de flores que tanto trabalho me tinham dado a desenhar. Percorremos o Parque da Cidade, no meio de um formigueiro de pessoas felizes. Havia aparelhagem como nas nossas Festas de Verão. Também vinha música de uma varanda um pouco abaixo do castelo, toda iluminada e cheia de gente. Parecia que andava num mundo irreal, aliás já desaparecera quando por lá passei, passados uns dias, de regresso a casa.
Voltei à Escola do Castelo e a prova oral não correu nada bem. Troquei uns rios, enervei-me e já nem sabia o que dizia. No final, a Dona Natália afiançava a passagem de todos, menos a minha. Ela e a minha mãe estavam preocupadas e eu à rasca, de cabeça baixa, a riscar o chão térreo do pátio da escola com a ponta do sapato ainda com o brilho de novo. Ia voltar com uma raposa para casa e passar vergonha! Mas correu bem e todos ficámos contentes.
A meio do verão fui uma semana ao Seminário do Tortosendo, pois dera o meu nome quando o Padre Lúcio foi à minha escola e nos falou dos missionários que ensinavam a doutrina aos pretinhos de África. A minha mãe escreveu para a França e o meu pai disse que sim, porque o irmão João também lá trazia os filhos.
Éramos mais de cem, vários de São Vicente, e passámos o tempo a fazer testes com perguntas difíceis e outras fáceis, como aquela da cor do cavalo branco do Napoleão. E havia uma piscina, num buraco fundo, lugar de prazeres e medos, habituado como estava às presas do ribeiro das Lajes, onde nadava apoiado nas mãos e nas pernas que batiam na lama do fundo.
Regressámos às nossas casas e semanas depois recebi uma carta a dizer que fora aceite e me preparasse. Por isso tive de voltar a Castelo Branco. Não foi dessa vez que vim com o meu pai e fomos matar o bicho, com um branquinho, ele um copo grande e eu um copo pequeno, na taberna da Quinta Nova, ali por detrás da Sé, onde parava a camioneta. O meu pai, bom conhecedor da cidade, por ser de lá e ter feito a tropa em Cavalaria, no quartel da Devesa, conhecia o dono e garantia que tinha uma pinga boa. Mas isso foi mais tarde, daquela vez veio a minha mãe comigo.
Tirei uma fotografia num fotógrafo perto da Devesa e depois fui fazer o bilhete de identidade. A senhora mediu-me e ficou impressionada: um metro e setenta e cinco! Acho que ela colocou a régua inclinada para cima, a meu favor, porque era baixinha e mal me chegava à cabeça. O certo é que essa medida vale até hoje.
A carreira só partia às quatro horas e por isso fomos almoçar num sítio ali perto. Chamava-se Pensão Central e ficámos sentados numa mesa ao pé da janela. O que comi, não me lembro, mas bebi a coisa mais saborosa que devia existir no mundo. A garrafa era esverdeada e a bebida doce fazia bolhinhas no copo e cócegas na boca e na garganta. Sítio maravilhoso a cidade!

Nota: Esta pequena história está publicada, na Agenda Cultural do Cine-Teatro (Câmara de Castelo Branco), no número de verão, o atual. Outras duas crónicas deste blogue foram publicadas na Agenda da Gardunha 2013, da organização Solstício, com sede na Soalheira. São elas "O lobo branco" e "A fuga".

José Teodoro Prata

4 comentários:

Anônimo disse...

Fantástica. É o que se pode dizer desta história. Foste tu que a escreveste Zé, mas ela também é minha e de tantos outros que como nós a vivemos nos seus elementos principais: a cidade, tão diferente da tapada e da serra; a Escola do Castelo; a angústia dos exames. jardim épiscopal e a camioneta da carreira.
No meu caso também a agonia dos escapes dos automóveis e camionetas a carburar mal o gasóleo.
FBarroso

Anônimo disse...

Olá Zé.
A tua história apenas pode ser classificada com uma palavra: FANTÁSTICA
Ao lê-la foi como tivesse sido sujeito a descarga eléctrica originando a reactivação das minhas memórias já ofuscadas pelo tempo. Foi MUITO BOM
Habituados que estávamos à liberdade, num desses dias da Rua Sta Maria ao espreitar à janela parti um dos vidros à cabeçada. A Srª do Casal da Serra ficou muito preocupada, mas eu ainda mais! Que VERGONHA
É bom continuar a receber estas descargas eléctricas
Um abraço
JC

Anônimo disse...

Não vou repetir o que o Francisco disse no comentário que fez a mais esta belíssima história do José Teodoro, mas faço minhas as palavras dele.
É verdade que o exame da quarta classe, em Castelo Branco, era um dos acontecimentos mais marcantes das nossas vidas de crianças habituadas à segurança que a Dona Teresinha ou a Dona Natália e os limites da nossa Vila nos davam. Numa altura em que, os que morávamos no Fundo de Vila, ir para além da Praça era quase como ir ao estrangeiro, e os do Cimo de Vila só vinham cá abaixo por causa da escola ou da missa, ir a Castelo Branco era quase como ir ao fim do mundo (mesmo tendo decorado todos aqueles nomes dos rios, serras e caminhos de ferro da Geografia, o mundo era pequeno, para nós …).
Apesar de toda a insegurança e angústia que a situação nos provocava naquela altura, a esta distância não a recordo de forma negativa; mas isso não faz com que concorde que agora se queira regressar ao passado e se obriguem crianças com nove e dez anos a fazer exame fora da sua escola e, em alguns casos, fora da sua terra…

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

João:
Já não me lembrava dessa do vidro partido.
De facto, nós não cabíamos lá em casa!!!

A do Chico se agoniar com a poluição dos carros merece a medalha de ouro ecológica. Nós estávamos habituados a ar de qualidade!