sábado, 14 de dezembro de 2013

A rapariga da bicicleta

Chegara o outono, o tempo estava a mudar. O nosso encarregado repetia constantemente: “Está fresque!” Era de Alcains.
Não sei que acasos da vida juntaram, na mesma brigada da JAE, o Zé Barroso, o João Maria e eu próprio, três jovens à volta dos 20 anos. Terminara a temporada de verão, que eu passara a remendar estradas e a limpar valetas, e depois mandaram-nos, aos três, vindos de grupos de trabalho diferentes, para Alcains. Isto em 1976.
A missão era trabalhosa. No centro de Alcains, mesmo em frente ao posto da GNR, metade da rua estava alcatroada, mas a faixa encostada ao posto era de terra batida. Enfiaram-nos uma picareta nas unhas e mandaram-nos abrir uma caixa com cerca de um palmo de fundura. Trabalho duro, só aliviado quando carregávamos o Dumper com a terra arrancada a golpes de picareta.
As pessoas passavam indiferentes. Nem as miúdas mais giras, à entrada e saída das fábricas Lusitânia e Dielmar, se deixavam impressionar connosco, em pose de estátua, à sua passagem, de picaretas no ar. Eram uns corações empedernidos!
Depois da caixa aberta, o trabalho aliviou. Íamos a carregar o Dumper com brita que um canteiro partia, sozinho, no meio do campo. O corpo aliviava nas viagens para lá e para cá, pois o carregar da brita também era complicado. Imaginem espetar uma forquilha num monte de pedras pequenas! Aquilo faz-se, mas com o jeito que se vai ganhando.
Numa semana, o homem da brita não partira o suficiente e por isso fomos limpar as valetas na estrada para os lados do caminho de ferro. A monotonia do costume, o aliviar das costas quando passava um carro que valesse a pena ser visto.
Mas bom mesmo era uma rapariga que passava de bicicleta, todos os dias, a meio da tarde, numa pedalada vagarosa de passeio. Ia e depois voltava e nós a sonhar, não tanto com ela, mas com os mundos que ela nos abria: o esvoaçar despreocupado, sem obrigações, nem limites.

José Teodoro Prata

2 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Umas presumidas, as raparigas daquele tempo! Três cachopos tão jeitosos e elas a fingir que não os viam…
Um pouco mais a sério: trabalho difícil, esse nas estradas e o de quase tudo o que era construção. E, apesar de algumas melhorias técnicas, a dureza do trabalho não se alterou muito de lá para cá.
Já lá vai muito tempo, mas causa agonia a descrição que o Aquilino Ribeiro, num dos seus livros, faz das condições de trabalho dos operários que construíram a Sé de Lisboa. Esses, para além do peso da picareta e da pedra, ainda tinham que suportar o chicote no estômago e no lombo…

M. L. Ferreira

Anônimo disse...

Como poderia eu deixar de fazer um comentário a mais este pedaço das vidas passadas?! Com aquela idade sentia-me um teenager inconsciente, a amadurecer, ainda à espera de entrar, a sério, no bulício das coisas adultas.
Lembro-me muito bem de andarmos, de picareta em punho, a preparar o alcatroamento do largo de Alcains. E do sotaque do Ti' Aprígio (o encarregado). E da menina da bicicleta que passava, absorta, na sua leveza, construindo castelos de sonhos, com o mundo inteiro para descobrir! Nem dava por nós que, de músculos retesados e taurinos, lhe arranjávamos a sua rua!
Entretanto, o sol pôs-se e levantou-se muitas vezes no horizonte. Passaram 37 anos e parece que foi ontem ! Razão tinha o poeta João de Deus (que tem uma grande estátua no cimo do Penedo da Saudade, em Coimbra):
"A vida é ai que mal soa.
A vida é sombra que foge.
...
A vida é folha que cai."

Muita simpatia da Libânia no seu comentário.

Zé Barroso