quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

O companheiro de Natal

Só com uma porta e sem janelas, descia-se um degrau e pisava-se o chão de mato traçado que tapava o frio e o sujo da terra. No canto da direita, atrás da porta, uma prateleira dentro da parede, com a bilha da água e o coucho, a candeia do azeite e o caçolo de barro, com um garfo e uma colher dentro. A navalha não, acompanhava-o sempre, para as precisões de um homem. Mesmo ao canto, o lume, aceso de manhazinha e à noite, nos dias bons, porque nos de inverno toda a lenha era pouca.
A seguir, para o fundo, arrumava os molhos de feno e as faixas de canas. Era lá que dormia, em cima de uma manta de trapos, tapado com o capote, quando fazia frio.
A parte da esquerda estava separada do resto por um bardo de varas, onde metia as duas cabras e os chibos, quando os havia. Não se podiam deixar à mercê dos lobos da serra, sempre esfomeados, e faziam estrume para estercar o milho e os feijões que enchiam o lameiro, no tempo bom.
O pai fizera a casa depois de comprar aquele bocado do Ribeiro Dom Bento ao Conde. E levantaram paredes naquela barreira que descia para o ribeiro. Foram anos de muitos trabalhos. Arrancavam a pedra no alto, à picareta. Não era muito difícil, pois as pedras estavam em camadas e bastava meter-lhes o bico. Depois, ele e o irmão punham-nas em cima da padiola e levavam-nas até ao pai, onde ele erguia as paredes. E fizeram a serruba das terras, sempre a tentar endireitá-las, para segurarem as águas da rega.
Nos tempos desses trabalhos, nem iam dormir à casa da Vila. Acomodavam-se pelo chão, cada um para o seu lado, quando, já noite cerrada, acabavam de cear os feijões refogados com cebola. De manhã, à primeira luz do dia, a mãe acordava-os para as sopas de broa com leite.
Num ano, andaram todo o verão a abrir a mina ao fundo da presa do ribeiro. Havia lá um gemedouro de água, mesmo nos setembros mais secos, quando o ribeiro já parara de correr há muito tempo, e o pai achou boa ideia explorar o nascente, na esperança de ter mais água para o renovo. Era lá que ia buscar a água para beber, muito fresca nos dias em que o calor abrasava. Entrava pela mina a dentro com a bilha na mão e ao fundo enchia-a, numa poça que ali tinham feito.
Quando casou, o pai deixou-o ficar naquela casa. Sempre tinha um telhado onde se abrigar e uma horta para ajudar no sustento. Ganhava o pão onde calhava, pois era homem para pegar em qualquer coisa. Os filhos foram nascendo e morrendo. Só vingou uma menina, no lugar da mãe, que morreu do parto. Criou-a e depois também ela se foi embora, para casa do homem dela.
Desde então vivia sozinho. Acabara por ficar sempre naquele palheiro, sem possibilidade de ter uma casa melhor e mais perto da Vila. E agora também já não valia a pena. Havia dias melhores e outros piores, mas não tinha posses, nem vontade de se mudar. Casar também não, já ninguém o queria e bastavam-lhe as recordações dos seus filhos desaparecidos e da companheira de tantas canseiras. A filha bem o chamava para o Sobral, mas mais valia ser-se desejado que desejar.
Falava com os seus botões, enquanto as cabras roçavam as ervitas ribeiro abaixo. Primeiro subira com elas pelos matos mais soalheiros, à espera que a geada derretesse nos sítios sombrios. Nestes dias tão pequenos, em que o caramelo nunca chegava a descongelar nalguns lados do vale, ficava-se por perto, sem se aventurar para os altos das Lameiras, onde havia sempre boa erva, mesmo no tempo seco. Mas esses pastos andavam bem guardados pelo feitor da Borralha, sempre faminto de agradar ao patrão.
Agora eram só ele e as suas cabritas. O cão morrera-lhe na primavera. Ficou-se em pouco tempo, a espumar pela boca. Um sofrimento horrível e ele sem poder fazer nada. Comera de certeza carne envenenada que os lavradores colocavam perto das covas dos lobos e das raposas.
Era véspera de Natal e mais uma vez ia passá-lo sozinho e sem filhós. A mulher nunca faltava com elas, mesmo logo depois de casar, ainda sem experiência nenhuma. Nos últimos anos, tinha sido a filha, mulher desembaraçada como a mãe. Num ano foi ajudar a tia e no seguinte já as fez sozinha. Por esse lado, o marido nunca teria uma pontinha de unha a apontar-lhe. E por outras razões também não, que mulher desenxovalhada como ela havia poucas.
Já anoitecia e o vento que soprava da Senhora da Orada deixava-o gelado. Encaminhou-se para casa, seguido das cabritas. Elas já sabiam o cantinho delas e o dono só teve de encostar a grade de paus. Antes, tirou-lhes um pouco de leite, que ia ferver no asado, ao lume. Seria o seu jantar de Natal. O resto ficava para os cabritos, a quem tirou os barbilhos, para se consolarem.
Acendeu o lume e sentou-se num banco, a aquecer-se. Pouco depois, o aroma do leite aquecido encheu a casita. Ouviu ranger a porta, só encostada. Foi fechá-la, julgando ser o vento. Mas um cãozito castanho recuou ao vê-lo, receoso da reação do dono da casa. E fitou-o com um olhar meigo e ansioso, abanando levemente o rabo.
O homem voltou para dentro, mas deixou a porta entreaberta. Fez umas sopas de leite e deitou um pouco numa tigela que levou à porta. Depois voltou para dentro, a cear.
Acabou de comer e veio à porta a recolher a malga. O cão ficou-lhe à mão e ele chamou-o para dentro. Não se mexeu e voltou para o lume. O animal espreitou várias vezes e o homem voltou a chamá-lo para dentro, uma vez com uma côdea de pão. O cão acabou por entrar e aproximar-se do calor. Passado um bom bocado, deitou-se junto ao fogo. O homem levantou-se, foi fechar a porta e estendeu-se sobre a palha. Antes de adormecer, sentiu o cãozito aninhar-se a ele. Sorriu consigo e afagou-lhe a cabeça. O cão respondeu com uma lambidela. Depois sentiu o calor do animal e adormeceram…

José Teodoro Prata

Notas:
- Em 1972-73, não consigo precisar o ano, houve um concurso de contos de Natal, no seminário do Tortosendo, onde eu estudava. Não ganhei e ainda fui gozado pelo meu prefeito, o Pe. Jerónimo, por ter comparado um cão ao Menino Jesus (Nesse tempo, ainda não havia Pai Natal). Criado entre cabras e cães, ele terá sido dos poucos a perceber-me. Por isso, o privilégio da chalaça. Este ano, impus-me o desafio de o reconstituir. O cenário é o mesmo (o Ribeiro de Dom Bento) e o tema também (a solidão e a necessidade dos afetos), o do Garrinchas de Miguel Torga, que eu certamente li nesses tempos.
- O cão é o nosso Rabomole, agora Saltitão, como a Libânia já deve ter desconfiado. No conto original, era um cão pastor alentejano, um dos que o Tio Albano tinha para guardar os rebanhos. O outro morrera envenenado, facto que me aconteceu na infância, a uma cadela nova, chamada Preta, que a tia Laura e o primo Zé me tinham dado.
- Todas aquelas terras do Ribeiro de Dom Bento e do Carvalhal Redondo eram do Conde de São Vicente, que também tinha o Pinheiro, a Oriana e muitas mais. Em meados do século XIX, tê-las-á vendido e um meu antepassado comprou o Ribeiro de Dom Bento, pelo menos uma parte. Esta história procura recriar o mundo dos últimos anos desse século XIX.
- O coucho tem forma de malga, formado pela cortiça que envolve um nó do sobreiro. O asado é um recipiente de barro, pequeno e com uma asa, que as pessoas antigamente tinham sempre ao lume, com água. O barbilho é um objeto feito pelos pastores, com um pau que se mete na boca do cabritinho, impedindo-o de mamar, preso à cabeça com tirinhas de cabedal. Comia-se num prato fundo de barro, tipo alguidar pequeno, chamado caçolo. A colher e o garfo seriam de ferro ou mais provavelmente de madeira.

5 comentários:

Ernesto Hipólito disse...

Na América Latina é costume dizer-se:- Non hables que estropeas.
Para não estragar vou só dizer: Quando um adolescente escreve um texto assim só podemos ter orgulho de, já mais idosos fazer parte do seu grupo de amigos.

E.H.

Anônimo disse...

Depois de um dia cheio de emoções, com a fogueira e a Missa do Galo, o chá com as filhós e as fatias douradas, ainda dei uma espreitadela aos Enxidros. Mal sabia eu o que me esperava. Ainda não ia a meio da história e já estava com a lágrima no olho. Comecei a lembrar-me de tanta gente que conheço que, depois de uma vida inteira de trabalhos, a única coisa que lhe resta é a solidão e a tristeza da velhice. O herói desta história ainda encontrou um cão para lhe aquecer o corpo e a alma naquela noite de Natal, mas muita gente nem isso tem.
Acho que esta história, para além de tantas outras coisas que nos revela, é uma bela metáfora para o dito “O cão é o melhor amigo do homem”. É quase assim que vejo a entrada do Saltitão e da Chica na minha família. Não nos cansamos de dizer que foi uma sorte termos encontrado estes amigos.

M. L. Ferreira

Anônimo disse...

Ainda não tinha lido esta história, já o EH me tinha falado dela onte à noite, na fogueira. Mas sem pormenores, como quando se faz uma sinopse de uma obra, mas não se quer deixar perder o efeito surpresa.
Ah! É aí que eu queria chegar! O que é que acho destas histórias? São pedaços da nossa humanidade. É, porventura, aqui, quando mais nos revelamos como pessoas! Talvez porque estamos esbulhados de tudo! E só encontramos solidão!
Mas é para estes que creio que Deus se fez no Menino Jesus.
Porque assim o Natal tem mais sentido!
ZB

Ernesto Hipólito disse...

Zé Barroso.

Na noite de Natal foste promovido a Homem Bom de S. Vicente da Beira.É preciso ser muito bom para aturar até ás três da manhã aquele indivíduo que nunca mais se calava!.
E que frio que estava!.
E.H.

Anônimo disse...

A propósito desta história, ontem esqueci-me de referir um conto do Eça que se chama "Suave Milagre" (que toda a gente, certamente, conhece). É de reler!
Abraços.
ZB.