terça-feira, 24 de março de 2015

Ora pro nobis



Há vários meses que tenho este texto mais ou menos aldravado, mas, como o Zé Teodoro gosta de apresentar estas coisas na altura certa, só hoje o envio. Além disso, acaba de passar à minha porta a Ladainha de Todos os Santos.
Não me vou referir à ladainha que se efetua hoje em dia, a fim de não ferir suscetibilidades. Só vou dizer que no ano passado, ao passar à minha porta, o Zé Pasteleiro, então o “Mandamás” da ladainha cantou: - Sancté Ernesto!!! Todos responderam: - Ora pro nobis.
Nas longas horas vagas que passei no Seminário, dei volta a um monte de livros e, para meu desgosto na altura, nunca consegui encontrar um santo com o meu nome. Hoje, já muito maduro, sei que nunca poderia haver um santo com o nome Ernesto. No capítulo dos pecadores já seria bem mais fácil.
Não sabendo dizer quando começou esta tradição, sei que é mais antiga que a casa do Coronel! (desculpem lá!). Tenho em minha posse três documentos manuscritos que são os livrinhos com que antigamente se fazia a ladainha. Destes, os dois mais recentes têm data de 17 de Fevereiro de 1918 e 18 de Fevereiro de 1918. O primeiro está assinado por Ernesto de Jesus Hipólito e o segundo por José Gregório Hipólito. Eram os irmãos mais velhos da minha avó Maria do Carmo, eram meus tios avós.
O terceiro documento parece ser muito mais antigo e também muito mais usado. Os pingos de chuva de muitas quaresmas fizeram dele um monumento. Não se preocupem que está guardado.
Uma das perguntas que me vêm nestas alturas é porquê, sendo esta ladainha uma cerimónia religiosa, nunca é realizada por um clérigo?
Esta cerimónia quaresmal era composta por duas orações que se interligavam. Numa procissão em que se percorriam os sete passos que ainda hoje se encontram espalhados pela Vila, a Via Sacra, e em que em cada passo se celebrava a passagem de Jesus por esse lugar e o que ali tinha acontecido. Ao percorrer o caminho entre esses passos, cantava-se a Ladainha de Todos os Santos. Era assim a ladainha. Ainda hoje é, só que naquele tempo esta cerimónia estava vedada às mulheres.
Realizava-se todos os Domingos da Quaresma, já à noitinha. Num tempo em que não havia televisão e as tardes de domingo eram passadas nas tabernas a virar latas de vinho, quando os homens iam para a ladainha, por vezes aconteciam cenas fora do vulgar.
O meu pai contou-me algumas situações que aconteceram e que ele presenciou, que no fundo podemos apelidar de engraçadas.
Os primeiros nomes que se cantavam  na ladainha eram:
- Sancta Maria
- Sancta  Dei Génetrix  (Geradora de Deus).
            - Sancta  Virgo Virginum  (Virgem das Virgens)
- Sancté Michael. E por aí adiante.
A cada nome que era cantado, os acompanhantes respondiam:
- Ora pro nobis.
Como o cantor de serviço raramente sabia Latim e por vezes lá para o meio da viagem já lhe começavam a faltar os nomes de santos,  tinha que usar a imaginação. Era então que as partes gagas começavam a acontecer:
Uma vez em que o cantor não se lembrava dum nome cantou de lá:
- Sancté é é é.
- Ora pro nobis.  Ninguém reparou!
Também o Sr. Estanislau, marido da Sra. Eulália do Café, uma vez aproveitou para se elevar a santo. Quando o cantor começou com o Sancté e hesitou um pouquinho, logo o Estanislau o ajudou lá do fundo cantando o seu próprio nome. Foi uma risota.
Chegou-se ao ponto de       ao passar à porta de uma mulher de vida fácil, que naquela altura  assistia cá em S. Vicente, um malandro se adiantar e cantar o nome dela como santa.
Mas a história mais engraçada que me contaram sobre a ladainha foi protagonizada pelo Sr. António da Marta e o filho, o Jaquim da Marta. O Jaquim sempre foi um grande sacanita, que Deus o lá tenha.
Numa das muitas vezes em que o Sr. António fez a Ladainha, o filho Joaquim estava à espera no quintal, por cima do  Passo que fica mesmo ao lado da casa deles, ali na Rua Velha. Quando a Ladainha chegou ao Passo, o Sr. António abre o livrinho e começa a cantar. O filho, que já tinha uma pedra na mão, deixou-a cair mesmo no centro do livro, que lhe fugiu das mãos, caindo no chão. O Sr. António olhou para cima e, vendo que tinha sido o Joaquim,  diz-lhe cá de baixo em tom ameaçador:
- Anda mê filha da puta que, quando chegar a casa, dou-te uma carga de porrada nos cornos!
Agarrou no livro e  meteu rua abaixo a cantar. Sancté…

E.H.

4 comentários:

Anônimo disse...

A distância entre o sonho e a realidade por vezes é enorme, mas a fé do Zé Pasteleiro é tão grande que ainda acredita na conversão do Ernesto, e por isso chama-lhe santo. Uma boa gestão de expetativas!
Eu também acredito. Para o ajudar deixo-lhe esta oração que, dizem, leva à salvação de quem a disser, principalmente agora na Quaresma:

Ave Maria Dolorosa
Tão perfeita como a rosa.
Quando Deus nasceu
Todo o mundo esclareceu.
Pastorinhos, bom dia!
Vistes por aqui passar a Virgem Maria?
A Virgem Maria por aqui passou
Com o seu livrinho na mão
Dizendo a sua oração,
Oração dos pelegrinos.
Quando Deus era menino
Andava de mar em mar
As três Marias a visitar
Com três paninhos de seda na mão
Para as cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo alimpar.
Não te deixes arrasar
Que estas são as cinco chagas
Por onde nós havemos de passar.
No alto daquela serra está um mouro,
Pergunta-lhe se ele é cristão
Se ele disser que não
Puxa pelo teu punhal
E atravessa-lhe o coração.
Oh! que talo tão pesado,
Tão rico perdão
Ter a minha alma tão limpa
Como as estrelinhas do céu.
Quem esta oração disser
Sete vezes no Encarnário
Outras sete na Quaresma
Quem a souber que a diga
Quem não a souber que a aprenda
Lá vem o dia do juízo
Que a sua alma se arrependa.

Esta oração foi-me dita por uma tia minha. Diz que a aprendeu com a dona Ludovina que tinha um livro com orações muito lindas.
Quanto aos santos invocados na ladainha, não sei se são os mesmos em todo o lado, mas numa publicação da C. M. da Idanha sobre as cerimónias pascais, encontrei o nome de todos. São quarenta e seis ao todo:

Santa Maria, Santa Madalena, Santa Isabel, Santa Teresa, Santa Rita, Santa Filomena, Santa Lúcia, Santa Josefa, Santa Anastácia, Santa Micaela, Santa Beselissa, Santa Martinha, Santa Verónica, Santa Inês, Santa Brígida, Santa Doroteia, Santa Margarida, Santa Perpétua, Santa Franciscana, Santa Tecla, Santa Catarina, Santa Mónica, Santa Joana, Santa Ângela, Santa Juliana, Santa Pulguésia, Santa Marinha, Santa Cristina, Santa Ana, Santa Marta, Santa Clara, Santa Rosa, Santa Eufémia, Santa Libânia, Santa Regina, Santa Eurélia, Santa Rafaela, Santa Gertrudes, Santa Cecília, Santa Bebiana, Santa Bárbara, Santa Leocádia, Santa Luzia, Santa Adelaide, Santa Fausta e Santa Francisca.

Estranhamente, são só mulheres. Haverá alguma razão?

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

Ernesto:
E quais são os santos (as santas) de São Vicente da Beira (dos teus livros)?

Anônimo disse...

Mais uma bonita e bem contada recordação das nossas vivências.
Há dias vi, à noite, numa cidade, os Passos da Via Sacra (com Padre). É claro que a maioria das cidades tem a sua parte antiga (o velho burgo) e também as novas e modernas urbanizações. Mas a Via Sacra que presenciei foi numa freguesia (dessa cidade), de ruas largas e grandes edifícios. Improvisando-se os Passos em qualquer esquina de betão! É também evidente que o valor da oração nestas grandes ruas é o mesmo em qualquer lado. Não é isso que está em causa. Porém, foi então que me lembrei daquelas velhas e estreitas ruas medievais de S. V icente da Beira e das Ladainhass (sem Padre) que lá se realizam desde tempos imemoriais! Pensei e quase me emocionei!
Estive a ver um pequeno livrinho que tenho (edição moderna), creio que muito usado. Está escrito em Português, com tradução para Latim, onde consta o 'Ordinário da Missa' e muitas orações. Lá está também a Ladaínha. O livro tem numa das contra-capas o chamado 'Imprimatur', a que se segue o nome e cargo eclesiástico de quem o autorizou. Portanto, é a lista oficial, digamos assim, dos santos, cujos nomes podem ser nomeados na Ladainha.
Claro que o Santo Ernesto não está lá. Mas existem um santo com este nome.
Directamente de um 'site':

There is very little known about St. Ernest; ... Ernest was the Abbot of the Benedictine Abbey of Zwiefalten in Germany.

Tradução (meu inglês macarrónico):
'Sabe-se muito pouco acerca de Santo Ernesto... Ernesto foi um Abade da Abadia Beneditina de Zwiefalten, na Alemanha.'

Verifiquei ainda que morreu em 1148 e a Igreja Católica celebra-o a 7 de novembro. E esta, ó 'Arnesto' ??!! Agora não comeces a festejar os teus anos 4 dias antes...Hã, hã...
E não vale a pena comparares os teus livros de há 50 anos com o Sr. Google!
Abraços.
ZB


Anônimo disse...

Também na minha terra há essa procissão mas na quinta feira santa e nem sendo orientada pelo pároco deixa de haver as peripécias de quem bebe um como a mais e se põe escondido a um canto a gritar a plenos pulmões o Ora per nobis ou a ralhar connosco de não respondermos suficientemente alto ou com o padre por espaçar muito os nomes dos santos na ladainha.
Lá serão efeitos de Baco mas não o santo que esse venera-se lá mais para sul, para os lados de benavente.