sábado, 20 de junho de 2015

Misericórdia



Ficava que tempos à varanda da sua casa, com o corpo colado ao gradeamento de ferro, a olhar os que subiam e desciam a rua, a toda a hora.
Não se esquecia das horas, porque elas badalavam-lhes aos ouvidos ao ritmo certeiro do relógio da torre da igreja. Mas era como se se esquecesse. Queria era que o tempo passasse, farto daquela casa, daquela rua, da sua terra.
Os pais tinham partido cedo e ele nunca chegara a casar. Por isso vivia sozinho na casa herdada e as fazendas fora-as passando a patacos, para a bucha de cada dia, mais roupas novas e umas botas, uma vez por ano.
A Câmara bem o ameaçava por via das contribuições da casa, atrasadas há que tempos, mas tomara ele umas moedas para encher a barriga com coisa que se visse. Já mal se lembrava do que era o mimo de uma febrinha de borrego, nas Festas de Verão. Valia-lhe alguma alma caridosa que lhe levava umas filhós ou uns docitos, no Natal e pela Páscoa.
Nunca gostara dos trabalhos do campo ou dos outros para que o pai o desafiava. Depois de ele fechar os olhos, ainda a mãe o ralou por uns tempos, mas também ela se foi e ficou sem ninguém que o chateasse. Vendidas as terras, já só lhe restava aquele teto que o abrigava do frio e da chuva, mas onde passava fome de cão. Por isso estava farto daquela casa deserta e daquele povo avarento.
Um dia de manhã, vestiu-se, fez a dejejua com o que havia, desceu as escadas, rodou a chave na fechadura da porta da rua e guardou-a no bolso. Depois desceu a rua, mais a outra rua, molhou a boca na fonte e não parou, sempre em frente, de cabeça baixa, macambúzio, como quem está de mal com o mundo.
Ficou por fora largo tempo, comendo o que lhe davam e dormindo onde calhava. Às vezes conseguia trato melhorado, porque fazia das tripas coração e por breves momentos arregaçava as mangas e era trabalhador. Noutras encontrava qualquer alma cristã que não media um homem pelo produto do seu trabalho.
Em certo tempo, a volta que deu levou-o às terras vizinhas de São Vicente, nem ele soube porquê. E deu por si a matar a sede na fonte e depois a subir as ruas e a rodar novamente a chave na fechadura da porta da sua casa. Subiu as escadas, abriu as portadas das janelas e da varanda, mas só encontrou a solidão que deixara ao partir. Atirou-se para cima da cama e deixou-se adormecer.
Acordou com pancadas na porta, já o sol entrava pela varanda. Espreitou lá de cima e inquietou-se com o chamamento da autoridade. Desceu as escadas e abriu a porta. Deram-lhe voz de prisão e só teve tempo de dar a volta à chave. Desceu as ruas que subira horas antes e depois seguiu para a praça, sempre atrás do oficial de justiça, escoltado por dois homens. Subiu o balcão da Câmara e na sala do tribunal o juiz mandou-o encarcerar, pelas contribuições em falta. Aparvalhado, arengou que não tinha posses, mas o juiz fez ouvidos de mercador e mandou-o entregar ao carcereiro.
Levaram-no para o balcão, mas entrou logo por outra porta. Depois abriram um alçapão e mandaram-no descer por uma escada como as da azeitona. Já no fundo, fecharam o alçapão e ficou no escuro, até que os olhos se foram habituando à pouca luz que escoava por uma fisga da parede. Ficou longo tempo de pé, depois acocorou-se a um canto, até que as pernas o obrigaram a sentar-se no chão térreo e frio.
Esqueceram-se dele naquela enxovia imunda. O único momento de vida era quando, em cada dia, se abria o alçapão e lhe gritavam para vir buscar a gamela. Depois, voltava a desesperança.
Um dia mandaram-no subir. O carcereiro ajudou-o a lavar-se e deu-lhe um jeito nas roupas. Depois levaram-no para o tribunal. Ouviu o que diziam dele: muitas dívidas, tantas que o valor da sua casa não chegava para as pagar. Que voltasse para a prisão, mas agora na praça, à vista do povo, para exemplo de todos.
Mas atiraram-no de novo para a enxovia. Afinal não era na praça, pensou, onde teria melhor ar, mais distrações. Mas, dias depois, o seu desejo realizou-se. Vieram buscá-lo e desceu as escadas do balcão. Virou à esquerda e estugou o passado, quase paralisado, com o que viu em frente à porta da sacristia da Misericórdia. Os guardas empurraram-no pelas costas, depois agarraram-no pelos braços, mas ele resistia, chorava, gritava. De nada valeu. Abriram a porta da gaiola de varas e atiraram-no para dentro. Depois fecharam-na com uma corrente, a cadeado.
Deixou-se ficar prostrado no pó do terreiro. Os transeuntes olhavam-no com olhar triste e temeroso, mas não paravam. Ele continuava estendido no chão, meio inconsciente, em estado de choque. Passaram horas, dias e noites e ele só recebia a visita do carcereiro, uma vez por dia, para lhe levar um caldo aguado com um naco de centeio. Depois alguns populares começaram a aproximar-se da gaiola, numa mistura de curiosidade e solidariedade. E uma mulher aparecia às vezes, escondida no xaile e no escuro da noite, a levar-lhe qualquer coisita para comer.
E assim se passou do tempo quente para o tempo frio. As chuvadas de outubro encharcavam-no e por vezes ficava repassado toda a noite, a tremer de frio. A tosse era cada vez mais funda, mas as autoridades passavam indiferentes aos seus pedidos de misericórdia. Começou a tremer mesmo quando estava enxuto e não fazia frio. Ficava tempos infinitos estendido no chão, às vezes em lama, sem saber muito bem se a sonhar ou acordado. E desesperançado, deixou-se acabar, sem um ai.

José Teodoro Prata


Nota:
Um dia, o João Paulino deu-me a ler a fotocópia de uma página de jornal,  com a história de um caso judicial passado em São Vicente da Beira, nos finais do século XIX. O autor era alguém da família Neto.
Contava o caso de um  homem condenado em tribunal, por dívidas ao Estado, a ficar preso na Praça, numa gaiola de paus, para exemplo dos demais.
A segunda metade do século XIX foi a da implementação do liberalismo em Portugal, o qual, embora defensor da liberdade e da igualdade, nem sempre cumpriu a fraternidade, submisso ao seu senhor mais poderoso: o dinheiro.  
Estava em construção a sociedade atual.
Tentei por vários meios conhecer mais a fundo esta história: procurei-a no jornal Reconquista, mandei recado a um antigo aluno descendente dos Neto e  tentei consultar o processo judicial, no Arquivo Distrital de Castelo Branco.  
Tudo em vão. O Arquivo Distrital não tem uma listagem sumariada dos processos judiciais e por isso só podem ser consultados por quem saiba exatamente ao que vai: nomes, datas, locais...
Mas a história nunca me saiu da cabeça e tentei agora reconstituí-la.

7 comentários:

Anônimo disse...

História exemplar, para aqueles tempos, mas também para os atuais. Não me custa a crer que seja verdadeira, mas, enquanto a lia, não conseguia deixar de pensar que podia ser uma boa metáfora para o que se passa atualmente na U E, com o problema da Grécia. Não percebo nada de política, mas acho que, apesar das razões ou falta delas, também agora não se cumpre a fraternidade, e os mais ricos continuam dominar e a humilhar os mais fracos.
Mas, no meio de tudo isto, o que mais me entristece é a posição dos representantes de Portugal que, em bicos de pés, se acham em posição de dar lições de moral aos outros países.
Gostei de ouvir um comentador político, a propósito da exigência de inflexibilidade de Cavaco Silva (o chamiço, como lhe chamava um colega/amigo meu de há muito tempo) para com a Grécia, dizer o seguinte: deixemos o presidente fazer óó…
É muito triste!

M. L. Ferreira

Ernesto Hipólito disse...

Oh Zé Teodoro:
Com esta deixaste-me um pouco atrapalhado. É uma história muito bonita (tinha que ser!), mas que a mim me despertou sentimentos opostos.Por isso tive que ler segunda vez e ler também o comentário da Banita. Depois fui conversar com o meu travesseiro para ter coragem de dizer o seguinte:
A Libânia tem razão no comentário que faz. Não há piedade por parte da justiça e este homem sofre essa falta de piedade de uma maneira extrema.Por outro lado e sendo nós todos pessoas de trabalho que pagamos todos os impostos e mais algum, temos um homem que herdou uma casa e fazendas mas não quis trabalhar para as manter e preferiu ir vendendo até ficar empenhado.Seria doente?.


Mais alcunhas:

Impisca
Jáia
Tatóla

E.H.

José Teodoro Prata disse...

Parece que o homem vivia na casa com balcão/varanda seiscentista, da Rua Manuel Simões (aliás, penso que a pessoa que deu nome a esta rua morou naquela casa, atualmente à venda).
Sei também que foi julgado por não pagar os impostos e que andou largo tempo por fora e foi preso quando regressou.
Há pessoas assim e nós conhecemos algumas. E não são doentes!
Esta história tem a virtude de não ser simples, de nos obrigar a refletir e a optar.
Por mim, o que há aqui de extremamente violento é um tribunal mandar fazer uma gaiola para expor na praça pública um homem com dívidas ao Estado, condenando-o a uma morte lenta e pública, para amedrontar o resto da sociedade.
Foi o regresso ao que de pior teve essa época que usamos como exemplo de barbárie, a Idade Média.
O autor da notícia do jornal estava ligado, de alguma forma, à justiça. Por isso conhecia o caso.

José Teodoro Prata disse...

Infeliz coincidência terem construído a gaiola em frente à varanda o tribunal, mesmo junto à Igreja da Misericórdia.
Acho que o atual papa elegeu a misericórdia como orientadora da prática dos católicos (pediu que os católicos dedicassem este tempo à misericórdia ou algo parecido).

Está estudado que os descendentes de várias gerações a viver em extrema pobreza são pessoas sem vontade, sem iniciativa, sem garra para encarar a vida. Conhecemos algumas dessas pessoas e eu, fora de São Vicente, tenho exemplos de crianças e adolescentes assim: não fazem mal a uma mosca, mas são incapazes de fazer o que tem de ser feito para terem alguma orientação nas suas vidas. Tornam-se indigentes.
Mas não terá sido o caso deste homem... Refiro estes casos, pois são os que conhecemos paralelos a este.

Ernesto Hipólito disse...

Parece o tempo da Santa Inquisição, tratar o homem como um grande criminoso ao ponto de o matar só por causa de dívidas. Ainda mais, expô-lo numa gaiola às intempéries é sadismo.
Estive a fazer uma ronda pela nossa freguesia e vi que de facto há várias pessoas assim; para elas a vida parece não fazer sentido e não se preocupam.

Alcunhas:

Casca
Terére ( Manuel). Oh Zé, vai-lho lá a terére (tirar). Cunhado do teu tio João Teodoro.

Já vai em trezentas e muitas e cada vez há mais dificuldade!.

E.H.

Anônimo disse...

Ser forte com os fracos e fraco com os fortes
Toda a vida houve indigência, mas também temos que ter cuidado com os actos que praticamos. Quem de nós nunca recebeu uma chamada telefónica para nos depositarem na conta uma certa quantia. (Pode utilizar o dinheiro onde quizer, como quizer...)
-Depois é que são elas, esse dinheiro que caiu do céu, mais tarde vai ser pago com lingua de palmo e meio. Podia citar exemplos de pessoas que fizeram créditos para fazerem férias, viagens, comprarem roupas caras...
Governar com a burra cheia, é mais dificil que gerir uma casa, uma nação com os cofres "tesos". Entraram milhões, foi gastar vilanagem, os ricos sabiam o que faziam, agora dominam, mandam, impoem, ditam as leis. A maioria dos governos estão de pés e mãos atadas, só que há paises e paises.
Os que fazem o "trabalho de casa" vão andando com a cabeça entre as orelhas,os que de alguma maneira se desviam do caminho traçado estão tramados. Fortes com os fracos
-Coitado do Zé Raimundo...
J.M.S

José Teodoro Prata disse...

O Expresso online tem, desde ontem, uma notícia sobre uma descoberta científica nos EUA que prova o que já se desconfiava: a pobreza afeta o desenvolvimento do cérebro das crianças. O resto, é consequência.