sexta-feira, 26 de junho de 2015

O linguarejar dos nossos avós


O nevoeiro cobria intensamente toda a vila, não estava capaz de se fazer fosse o que fosse, o fumo saia pelo telhado (telha vã).
Encostado à parede no lado direito da lareira um banco corrido, (era o banco do avô e do pai).
Os filhos ocupavam o resto do lar. A mãe quase não tinha tempo de se sentar, os afazeres domésticos estavam em primeiro lugar. A boxa era grande, boa lenha.
Fetxa a porta que vem frio. Mal mandado, metes a minha alma no inferno.
Ó mãe, ca grande garrôcha.
Mata-a. Onde é que tu vais ó homem.
Vou buscar um molho de chamiços.
Com um tempo destes! Só se está bem ao lume, está tudo encaramelado.
Vou botar a vianda ao bacorinho. Bebe o café, estás um melias.
A rebera leva tanta áugua, vai de mar a monte, já cobre as passadoras, a inverna tem sido grande, as terras estão encharcadas, as oliveiras de varredouro, se assim continua o tempo, apodrece a azeitona.
...Ontem caiu uma grande borrega na barroca, tenho que dizer ao capa burros que a vá levantar assim que o tempo melhorar.
Parece que estão a bater à porta, vai ver quem é.
É o Tota; entra ó Tonho, senta-te, queres comer alguma coisa?
O senhor Manel da Silva disse se podes ir à escola tirar umas chincas, chove lá como na rua.
Com um tempo destes não posso andar em cima do telhado.
Maria, vai buscar azete ao pote, onde rai se meteu... já foi pá  boa vai ela...
Onde é que andaste, com um tempo destes sua correona, toda a manhã a aboiar, a correr o ganau é para o que tens porte.
Ó mãe, deixe lá, estou cá com uma feneda.
Não sejas trogalha, és uma correona, metes a minha alma no inferno.
Ó mãe...
Cala-te, levas uma spapada. Vai ao scorero, traz uma chouriça que a havemos de assar, abre o arcaz e tira um queijo.
...Onde é que andaste?
Estive à porta da taberna do senhor João Côxo, a ver os homens a jogar ao noxo.
Não te quero lá; ó Maria, passou agora por mim o tonho dias racha, levava uma recheca.
Conchega o lume, que se apaga; a chouriça já está assada, quem é que quer a ourela!
Ontem alguns cachopos foram à marova, o dono viu, levaram uma incorredela.
Não têm nada que mexer no que não lhes pertence.

J.M.S

9 comentários:

Anônimo disse...

Olá, pessoal!
O que o JMS aqui escreveu em forma de um novelo de fios delicados, devidamente aproveitado, pode dar um fino pano para quem o possa aproveitar. Mas requer muita arte.
Quanto às alcunhas, nem vocês sabem o que me tenho divertido ao ler as vossas notas em forma de comentário à lista publicada no dia 12 de junho! Para já, acrescentaram imensas!
Mas é complicado e começa logo com a grafia das palavras: será “Cifrones” (como eu escrevi) ou “Sifrones”? Depois, também fiz asneira quando decidi escrever algumas alcunhas em linguagem corrente ou local. Por exem., "Sevelo" e "Sovelo" (de "Sovela", instrumento de sapateiro); ou "Incoreto" (linguagem local) que deriva de "em courato". Esta alcunha advém de a pessoa em causa andar a tirar pássaros em courato dos ninhos, isto é, sem penas (éramos muito malandros!).
Dou a definição de “alcunha” que vem no dicionário Priberam da Língua Portuguesa (net): “Epíteto geralmente fundado numa particularidade física ou moral do indivíduo ao qual se atribui.”
Não li nada de específico sobre o assunto (das alcunhas), mas o autor desta definição quando emprega a palavra “geralmente” deixa logo aberta a porta a outras hipóteses. E, de facto, basta-me a nossa rica linguagem regional e local para dizer que não a considero satisfatória! As alcunhas podem ir além da pessoa física ou moral, ou não?
A alcunha, afinal, também pode ser fundada numa circunstância concreta (além de física e moral) que se relacione com a profissão, com o lugar onde reside ou onde nasceu ou com o nome família que, conjuntamente ou não com o seu nome próprio, do registo, a pode identificar ou individualizar?
Estou crente que sim! Só dois exemplos: “Zé Alfaiate” e “Zé Padre e Músico”. Referem-se profissões ou atividades que tiveram estas pessoas. Ora, “Alfaiate” e “Padre e Músico”, aqui, são ou não alcunhas? Acho que ninguém poderá duvidar disso! Mas, se calhar, noutros casos, não serão! Tudo depende da cimentação, por um lado, entre a pessoa e esse nome e, por outro, da validação e assimilação que dela fez a comunidade!
Mas, depois, vêm todos aqueles casos duvidosos em que a alcunha ainda não é generalizada porque são apenas expressões usadas em conversas (logo, ainda não há alcunha); ou aqueles em que o nome de família não é bem uma alcunha (por exem., Chico da Áutua, será ou não?); noutros casos é uma questão de erro de pronúncia de um nome; e será que o lugar onde a pessoa reside e pelo qual é conhecida pode mesmo considerar-se alcunha? São só dúvidas!
O que significa que cada um de nós pode entender de uma forma e o outro de outra! Por isso é que têm de se fixar critérios. O resultado, esse, terá apenas e sempre, o valor delimitado e previamente estabelecido por tais critérios. É próprio das ciências sociais. Consequentemente, et pour cause, nenhuma lista destas, poderá ser publicada em “estado de pureza”.
Consenso, precisa-se. Mas, por ora, está feito muito do trabalho de sapa com todos os nomes que já alinhámos. E isso já é alguma coisa. O mais se verá!
Ó ZT: falta o “Talanga”, “do Forno”, “Tintelau” , “Farinheiroa” que indiquei num comentário à listagem.
O que li são muitos pormenores. Mas não vi tudo. Em relação ao “Sabastiena” (tal como era pronunciado), não se trata de uma mulher. “Sabastiena” era a deturpação ou corrupção de Sebastião, alcunha pela qual era conhecido o pai do Francisco Jerónimo (que tinha uma oficina no local onde hoje é o café do Amoroso). Esta alcunha creio que cabe facilmente na definição acima indicada, pois trata-se de uma depreciação pessoal feita pela malandragem, em face da sua postura física, atitude um pouco boçal e talvez um pouco desajeitada. Por isso julgo de manter na lista! Ele, “Sabastiena” que era uma excelente pessoa! Deus o tenha em descanso!
Quanto a critérios: na dúvida acho que poderias manter a maioria das alcunhas, ainda que cum grano salis, porque elas nada nos pesam, até que se estabeleçam critérios mais adequados.

Abraços.
ZB

José Teodoro Prata disse...

Zé Barroso:
Tens razão em quase todos os casos.
Mas:
Chico da Áutua porquê? Quem era a Áutua? Porquê Áutua?
Zé Raimundo é nome ou alcunha?

Acrescentei Faminto, com origem na ganância por uns caminhos lá dos altos, há uns anos.

Acho que podíamos escrever a origem de algumas alcunhas, embora, tratando-se de um meio pequeno, acho que quem escrevesse devia ter a autorização dos visados.
Nem todos aceitam bem a alcunha... Por isso nunca pedi à Luzita Candeias para publicar a listagem dela. Mas se calhar eu sou demasiado cuidadoso, porque esta iniciativa do Zé Barroso resultou em cheio!

Quanto ao texto do Zé Manel, acima apresentado, tem que se lhe diga. Poucos são os que se arriscam a reconstituir os falares locais. Conheço apenas dois ou três autores que o fizeram, nos seus romances.

Anônimo disse...

ZT:
Áutua era a mãe dele, Chico. Chamavam-lhe a Ti' Áutua. Não me lembro de ter ouvido este nome noutra qualquer circuntância. Só nesse caso.
Lá está: se afastarmos todos os nomes de família por não os considerarmos alcunhas, este teria que sair. Mas, como disse, acho que as poderíamos manter todas, até decidirmos os critérios. Temos que pedir opinião fundamentada aos interessados que serão, pelo menos, todos aqueles que enviaram alcunhas para o blogue. Após a aplicação destes critérios é que se vê as que devem ficar na lista ou não.
Por sua vez, o Chico da Áutua era pai do Manuel Pedro a quem nós chamávamos "Mané Canino" (pequenino), devido à sua baixa estatura. A este propósito, também vi na lista (além de Canino), justamente, "Pequenino", não sei se se refere à mesma pessoa. Se for o caso, uma destas (alcunhas) teria que sair. E talvez o Manuel Pedro nos possa dizer algo acerca do nome da sua avó!
Em relação ao Zé Raimundo, acho que é alcunha. Mas o melhor era a pessoa que a enviou pronunciar-se, sem referir o nome próprio. Porque embora sejam dois nomes de pessoa (nomes próprios), julgo que "Raimundo", aqui, é um depreciativo (que acrescentaram) e então já será alcunha. As dificuldadees até aqui se sentem, pois, em certos casos, só a resenha história da alcunha poderá defini-la.
Quanto à origem das alcunhas, já tive esse trabalho parcialmente feito, mas assim iria identificar pessoas, o que não se pretendia. Além disso, tive as alcunhas escritas em linguagem corrente e, à frente, a pronúncia local. Mas apaguei tudo porque não tinha autorização dos visados e demorava mais tempo.
Mas, caso concordem, podemos então, desde já, escrever todas as alcunhas em línguagenm corrente e, à frente, escrevê-las na linguagem local. Contar as origens de cada uma, não é viável porque isso tem outras implicações. O mais que se pode fazer é contar a origem das que se conhecem, sem referir os nomes das pessoas. O resto se verá com mais calma.
Abraços.
ZB









Anônimo disse...

Um bom ponto de partida para a elaboração de uma lista de termos e expressões só nossas! Algumas nem eu conheço. Garrocha e melias é o quê?
Quanto às alcunhas, o que para aqui vai! Uma tormenta delas, já… E, enquanto não se definirem critérios consensuais, penso que devemos continuar a escrever todas as que nos vierem à memória, e depois filtramos.
E já agora, será a mesma coisa dizer Luís Lérias e Maria José do Lérias? É só um pormenor sem importância ou as mulheres não herdavam tão facilmente a alcunha da família?
Sobre a origem das alcunhas, se calhar nem sempre será muito abonatória das qualidades físicas ou de carater do visado, mas, ainda assim, devia ser investigada. Contaram-me ontem a do Enxofra, e, sendo triste, deve ser um bom retrato daquela família.
Por fim, um pequeno trecho do conto O Artilheiro do Miguel Torga que fala da importância das alcunhas, e que talvez nos ajude um pouco:
…«Se perguntarem em Malhão o nome do autor de todas as alcunhas que no povo definiam quem tinha definição, ninguém sabia. A crisma nascia anónima e certeira, englobando numa só palavra um mundo de realidades contraditórias, admiráveis e ridículas, bonitas e feias, dignas de indulgência e merecedoras de escárnio. A história humana da terra estava inteira nos apelidos dos seus filhos. João, António, Francisco, Carlos da Lousa ou Joaquim da Fonte individualizavam a gente, mas não testemunhavam vida a acção. Já Fogo-Morto, Nalguinhas, Chega-me-Isso e Pé-Tolo exprimiam virtudes e defeitos concretos que todos conheciam. Eram instantâneos onde a aldeia podia ver os seus títeres ao natural. Às vezes o apodo não tinha aparentemente qualquer significação. Lafunda, por exemplo, não queria dizer nada. E, contudo, nenhuma palavra podia retratar tão completamente a pessoa atarracada, frascária e casamenteira da Gregória.»

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

Zé Barroso:
Eu é que acrescentei o Pequenino, pois, embora conhecesse mal o Zé Pequenino (era um pouco mais velho que eu), fui professor da filha dele pouco depois de ele falecer e por isso me lembrei dele.
Penso que as designações tipo Chico da Áutua (se Áutua é nome próprio ou apelido familiar) não são alcunhas, pois apenas indicam a origem familiar, sem recorrer à designação da pessoa, recorrendo a outras caraterísticas: físicas, geográficas, profissionais, psicológicas... Acho que o trecho do Miguel Torga segue também esta linha.

Libânia:
Luís Lérias é alcunha do Luís, enquanto Maria José do Lérias informa que a Maria José é filha ou mulher da pessoa que tem por alcunha o Lérias. Claro que já percebeste isto! No primeiro caso estamos a tratar uma pessoa pela alcunha e no segundo não, pois apenas estabelecemos a relação familiar de uma pessoa com outra de alcunha Lérias. Exemplo: eu sou o Zé Bravo, mas também posso ser tratado por Zé do Bravo. Quanto à herança, de facto parece existir uma herança de género: os filhos rapazes herdam mais facilmente a alcunha do pai e as filhas raparigas a da mãe, mas a regra não é rígida.

Anônimo disse...

Caros,
Vai longa a lista, por bem. Não sei se me passou algum, mas deixo o registo de uma tia-avó a que os cachopos chamavam, em exercício assassino, tia Maria do Cu. E de um colectivo: As três Pernas do Banco.
JMT

Anônimo disse...

...continuando; um incoreto, na linguaguem popular vicentina é alguém que está despido, nú, neste caso passarinhos.
A tia "Auta"! sempre a tratamos assim, estava casada com o tio Francisco Pedro, irmão do meu avÔ Zé.
O Zé Raimundo foi um vicentino, (latoeiro de profissão)A certa altura da sua vida deixou de pagar seus impostos,o fisco penhorou-lhe a casa, agarrou nos "tarecos" e instalou-se na praça onde se aboletou
Termiou seus dias no cabanão.
Quanto ao significado das palavras do texto:-aqui vão elas.
-Boxa.....lume grande
-Garrôcha.....barata
-Chamiços....lenha miuda
-Encaramelado.....congelado
-Melias.....que come mal, enfezado
-Borrega.....muro de suporte de terras,com a chuva esbarronda-se
-Correona.....andar na boa vai ela, andar na rua
-Aboiar....o mesmo que correona, andar por ai sem destino...
-Correr o ganau....Correr a saquita, rua acima, rua abaixo
-Fenéda....fome
-Trogalho....troca tintas, desajeitado
-Rechéca....bebedeira
Acrescento à lista das alcunhas mais uma: Queremos Deus.
Por hoje fico-me por aqui.
J.M.S

José Teodoro Prata disse...

Zé Manel:
O Zé Raimundo é a personagem da minha história "Misericórdia"?
Não é como eu a romanceei? E não me desancaste?
Não é que seja importante escrever histórias fiéis à realidade, antes pelo contrário, mas eu gosto de saber o que é real e inventado e às vezes julgo que é real o que é ficção!

Anônimo disse...

Realmente a personagem da "tua Misericórdia" só pode ser o Zé Raimundo,mas como quem conta um conto acrescenta sempre mais um ponto...
Na verdade, Zé Raimundo era um pobre diabo, a certa altura deixou de pagar a contribuição da casita, as autoridades não estiveram com meias medidas, venderam-na
-"Ouçamos;" Puseram-no ao troço de uma árvore (que já não existe)na praça, com umas arcas que ele tinha, tiveram dó dele, levaram-no para o cabanão
-O Chéla e o Chico calmão atentavam-no. Dizia o Chico calmão:-ó pacao, hoje é o fim da tia vida-
-Começava a gritar; aqui del-rei.
J.M.S