quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Crenças Populares II

O menino que chorou antes de nascer

A fotografia não é famosa, mas vê-se bem o acrescento na altura da porta e do telhado.

Esta casa, que agora serve de palheiro e arrecadação, tem muito para cima de cem anos e, diz quem sabe, foi uma das primeiras do Casal da Fraga. Ao princípio tinha o chão de terra e era pela metade do que é hoje: em pé, quase que se batia com a cabeça nas telhas; a cozinha e o quarto tão acanhados, que uma pessoa com os braços abertos chegava dum extremo ao outro; a porta era tão atarracada que, para entrar ou sair, um homem tinha que se agaixar. Foi nela que o Ti Guilherme e a mulher viveram no princípio de casados e lhes nasceram os primeiros filhos.
Um dia, andava a ti Mari’Zé grávida já de fim de tempo do primeiro, e entra-lhe uma vizinha porta adentro:
- Ó Maria!
- Quê?
- Atão, ele é menino ou menina?
- Ó mulher, e como é que tu queres que eu saiba, se ainda o aqui trago?!
- Ainda mai essa! Atão se eu ia a passar e ouvi um cachopinho a berrar! Não sejas intrujona e amostra-o lá, que eu não to como nem lhe faço mal, que não sou dessas!
- Tu não mangues com coisas sérias, qu’ ele inté é pecado! O que tu deves ter ouvido foi algum gato a miar…
- Ai isso é que não foi! Amostra-me lá a barriga.
A Ti Mari’Zé repuxou um pouco a saia rodada que lhe escondia a gravidez, mas mesmo assim a outra não quis crer e foi espreitar debaixo da cama, não fosse terem escondido a criança por ter nascido defeituosa. Só depois é que abalou, mas ainda de ouvido à escuta, desconfiada.
Quando ficou sozinha, a mulher deitou as mãos à cabeça e amaldiçoou a hora em que a vizinha lhe passou à porta. E logo aquela calhandrona dum corno, que ainda o não tinha ouvido aqui e já estava a badalá-lo além! É que ela também tinha escutado o filho a chorar-lhe na barriga, mas lembrava-se bem das palavras da mãe que a tinha avisado de que se algum dia isso sucedesse, não se apoquentasse: era sinal de que o menino vinha com um dom raro e podia até ser alguém na vida: endireita, vedor, adivinho, ou capaz de curar males de inveja…. Mas que guardasse segredo porque se mais alguém soubesse, o dom perdia-se e até podia acontecer uma desgraça.
O menino nasceu passados poucos dias; forte e lindo como um anjo. Mas, ainda com poucos meses, uma das tias pegou nele ao colo e, de tantas voltas lhe dar a mirá-lo, deu-lhe cabo da espinha. Ainda o levaram ao endireita, mas o conselho que ele deu foi que o levassem para casa e tivessem paciência, porque aquele não lhes ia comer muito pão…

M. L. Ferreira

4 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Será que os bebés choram antes de nascer? Ou a barriga da mãe é tão acolhedora que lá não se conhece a dor?
A ciência é de facto a última fase da evolução humana! Tão nova e tão segura que esta mentalidade do sobrenatural ainda é um importante recurso dos homens para apoio nas suas fragilidades. Quase diria que a ciência, rigorosa e neutra, é quase alheia à natureza humana. Isto talvez porque os vários milhões de anos que já leva a evolução humana tiveram apenas por companhia o sobrenatural. A ciência é uma novidade que surgiu apenas "ontem".

José Teodoro Prata disse...

Quanto ao Casal da Fraga, de facto a atual urbanização é muito recente. Há pouco mais de 200 anos, apenas lá residia uma família (Fraga/Jerónimo) e o Casal dos Ramos era uma quinta, sem residência permanente do rendeiro.

Anônimo disse...

O comentário do José Teodoro sobre o Casal da Fraga fez-me lembrar uma conversa a que assisti há tempos entre duas moradoras do Vale de Figueira. Dizia uma delas que um rapaz de S. Vicente, que até é professor em Castelo Branco, lhe tinha dito que a terra dela não teria mais que duzentos anos. A outra, meio indignada, defendia que não senhora, que o Vale de Figueira era muito antigo; que até se dizia que o primeiro homem a ir para lá viver era de muito longe e tinha lá ido parar por ter matado um pito. Que a dona do pito fez queixa dele à autoridade e a sentença foi a condenação ao degredo para um sítio onde não pudesse ouvir galo nem galinha a cantar, nem sino a tocar. Diz que o trouxeram para os Torneiros; mas como aquilo era lá numa barroca funda, com fragas de meter medo, o homem foi descendo e veio parar a um sítio onde pôde fazer uma cabana para dormir e uma hortinha para comer. Depois arranjou uma mulher para ter companhia e nasceram-lhes alguns filhos. Os filhos casaram, fizeram outras casas, e foi assim que terá nascido o Vale de Figueira.
Rematava uma delas que foi assim, também, que terá nascido o mundo…

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

O rapaz de São Vicente, professor em Castelo Branco, posso ser eu, pois tive uma conversa sobre o assunto, no Vale de Figueiras.
O Vale de Figueiras era, até finais do século XVIII, um casal de algumas casas (4 famílias residentes, na segunda metade desse século), associado à Partida, em tudo: impostos, justiça...
Pouco antes de 1800, cresceu muito, o que se pode comprovar pelos registos paroquiais que tenho publicado.
Foi uma situação parecida à do Casal da Fraga que no século XVIII só tinha a família Fraga a morar (para além dos rendeiros do Monte do Surdo).
Até 1800, poucas famílias residiam fora das povoações, por razões de segurança. No antigo concelho, contavam-se pelos dedos: Casal do Lopio (Barbaído), Casal do Pisco, Casal da Fraga e Senhora da Orada(reconstruído cerca de 1700). O Casal do Ramalhoso (Sobral do Campo) não entra nesta contabilidade, pois teve uma evolução inversa: no século XVIII tinha quase uma dezena de moradores e depois extinguiu-se.