sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

À volta dumas castanhas


(…) No ar pairava o cheiro a castanhas assadas, as trempes suportavam o assador de barro que as ia assando. De vez em quando ouvia-se um estalido, era uma castanha que rebentava, não tinha levado o corte e inchava. Às vezes fazia-se propositadamente e de vez em quando uma explodia nas mãos ou rebentava na boca, todos se riam.
- É com grande satisfação, alegria e prazer que vos recebo na minha humilde casa; espero que se sintam confortáveis durante o nosso serão.
- Meus filhos, fiz questão de comparecer, apesar dos muitos afazeres que tenho - Governar o Universo não é fácil-:deixei o Pedro tomando conta…
Sendo assim, e antes de entrarmos no assunto que os trouxe à minha casa, é com grande prazer que que vos ofereço estas castanhas acabadinhas de assar acompanhadas com jeropiga oferecida pelo nosso amigo Pensamento, espero que esta reunião seja a primeira de muitas…
- São boas; a jeropiga, uma pomada… Costumamos dizer, “mesa levantada, companhia desfeita”. Connosco não vai acontecer, demos início ao serão, passo a palavra ao nosso Criador.
- Meus filhos, não me vou alongar, é um enorme prazer estar aqui nesta noite fria com tão ilustrada companhia, vejo o primeiro Homem e a primeira Mulher. Apesar de me terem desobedecido nunca os abandonei. A Cobra aqui presente manhosa, sub-repticiamente tentou-os e eles não resistiram, a caixa de Pandora abriu-se… vejo a Virtude, a Paciência, a Verdade, a Prudência, lado a lado com a Mentira, o Refilão, o Orgulhoso, o Vaidoso… e todos vós: quero recordar-vos aqui e agora. Sois meus filhos, uns seguiram o caminho da justiça, da retidão, da paz e do amor, há os que enveredaram por outros rumos, outros caminhos. A esses estou sempre disposto a perdoar e a recebe-los quando quiserem regressar ao meu convívio
Todos vós, certamente tendes algo a dizer, por isso não me quero alongar…
- Pouco ou nada temos a acrescentar àquilo que disse nosso Pai, deixo somente um repto a todos os presentes; é o seguinte: Antes da Tentadora “que se encontra enroscada naquele caibro” tínhamos uma qualidade de vida excepcional, não necessitávamos de nos preocupar com coisíssima nenhuma, nada nos faltava, a felicidade era total. Doença, frio, calor, medos…eram desconhecidos, não existia passado nem futuro, temores, inquietações, receios ou sobressaltos, não era necessário medir o tempo, nossa alma exultava de contentamento, de júbilo, tudo fluía com normalidade, nunca nos passou pela cabeça aproximarmo-nos da árvore, para quê!... Naquele fatídico dia tudo se desmoronou, aquela que está além manhosamente deu-nos a volta.
- Abri-vos os olhos: verdade! A ciência, a aventura, as descobertas diárias e tudo o mais que conheceis. À vossa frente surgiram uma panóplia de coisas que até aquele momento eram desconhecidas, a vossa inteligência passou a ter horizontes mais vastos., com essas descobertas e novas realidades passaram a poder optar por aquilo que vos é mais favorável.
- Falas bem, mas antes de tu nos tentares não precisávamos de nos preocupar com nada; o mundo encontrava-se à nossa disposição, entendíamos os animais, eram nossos amigos; a partir daquele momento passaram a ser nossos inimigos, para sobrevivermos num mundo hostil, passámos a trabalhar, a arranjar artimanhas…
A vida a partir desse momento começou a ter outro sentido para vós, é ou não é verdade! Sabe bem ver o vosso trabalho recompensado. Através do esforço tirais da terra a vossa alimentação. Quando os bens vos caem de mão beijada…
Era uma realidade desconhecida para nós, portanto não nos fazia falta.
Faz-nos alguma falta o que será real daqui a duzentos anos! Certamente não, não sabemos nada sobre essas realidades futuras. Se não tivesses aparecido para nos tentares, o mundo terreno seria bem diferente, mas pronto.
- Estou cá com uma moleza!
- És assim, mole. Deixem a Moleza em paz, não tem culpa, nada a fazer, é a sua natureza. Reparem na Apatia, estão bem uma para a outra completamente nas nuvens: não dizes nada! O que é que quereis que eu diga? Escuto-vos… Pareces uma pasmada.
- Não digas mal, é uma pobre de Cristo: não se compara à Vontade, juntamente com a Força de vontade não lhes escapa nada, juntas vencem os perigos que encontram pelo caminho. Não é bem assim, às vezes a vontade que tenho para realizar algo não é nenhuma, sou obrigada. Força, quantas vezes te usam para destruir … Quando me junto ao Fogo levo tudo à frente.
- Tenho estado pacientemente a escutar-vos, concordo com quase tudo o que ouvi, mas …
Adão e Eva, não tiveram culpa daquilo que aconteceu, se nosso Pai quisesse teria impedido, não o fez. Julgo que o mundo seria uma pasmaceira, não havia incentivos para nada, as coisas estavam à mão de semear, com a Tentadora todos nós passámos a ter que lutar pela vida. A Moleza é assim porque é; a Apatia igualmente. Tudo o que existe tem a sua importância, é uma questão de escolha. Vocês não imaginam a paciência que tenho tido para conseguir compreender a atitude que teve um dos vossos filhos, o Caim. Aquela inveja toda, tanto ódio de estimação acumulado que descambou numa morte terrível, desde o princípio do mundo, o Homem nunca se entendeu, está no sangue.
Para terminar, queria deixar pairando um ponto de interrogação: ainda não há muito tempo um investigador chegou à conclusão que o Homem descende do macaco. Que tendes a dizer sobre isso?
- Sabemos que a vida apareceu primeiramente nas águas. Fomos moldados com terra e água, então…
A Mentira pediu para falar: cá para mim tudo isto é um grande mistério, todas as coisas viventes ou não tiveram que ter um inventor, o autor é a Luz brilhante que nos tem acompanhado nesta tertúlia, só Ele é o Senhor, o criador de todas as coisas.
A minha alma está parva, o Mentiroso a falar desta maneira. Não dizeis que se uma pessoa quiser pode-se modificar! Deixem-se de tretas; Amigo, ainda há para aí umas castanhitas! A jeropiga é cá uma pomada…
Já passei pelas brasas, não tenho paciência para vos aturar, só me sinto bem quando estou a refilar, discordo de tudo o que ouvi, é a minha natureza. Ó Refilão, porque não experimentas imitar a Mentira…
- É uma fraca; onde é que já se viu a Mentira dizer verdades? Vão ver, à primeira cavadela, minhoca.
A Verdade dói; é como um punhal cravado no corpo, mas, gosto das coisas limpas, com lisura, sem qualquer alinhavo ou remendo, sou a Verdade. Quem diz a verdade, não merece castigo. Ser verdadeiro é ser transparente, sem rabos-de-palha, a verdade acima de tudo. Estais para aí com essas lucubrações todas, mas se eu quiser acabo com muitos de vós num instante, é só apagar a Memória e já está.
- Ó Alzheimer, deixa a Memória em paz, mete-te na tua vida, trata dos teus assuntos, já viste o mal que podes fazer à humanidade se quiseres? Deixa as pessoas sossegadas até ao fim dos seus dias, os estragos que podes causar são irreversíveis, não têm retorno. Nunca entraste certamente num lar da terceira idade onde vivem os nossos maiores, a maior parte daquelas pessoas estão à espera que a Morte chegue, não sabem onde se encontram, não conseguem cuidar de si, onde as sentam, ficam: uma tristeza. Entra numa dessas salas, depois conta-me o que viste.
- Sou assim
- Podes-te modificar.
- Isso não, és tão ou mais refilão que o Refilão, és um rufia.
Sei que um dia o Homem me vencerá, mas enquanto esse dia não chegar continuarei a fazer das minhas; a Memória que se cuide.
- Já viram como ele é!
Não há nada a fazer, temos que ter paciência e esperar que o Criador ilumine o Homem para que ele possa descobrir a cura e o afastar de vez….
Agradeço a presença de todos, principalmente a nosso Pai.
O ambiente da tua casa, Amigo, inspira-nos. Venham ver o espectáculo, a neve cai, a paisagem está imaculada.
- Antes de partir, peço que continueis a confiar em Mim, a minha misericórdia é infinita. Amo-vos.
Olhem; partiu
Assim Seja.


J.M.S.

3 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Grandes reflexóes filosóficas, nesta série de textos do Zé Manel!
É preciso ter chegado à idade (bem) madura da vida, para produzir semelhantes pensamentos. E ter estas preocupações.
Um lado do autor que eu desconhecia.

Anônimo disse...

O JMS está feito num ficcionista!
Pôs a Vontade, a Mentira, a Verdade, a Memória, etc, a falar à volta de um magusto, em casa do Pai. E foi capaz de dar ritmo e despertar interesse no leitor pela escrita produzida, onde até um certo humor é perceptível e nos surpreende.
Tudo isto, ao mesmo tempo que põe em relevo muitas das grandes inquietações da espécie humana.
Está muito marcado pela filosofia e cultura greco-romana e judaico-cristã. Eu também estou! Mas, afinal, não estamos todos?! Muito bem!

Abraços.

Zé Barroso




Anônimo disse...

Metáfora ou alegoria? A verdade é que este texto nos confronta com inquietações que se nos colocam frequentemente: o livre arbítrio; a verdade; o sentido da vida; o valor da ciência; a liberdade; a ética; o fim…
Valham-nos as castanhas e a jeropiga!

M. L. Ferreira