quinta-feira, 2 de junho de 2016

1895


1895, setembro; as parreiras deixavam ver entre a folhagem belos “gachos” de uvas prontos para serem colhidos, “algumas com muita parra e pouca uva”, as festas de verão estavam à porta; quarta-feira; lavradores e camponeses, começavam a faina, “embora alguns já andassem vindimando”.
Na Fonte Velha junto ao chafariz dornas, pipos, tonéis eram tratados com água para as aduelas incharem e o vinho novo não vazar por alguma frincha.
A praça municipal fervilhava de munícipes que vinham dos mais recônditos lugares para tratarem de assuntos inerentes às suas vidas, pagar a décima ou fazer compras no comércio que a circundava.
Ao fundo da praça ouvia-se o barulho cadenciado do martelo batendo na bigorna, ferrador não tinha mãos a medir ferrando as alimárias. O céu azul começou a toldar-se de nuvens escuras, grossas pingas começaram a cair, a poeira da praça num ápice se transformou em lama, a cachopada corria descalça lapacheirando-se uns aos outros.
Um cidadão com um saco na mão subiu o balcão da cadeia como habitualmente, entrou na câmara, entregou-o e saiu. Todos os dias fazia o trajecto S. Vicente, Castelo Novo à tarde; no outro dia de manhã regressava. Comboio levava e trazia as cartas, encomendas e todo o género de valores.
Uma carta chama a atenção ao presidente da câmara, “vinha do governo” ao lê-la, seu rosto ficou branco como a cal. Estava sonhando, só podia; dentro vinha uma cópia do diário do governo que suprimia o concelho, a chuva continuava a cair, o céu tristonho parecia querer comungar da mesma desgraça, o martelo continuava a bater na bigorna, as festas estavam à porta, o povo não queria acreditar, os principais monumentos da vila cobriram-se de faixas negras. “ o escudo que encima a velha fonte ainda se podem ver os pregos que serviram para o tapar com um pano preto, em sinal de luto”.
Ganhões atravessavam a praça transportando dornas cheias de uvas para serem desfeitas nas adegas. Os sinos dobravam, as pessoas choravam, a autonomia municipal deixou de existir.
A partir daquele momento a vila passou a ser uma simples freguesia sem qualquer poder administrativo. Depois; bem, depois, começou a debandada dos funcionários, a partida de muita gente para outras paragens, a vila a começou a fazer uma longa travessia no deserto. Durante muitas décadas o marasmo, o esquecimento, a apatia foram os “donos e senhores do burgo” sessenta e três anos depois a casa da câmara foi restaurada. As sonaves, os caibros e as telhas viam-se, não havia forro, os pardais e as andorinhas na primavera esvoaçavam fazendo seus ninhos nos caibros, de vez em quando uma chinca obrigava os alunos e terem que mudar as carteiras para que a água não caísse em cima das cabeças, os espaços onde outrora existiram repartições passou a haver jovens estudantes. Cada sala possuía duas classes; primeira com a terceira e a segunda com a quarta classe. Para além do quadro negro de ardósia na minha sala existia junto à janela um ábaco, as andorinhas e os pardais sobrevoavam o espaço chilreando e nós aprendíamos o bê á bá através de uma grande senhora, a professora dª Susana. Ao cimo do balcão da cadeia existiam duas portas, uma dava acesso directo à sala do antigo tribunal.
Com a remodelação do edifício essa porta desapareceu, a Domus foi restaurada, levou sobrado novo, forro, retretes,” um luxo”, salamandras que nos aqueciam durante os dias frios e chuvosos invernais.
Por essa altura a vila possuía muitos habitantes, as crianças de ambos os sexos em idade escolar andariam à volta de 120 alunos. A praça fervilhava de catraios correndo e brincando.
(…) Mais uns anos de pasmaceira, em 1961 rebenta a “bernarda” em Goa, Damão e Diu. Nehru invade com cerca de cinquenta mil soldados aquelas parcelas de território “Luso”.
Angola, Moçambique… seguem as pisadas, a partida dos mancebos para as ex colónias, emigração para os países devastados pela grande guerra, a sangria humana; a desertificação começa, a vila continua “pasmada”, nada de novo, até que 70 anos depois novo surto de desenvolvimento. Barragem, saneamento básico, água ao domicílio, luz eléctrica, “à meia-noite mais ou menos os candeeiros eram desligados ficando as ruas às escuras” A velhinha calçado basáltica foi substituída por paralelos graníticos; a estrada que liga Alcains ao Castelejo aos poucos foi sendo alcatroada 78 anos depois da queda do concelho, a Pequena Lisboa recebeu uma embaixada da Grande Lisboa, chefiava-a o presidente da câmara. Um “obelisco” é levantado na Fonte Velha para comemorar os oitocentos anos da deslocação de alguns homens bons à capital do reino para oferecerem o povoado ao rei D. Afonso Henriques.
A vila sempre a aumentar; novas artérias, casas, serviços, indústrias. A baixa densidade humana… a partida dos naturais procurando novos rumos transformaram-na. Na zona medieval vivem cada vez menos cidadãos, a maioria idosos, não há sangue novo.
No dia de Corpo de Deus, fizeram a primeira comunhão quatro crianças.
Com tantos melhoramentos que existem:- ”piscina, escola, banco, estradas (quase todas asfaltadas) falta a velhinha Cascalheira, santuário da Senhora da Orada primorosamente alindado, templos recuperados,… filarmónica, rancho, bombos, bombeiros, escoteiros… há cada vez menos pessoas a habitar a donairosa vila de São Vicente da Beira
Quo vadis interior!

J.M.S                                                                                                                            

3 comentários:

Anônimo disse...

Um relatório de alto lá com ele! Como temos vindo a dizer, continuadamente, quanto melhores condições existem (e nunca as houve tão boas como nos tempos actuais), menos pessoas há na vila! E as pessoas são aqui e, em todo o lado, o melhor! E já que o texto fala em crianças (que, justamente, não há!), recordo que o Pessoa dizia que "o melhor do mundo são as crianças". Como todos sabem. De maneira que penso que temos a luta perdida! Infelizmente! Vivamos, por isso, com o que temos!
Achei piada àquela do balcão da cadeia! Que é, afinal, também, da escola e, agora, da Junta!
Abraços.
ZB




Anônimo disse...

A imagem de abundância e conforto que se tem da Europa (como na Vila): tanto para tão poucos é que encoraja tantos, ariscando a própria vida e a dos filhos, à travessia do Mediterrâneo, porque na terra deles há tão pouco para tantos. Tivemos muita sorte com o sítio onde nascemos, pese embora a constante lamúria...
FB

Anônimo disse...

O mundo mudou tanto nos últimos cem anos que ao longo da leitura deste artigo dei comigo várias vezes a imaginar que descrevia cenas da Idade Média: as atividades agrícolas; o bulício das feiras; as ruas cheias de gente.
Hoje estive na nossa escola. À hora do recreio, de tão poucas, mal se viam e ouviam as brincadeiras dos alunos. Numa altura em que, pelo menos aparentemente, temos todas as condições para termos crianças saudáveis e felizes, é quase um paradoxo que nasçam tão poucas…

M. L. Ferreira