quarta-feira, 21 de março de 2018

Dia Mundial da Poesia


Discurso de Saudade

Em todas as casas te procuro, Casa onde habitou a infância
hora luminosa e matinal em que o galo canta e o sino toca
punhados de granizo tamborilando no telhado
e a silente carícia da neve pousando nos peitoris.
Em todas as casas te procuro, Casa:
vento de inverno uivando pelas frestas
madrugadas de susto em que os foguetes
te sacudiam, branca e recatada abadessa
à esquina da rua do convento,
fazendo abanar os caixilhos da vidraças das janelas
onde mais tarde se desfraldavam colchas de damasco
para ver passar os anjos – eu, entre eles.

Em todas as praças te procuro, Praça das cirandas
Praça do pelourinho com a barca, o pássaro, o escudo real
primeiras interrogações ao mistério do capitel.

Em todos os rios te navego, Ribeira a fluir prateada
sob o arco do tempo
para esfolhar-se na roda do moinho
dentro da primavera de malmequeres
quando me sentava à tua beira
mordendo a cor vermelha da cerejas.

Em todas as paisagens te procuro, aquarela de centeio
e oliveiras, pinhais agrestes, ramos de giestas,
urzes, amoras, muros velhos de musgo e heras antigas.

Em cada pôr-de-sol ardente vos espero
cegonhas de vôo lento e branco
hóspedes de verão na torre da igreja.

Em cada chafariz te procuro, Fonte
explosão de vida, líquidas estrelas de cristal
recolhidas em meu cantarinho de zinco.

Longe ficou o mundo em que a única ameaça
era os ciganos, seu rufar de bombos e de pratos
acompanhando a evolução dos acrobatas no trapézio
suspense anunciando os capítulos da vida
em que seria eu a trapezista.

São Vicente, único país riscado a sangue
no mapa das minhas lembranças,
tantas ruas atravessei no mundo
porém as únicas que me atravessam são as tuas
aldeia encravada nas serras do meu coração:
ruas de São Vicente
onde a minha infância passou correndo
com as tranças se desmanchando ao vento
andorinhas emigrando sem retorno.

Maria de Lurdes Hortas, Recife, 7 de Julho de 1984


Maria Libânia Ferreira

4 comentários:

M. L. Ferreira disse...

Muitos já deviam conhecer este poema, publicado no jornal "VICENTINO" em 1984. Eu só agora o encontrei e, como penso que é uma das homenagens mais bonitas que se fizeram à nossa terra, com a qual muitos de nós nos identificamos, porque não dá-lo a conhecer a mais pessoas?

M. L. Ferreira

Anônimo disse...

Lindo de se ler de se sentir em cada palavra, em cada frase, a beleza da nossa aldeia, da natureza, dos sabores, das vivências, da infância, tudo o que nos marcou e moldou a nossa personalidade enquanto seres adultos.

Obrigada por me fazer sentir e deleitar….

Albertina Teodoro

Jaime da Gama disse...

À MEMÓRIA DE JOSÉ PIRES LOURENÇO
(16-06- 1889 – 20-03- 1970)

Eu tenho no meu arquivo
Guardadas numa carteira,
Recordações de um amigo
De São Vicente da Beira.

Não era dali natural,
Era mais d’opé d’arraia
A sua terra natal,
Era da Póvoa D’atalaia.

Pelo destino a deixou,
Deus assim lho permitiu
Mas toda a vida se lembrou,
De quando dali saiu.

Deixou lá o seu sentido
Foi seu Pai e sua Mãe,
Deixou lá o melhor amigo
Que no mundo lhe queria bem.

Tudo a morte lhe roubou
Tudo isso lá perdeu,
Mas enquanto no mundo andou
Nunca mais deles se esqueceu.

A terra que ele mais amava,
Era a vila de São Vicente
Mas nunca o ocultava,
Mostrava-o a toda a gente.

Levou bem longe o seu nome
E a sua nomeada,
E o nome do Santo Cristo
E da Sr.ª da Orada.

E o nome do seu concelho,
Por ter sido cancelado
Pensou sempre ainda vê-lo
Depois de ser restaurado.

Mas a morte traiçoeira
Apareceu mas esperada,
E de São Vicente da Beira
Já não torna a ver mais nada.

Deus queira que a sua sorte
Lhe trouxesse! Eu penso assim
Dando-lhe a si a mesma sorte
Que eu desejo para mim.

António G. Matias
Publicado em Março/Abril-1970 no Jornal "O Pelourinho"

José Barroso disse...

Lembro-me muito bem deste poema da nossa Maria de Lurdes Hortas! Na altura, fiz, com o José Miguel Teodoro, Luís Matias, Francisco Barroso Rodrigues e Edite (?)(que faleceu de acidente) (e outros?), parte da redação do Vicentino. Pela data, acho que o escreveu propositadamente (?) para essa publicação. Julgo que tenho em casa todos os 4 (?) números que sairam a público.
Em poesia, é talvez a coisa mais bem escrita sobre S. Vicente da Beira, que eu conheça, que fala de saudade. Essa coisa portuguesa que se foi espalhando pelo planeta. Estamos aqui em presença de uma poetisa consagrada no Brasil. E lá continua a compor belas linhas, em verso. De vez em quando, é possível ler na sua página do facebook alguns desses poemas actuais ou já antes publicados.
Curioso e cheio de harmonia, é também o poema deste António G. Matias (comentário de Jaime da Gama, (não sei quem é o António G. Matias), que decidiu homenagear o poeta popular José Lourenço (que, sendo a Atalaia do Campo, dizia ser "vicentino pelo coração").
Abraços.
JB.