quinta-feira, 11 de junho de 2020

Trovoadas


«Por todo o Doiro a trovoada passara como um furacão. A bradar por montes e vales, fulminou, primeiro, e alagou e arrasou depois. À voz dos trovões, desciam dos altos torrentes tumultuosas, que escavavam socalcos, aluíam paredes, arrancavam cepas e deixavam atrás, escancaradas, as entranhas da terra. O vento colaborava activamente na destruição, e as rajadas de saraiva, que puseram fim ao arraial, completaram a obra sinistra. Os cachos eram esbagoados ou feitos em papa, as folhas rasgadas ou ripadas dos ramos, as árvores abanadas até à raiz. Nenhuma vida enfrentava inviolada a tormenta, a que nem os próprios trabalhadores podiam fugir, atingidos também nas cardenas, pelas telhas quebradas que caíam e pelo granizo que, sem anteparo, descia directo do céu sobre eles. Um clamor de desespero impotente misturava-se ao rugido feroz dos elementos.
Durou meia hora apenas este desfecho trágico da ameaça que pesava há dias sobre a região. Foi como o êxtase satânico de um deus irado, cuja paciência chegasse ao fim. E, quando a onda passou e o mundo parecia novamente ter encontrado o pé, o que sobreviveu lembrava o salvado exangue dum naufrágio cósmico

Este texto, retirado do livro “VINDIMA” de Miguel Torga, fala duma trovoada na região do Douro, no tempo das vindimas; com ligeiras diferenças, podia também referir-se ao que aconteceu no último domingo de maio, em grande parte da Beira Baixa.
Já andava há dias a armar-se por cima da Gardunha e do Açor, mas nesse domingo o dia tinha amanhecido claro e ameno. De repente, logo ao princípio da tarde, o céu escureceu, como se fosse quase noite, e desabou com chuva, vento, trovões e granizo, arrastando o que podia. Foram quase duas horas de pavor, que levaram por água abaixo o trabalho e a esperança de muita gente. Depois o sol voltou a aparecer, brilhante, como se não fosse nada com ele. Em São Vicente houve alguns estragos, principalmente nas hortas, mas foi pior noutras localidades aqui à roda, onde o pedrisco destruiu pomares de fruta pronta a apanhar, e ameaçou outros de colheita mais tardia. 
Dizem que o tempo já não é o que era, mas, quanto a trovoadas, não terá havido grandes mudanças. São famosas as de maio, e outras que se armavam várias vezes ao longo do ano, medonhas, que chegavam quando menos se esperava, e não havia nada a fazer para fugir delas. E não afetavam apenas as culturas ou as casas: homem ou bicho apanhado a jeito por uma faísca, raramente escapava sem alguma moléstia para o resto da vida, quando não era morte certa.
Foi o caso de Domingos Pires, de 25 anos de idade, já casado, e de José Fernandes Rato, de 23, ainda solteiro, ambos naturais do Tripeiro. Eram lavradores, e no dia quatro de julho do ano de 1860 andavam juntos no Vale da Miguelha a acarear o pão, depois da ceifa. Foram surpreendidos por uma trovoada e, para se proteger, meteram-se debaixo do carro de bois. Tiveram pouca sorte: diz o registo de óbito que foram encontrados mortos, debaixo do carro carregado de centeio, atingidos por um raio.
Foi também o caso de José Caetano, de 17 anos de idade, natural do Casal da Serra. No dia 24 de maio de 1909, no sítio da Malhada da Cova, no alto da Gardunha, foi apanhado por uma grande tempestade e, embora andasse atrás das cabras desde os dez, não sabia ainda que o pior sítio para se acoitar era debaixo dum castanheiro. Foi encontrado morto, fulminado por um raio.
Melhor sorte teve o Ti António Inverno, também pastor de muitos patrões ao longo da vida, mas, por aquela altura, por conta do senhor António Neto. Naquele dia de abril (final dos anos sessenta do século passado) resolveu levar o rebanho para o cimo da Serra, farto de mato tenro para os cabritos; de repente armou-se uma trovoada tão grande que não teve tempo de acautelar o gado e perdeu muitas cabeças, atingidas por um raio. Por milagre, ele não sofreu nada, para além de um susto de morrer. Por esses dias, mesmo nas casas mais pobres da Vila, não faltou carne à mesa de ninguém, porque andaram de porta em porta a dá-la a toda a gente que a quis.
Uma das memórias mais fortes que guardo da infância é o pavor da minha mãe em dias de trovoada. Era uma mulher afoita, a quem poucas coisas metiam medo, mas que mal começava a trovejar tapava o espelho dependurado por cima do lavatório, o único que havia em casa, cobria a máquina de costura e tudo o que pudesse atrair os raios, acendia uma vela e punha a arder um pouco de loureiro, oliveira e alecrim benzidos na missa do Dia de Ramos e que se mantinha o ano inteiro pendurado atrás da porta para o que desse e viesse; depois arrebanhava os filhos todos, como fazem as galinhas com os pitos em perigo, e rezava connosco:

Santa Bárbara Bendita
Que no céu está escrita
Com raminhos de água benta
Livrai-nos desta tormenta
Espalhe-a lá para bem longe
Onde não haja eira nem beira
Nem raminho de oliveira
Nem raminho de figueira
Nem mulheres com meninos
Nem ovelhas com borreguinhos
Nem vacas com bezerrinhos
Nem pedrinhas de sal nem nada
A que faça mal.
Amém.

Mal a trovoada se espalhava, abalava também o medo, e saiamos todos de casa a correr para, rua abaixo rua acima, chapinharmos na água que corria pelas valetas, vinda do Cimo de Vila.

M . L. Ferreira

Um comentário:

José Teodoro Prata disse...

Lindo! A oração, os medos da trovoada, as histórias reais e a descrição de Torga, tudo!