segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Gente nossa

 O Coluna e o seu filho Pedro

Na sexta-feira saí da escola acompanhado pelo meu novo colega de Geografia. Desejei-lhe bom fim de semana e perguntei-lhe se o passava em Castelo Branco. Respondeu-me que vivia agora em Castelo Branco, mas que era do Sobral do Campo e vivera toda a vida na Margem Sul. Eu disse-lhe que era de São Vicente e ele contou-me que o seu pai também era de lá.

Chama-se Pedro, é neto de um João Matias que vivia junto ao posto da GNR e o seu pai era o Coluna. Casou no Sobral e faleceu novo, com 46 anos. Eles reconstruíram a casa do Sobral, para onde ele ia logo que acabasse de almoçar.

Tenho algumas imagens do Coluna, que via no grupo dos rapazes mais velhos, mas não tenho memórias para escrever mais sobre ele. Peço a um dos seus amigos, o Zé Barroso, que complete este texto.

José Teodoro Prata


O José Joaquim Roque Henriques era filho do tio João Matias Henriques (?), conhecido por João Matrino, a quem acho que também chamavam "Chamiço". Não me recordo, de momento, do nome da mulher deste, mas com certeza que era Maria!  

 Não faço a mais pequena ideia de onde vem o epíteto "Matrino"! Como já em tempos aqui escevi, São Vicente da Beira tinha uma alta imaginação de apor alcunhas não só a todo o nativo, mas também a todo o estranho que com a comunidade entrasse em conctacto. Sem dúvida, uma forma eficaz de individualizar pessoas e identificá-las facilmente, assim contrariando o velho ditado "Há muitas Marias na terra". E muitos Manéis também.

Uma imaginação tanto maior quanto, grande parte das vezes, a alcunha requeria uma certa abstração como esta de "Matrino". Noutros casos, ficava-se por um nome muito mais concreto, como, justamente, no caso do "Coluna". Era exatamente por esta que o José Joaquim era conhecido.

Esta alcunha ficou a dever-se ao facto de o rapaz jogar muito bem futebol. Tão bem que o compararam ao Mário Coluna, um atleta, sobejamente conhecido, que militou no Sport Lisboa e Benfica por muitos anos.

Não se ficam por aqui as singularidades desta família. Tanto no que respeita à comparação com jogadores de futebol famosos como no que toca aos nomes dos seus membros.

Quanto à primeira, o José Joaquim tinha um irmão, de sua graça Alexandrino que, pela razão já acima explicitada, foi alcunhado de "Travassos", um outro futebolista, desta vez do Sporting Clube de Portugal, que foi, como é sabido, um dos grandes craques deste clube nas década de 50 e 60 do século passado.    

Relativamente à segunda curiosidade, não deixa de ser um tanto desconcertante que o tio João Matias e a mulher tenham posto o nome de José a dois dos seus filhos. O José Joaquim Roque Henriques, o nosso Coluna, quando nasceu, em 1953 (ele era o filho mais novo), já tinha quatro irmãos, o mais velho dos quais com o mesmo nome próprio de José e de seu nome completo (creio), José Matias Henriques.

Ora, o facto de o tio João Matias e a tia Maria terem posto, não se sabe se imprevidentemente, o mesmo nome próprio a dois filhos, deve ter criado dificuldades lá em casa quando fosse necessário chamá-los! A solução foi tratarem o mais velho por José (ou Zé), como já vinham fazendo; o mais novo nunca, que eu saiba, trataram pelo segundo nome, Joaquim, mas, sempre e, simplesmente, pelo diminutivo Quim. Todavia, os problemas não acabavam aqui porque eles tinham uma filha chamada Joaquina a quem chamavam "Jaquina"! Com tanto nome disponível para pôr aos filhos, parece que a confusão seria escusada, mas foi assim!

Sei de tudo isto porque eles foram meus vizinhos no Cimo de Vila antes de irem morar para lá do antigo Posto da GNR, à saída da Vila para o Casal da Fraga. Desenrascados eram eles porque, tendo, aparentemente, criado um problema com os nomes dos filhos, trataram logo de arranjar uma solução! Pelo menos para o caso dos dois "Josés"!

Aparte as curiosidades concretas desta família, como concretas e curiosas eram muitas coisas, não narradas, das famílias da Vila, o Coluna foi um rapaz do meu tempo. Se fosse vivo andaria pelos 69 anos. Muitas vezes convivi com ele em tertúlias de malta nas ruas, na Praça, na Fonte Velha e, sobretudo, nos cafés de S. Vicente da Beira, quando ainda a povoação fervilhava de gente e não estava generalizada a televisão nas casas particulares. Por isso, iam todos para o café e ninguém ficava em casa! Era assim, sobretudo nos domingos e em todos os dias em que havia festas!

Quando éramos crianças ou muito jovens, eu e o Coluna fomos, muitas vezes, juntamente com outros (vizinhos ou vizinhas), com uma cesta, às soagens, uma erva brava dita boraginácea, espontânea, que os porcos comiam muito bem! Ou aos míscaros, no tempo deles, ou à lenha, ou apanhar a azeitona que caía nos caminhos públicos para meter em água e juntar à nossa, para o azeite grosso! Algumas vezes, jogámos futebol no Sport Clube de S. Vicente da Beira. Mas, já adultos, também trabalhámos juntos, integrados em camaradas, na colheita da azeitona, durante algumas safras, enquanto não encarreirámos melhor a vida. Fui ao casamento dele ao Sobral do Campo. A vida de cada um mudou entretanto, mas nunca deixámos de confraternizar quando nos encontrávamos na Vila.

O casal João Matias e mulher tiveram cinco filhos: o José, o António, o Alexandrino, a Joaquina e o José Joaquim. São ainda vivos o Alexandrino e a Joaquina.

O Coluna era um indivíduo de estatura quase normal, um português mediano; e também moreno e rijo como o granito, como diria o poeta. Inteligente, cheio de humor e presença de espírito! Atesto-o, não por conveniência de uma qualquer homenagem póstuma, mas porque é absolutamente verdade! Dominava muito bem a lexicologia local e regional, um certo falar e dizer, que lhe permitia proferir frases, por vezes quase só entendidas pelos membros da tertúlia, com as quais desbloqueava as conversas, pondo toda a gente bem disposta! Contava partes que conhecia, que se tinham passado com o tio Zé Nicho, com o tio Aires da Tonha e outros, às quais imprimia o seu cunho humorístico próprio!     

Creio que era esta sua faceta de jogar com as palavras que o levava, muitas vezes, a tratar-me por "Jostéfano", uma combinação entre "José" e "Di Stefano", um famoso jogador do Real Madrid. Não que eu alguma tivesse jogado futebol para ser comprado com esse jogador! Era apenas uma brincadeira! Mas bastava isso para a conversa ser logo mais bem disposta.

Um dia, quando me casei, fui dar uma volta pela Grande Lisboa, Azeitão, Setúbal, onde tinha (e tenho) família. Decidi então ir, com a minha mulher da altura, pela Moita do Ribatejo, visitá-lo, porque sabia que ele prestava serviço no Posto da GNR local.

Quem diria que o Coluna tinha ido para a GNR! Nós, ele incluído, de um certo ponto de vista, sempre detestámos a GNR de S. Vicente da Beira. Eram os guardas que constituíam o maior obstáculo à natural irreverência da nossa juventude: tentavam impedir o jogo da bola na Praça; ralhavam-nos quando fazíamos barulho a altas horas da noite na via pública; proibiam o roubo da fruta (a marouva), à noite, nas hortas da vizinhança; não admitiam o lançamento das bombas dos foguetes nas ruas, Praça e Fonte Velha... A juventude na Vila não conhecia regras, dentro, claro está, da sua própria inocência e simplicidade! Por isso, nunca imaginei que ele pudesse ir para a GNR e que viesse a encarnar a mesma autoridade que tinha imposto as regras à nossa juventude! Para mim, cometeu uma espécie de "traição"! De certo modo isso desiludiu-me, embora a GNR, com o "25 de abril de '74", tenha assumido uma postura muito diferente da anterior à revolução. Ele trabalhou sempre no duro e, como qualquer outro, também quis melhorar a vida! A GNR foi uma oportunidade que aproveitou para fugir ao campo e à fábrica da Argibloco! Mas ainda hoje penso que o fez por uma compreensível conveniência!

No Posto da GNR da Moita do Ribatejo, apareceu-me como nunca o imaginara, todo formal, metido numa farda! Apesar de saber que, muito provavelmente, o iria encontrar vestido dessa forma, mesmo assim, estranhei! Nunca tínhamos sido de formalidades em todo o nosso passado anterior, nem podíamos sê-lo, numa pequena vila do interior, como S. Vicente da Beira! Aquela não era, seguramente, a nossa praia! Por isso, fomos a casa dele, deixámos a etiqueta e, enquanto as mulheres tinham uma pequena conversa, nós fomos molhando o bico com um bom uísque, enquanto discorríamos vivamente sobre a vida e as voltas que ela dá!

Convivemos por muitos anos, é verdade. Mas, ainda assim, não tantos como pretenderíamos e a vida, afinal, nos podia ter proporcionado! Morrer aos 46 anos é muito cedo! Mas o destino assim o estipulou!

Amigo Coluna: um dia a gente vê-se por aí, em qualquer lugar!

José Barroso     

2 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Lá em casa questionámos repetidamente a nossa mãe sobre certos nomes e a resposta foi sempre a mesma: quem levava a criança à igreja era a madrinha, a mãe ficava em casa e muitas vezes só sabia do nome do filho ou da filha após o batizado, o que fazia, por vezes, com que passasse dias inteiros a chorar.
Por outro lado, um irmão já adolescente era um padrinho garantido para o bebé acabado de nascer e também nestes casos se cumpria a tradição: quase sempre o nome dado era o do padrinho ou da madrinha.
O meu pai teve dois irmãos chamados João: o João Teodoro, mais velho, e o João Jerónimo, mais novo. Para os destinguir foi sempre muito mais difícil do que o Zé e o Quim da história do Zé Barroso: o mais velho era chamado João e o mais novo Joãozito, mesmo já bem adulto!

M. L. Ferreira disse...

É reconfortante a esperança de que um dia nos possamos reencontramos com os nossos mortos, mas talvez esta memórias, que de vez em quando aqui vamos deixando, sejam já uma forma de fazer com que isso aconteça. Não fossem agora estas recordações do José Barroso, como foram as do Sebastião Baldaque há tempos, era pouco provável que a maior parte de nós se lembrasse do Coluna ou do Travassos, a não ser, talvez, pelas alcunhas que tinham.
Gosto destas histórias porque, entre outras coisas, reforçam o sentimento de pertença a uma comunidade (afinal, quase todos vivemos infâncias parecidas) e isso dá segurança. Mas não consigo deixar de pensar como teria sido bom se tanta gente não tivesse tido necessidade de deixar a terra; alguns para sempre, e sabe-se lá por que razões e com que saudades...