domingo, 20 de novembro de 2022

A desertificação do mundo rural

 A desertificação e abandono de determinados lugares não são fenómenos novos nem exclusivos de regiões específicas; sempre existiram ao longo da História da humanidade, pelas mais diversas razões: alterações climáticas, cataclismos, guerras, epidemias, busca de solos mais produtivos, necessidade de proteção, etc. A testemunhá-lo estão os vestígios de antigos aglomerados populacionais que têm sido encontrados, alguns ainda a céu aberto, outros preservados debaixo do solo.

Já mais recentemente, com as mudanças introduzidas pela Revolução Industrial ao longo do século XIX, nos países que mais rapidamente desenvolveram novas tecnologias e inovaram os métodos de produção, as alterações na organização social e económica foram enormes: a deslocação de uma parte significativa da população das zonas rurais para a periferia das cidades, onde se situavam as fábricas, provocou grandes desequilíbrios demográficos.

Em Portugal, o abandono das zonas rurais fez-se sentir mais intensamente a partir da segunda metade do século XX, com a saída de grande parte da população das aldeias do interior para as cidades do litoral ou para África. Seguiu-se depois o movimento de emigração para outros países da Europa, sobretudo para França e Alemanha. Nesta altura a motivação principal para o abandono do campo era, quase sempre, a dureza e sazonalidade do trabalho, os baixos salários, e a consequente miséria em que uma parte significativa da população vivia. As pessoas partiam à procura de melhores e mais justas condições de vida.

Para muitos não foi fácil, principalmente em termos da integração social: vivendo muitas vezes na periferia das grandes cidades, frequentemente em bairros e casas sem grandes condições de habitabilidade, não se sentiam parte das comunidades locais; por outro lado, a falta do suporte familiar e da vivência quotidiana das práticas comunitárias próprias da vida das aldeias, fazia-os sentirem-se desenraizados. Seria por isso que, por exemplo em Lisboa e noutras cidades dos países de acolhimento da emigração portuguesa, foram nascendo associações onde os naturais das várias pequenas cidades, vilas ou aldeias do interior se encontravam regularmente para matar saudades e partilhar aspetos da cultura das suas terras (a gastronomia, a música, as festas, os jogos, etc.).

Mais tarde, já depois do 25 de Abril de 1974, o acesso mais fácil à educação escolar para todas as crianças e jovens, e a abertura de fronteiras e de mentalidades, criou em muitos jovens das zonas rurais a necessidades de ganhar asas e procurar um mundo em que os seus sonhos e expetativas se pudessem cumprir.

São Vicente da Beira, à semelhança da maior parte das aldeias do interior do país, até meados do século XX apresentava ainda uma estrutura económica e social muito atrasada. Um número reduzido de famílias ricas possuía grande parte das terras à volta da povoação. Essas terras, porque alguns dos proprietários não viviam em São Vicente, eram administradas por feitores, pessoas de algum prestígio social a quem competia a gestão do trabalho ao longo do ano agrícola. Eram eles que contratavam os trabalhadores de acordo com as necessidades, e, num tempo em que a mão-de-obra era muita e o trabalho nem sempre abundava, as jornas eram baixas e incertas. A situação piorava se, por motivos quase arbitrários, um trabalhador caia em desgraça; era certo que muito dificilmente conseguiria fazer mais um dia naquela propriedade, pondo em risco o sustento dos filhos.

Algumas famílias tinham pequenas propriedades ou alugavam terras aos mais ricos, que não queriam tratá-las. Mas as rendas, pagas geralmente em dinheiro e em géneros, eram quase sempre tão altas que, em anos de má produção, a colheita mal dava para pagar aos donos da terra.

Para além do trabalho na agricultura, ou como pastor ou ganhão, alguns homens trabalhavam também como resineiros e serradores. No inverno, por altura da apanha da azeitona, muitos ocupavam-se dos vários lagares que havia ao longo de ribeira. Para além destas profissões, havia na freguesia alguns carpinteiros, sapateiros, pedreiros, moleiros, ferradores, alfaiates e comerciantes.

As mulheres, para além de cuidarem da casa e dos filhos, também trabalhavam no campo, ao lado dos homens, sobretudo na apanha da azeitona, na sacha do milho e do feijão e no cultivo das hortas e dos linhares. Muitas tinham em casa teares artesanais e teciam peças de linho ou mantas de orelos para uso da própria família e para vender.

Até aos anos 50 do século XX muitas crianças não iam à escola e começavam a trabalhar muito cedo. Os rapazes, ao lado do pai, ajudavam nos trabalhos do campo ou guardavam os pequenos rebanhos familiares. À medida que iam crescendo iam-se complexificando também as tarefas que lhe eram atribuídas, quer a trabalhar para a família ou à jorna, para fora. As raparigas eram criadas de servir em casa de gente rica. Começavam, meninas ainda, a fazer trabalhos mais simples ou a cuidar dos filhos dos patrões, muitas vezes pouco mais novos que elas; muitas só deixavam esse trabalho nas vésperas do casamento.

Mas, como acontecia por todo o País, a perceção do mundo rural também se altera em São Vicente: as pessoas começam a sonhar com alternativas de vida melhores para si e para os seus filhos, e muitos partem, para Lisboa, mas sobretudo para o estrangeiro. De início partiam os homens, sozinhos, mas a pouco e pouco foram famílias inteiras que por lá criaram raízes e novos modos de vida; algumas já só regressam à terra para visitas breves e cada vez mais adiadas.

E a sangria não parou: uns anos depois muitos dos mais jovens também tiveram que procurar outras paragens na necessidade de encontrarem empregos compatíveis com a formação escolar que a democracia e as melhores condições económicas das famílias lhes permitiram.

E as ruas foram-se esvaziando; e as gentes ficam cada vez mais velhas. Em certos anos, morrem mais pessoas do que as crianças que nascem numa década. Estes dados mostram-nos uma realidade preocupante:

 

POPULAÇÃO DA FREGUESIA DE SÃO VICENTE DA BEIRA

(1900/ 2011)*

 

1900

 

1911

 

1920

 

1930

 

1940

 

1950

 

1960

 

1970

 

1981

 

1991

 

2001

 

2011

 

2 803

 

3 282

 

3 013

 

3 239

 

4 000

 

4 185

 

3 881

 

2 501

 

2 265

 

1 871

 

1571

 

1 259

·         Documento disponível no sítio da Junta de Freguesia SVB. De acordo com o último censo, em 2021 éramos apenas 958.

Se a tendência não se inverter, o que dificilmente acontecerá, corremos o risco de, dentro de poucos anos, algumas aldeias da freguesia, e mesmo São Vicente, ficarem desertas de gente, como já acontece em muitas outras por todo o País rural.

M. L. Ferreira

2 comentários:

José Teodoro Prata disse...

A Libânia publicou este artigo a propósito dos comentários às fotos que a Margarida Pereira nos enviou sobre o Magusto.
Por acaso eu até achei que o magusto estava compostinho, tendo em conta a realidade demográfica que temos (ver quadro do final).
Por outro lado, como referi no meu comentário, acho que temos de fazer um esforço para reanimar a nossa vida comunitária, tão abalada pela pandemia e pela passagem para as juntas da organização das festas de cada freguesia.
O financiamento igualitário das freguesias pela Câmara, para evitar favorecimentos, foi uma exigência aparentemente justa do PSD, no passado, mas agora percebe-se que as juntas não têm o mesmo "saber fazer" da Câmara, como é natural.

aldo disse...

Sobre o artigo, apenas, um pequeno reparo, se verifica recorrentemente quando se escreve ou fala sobre o tema. O termo, desertificação, deve apenas e só referir-se a aspetos ou fenómenos climatológicos, como o fenômeno que a corresponde o empobrecimento e diminuição da humidade nos solos. Como, segundo a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação, a desertificação é "a degradação da terra nas regiões áridas, semiáridas e sub-húmidas secas, resultante de vários fatores, entre eles as alterações climáticas e as atividades humanas".
Muito diferente de do termo que deveria aqui ser utilizado: DESPOVOAMENTO humano do mundo rural.