A propósito da perda de eleitores na nossa freguesia (mais de cem) entre as Autárquicas de 2021 e as de 2025. Embora a “fome” não seja exatamente a mesma, este texto é extraordinário, até pela crueza, na justificação da perda de população no interior do País no tempo da ditadura:
«O reino naquela época tremia de frio
e desconfiança.
Tinha-se deslocado mais para a
beira-mar, não se sabe bem porquê, mas calcula-se: fome.
A fome vinha do interior e varria tudo
para o oceano. Nesta leva desgarrada, escapavam os camponeses, que tinha a
barriga curtida, em cardos, e que se cravavam na terra à dentada, como uns
danados.
Espalmavam-se nas tocas e nas dobras
das montanhas para deixar passar a ventania, pareciam calhaus, seres
empedernidos; depois voltavam ao trabalho; à semente que se enterra e ao fruto
que se arranca.
Tinham-se habituado de tal maneira à
má sina que fome para eles era o pão de cada dia.
Os restantes, os que não conseguiam
enganar os vendavais, fugiam de roldão pelo país, atravessando aldeias e
planícies, vinhas e repartições, hoje fazendo família neste ponto, amanhã mais
naquele, até se verem diante do mar, acossados.
Uma vez ali, ou entregavam o corpo aos
caranguejos ou faziam como o mexilhão: Pé na rocha e força contra a maré.
Daí o nome de Reino do Mexilhão, que lhe pôs a geografia, em homenagem a esse marisco mais que humilde, só tripa e casca.»
Do livro Dinossauro Excelentíssimo de José Cardoso Pires
ML Ferreira
3 comentários:
O escritor José Cardoso Pires, cujo centenário do seu nascimento estamos este ano a assinalar, era natural de São João do Peso, concelho de Vila de Rei. Já então (anos 50 e 60), o interior se despovoava e se enchia o litoral. E ainda nem chegara a CEE, atual UE, que cerca de 1990 pagou para se arrancarem vinhas e olivais, a machadada final.
Pouco depois de ter nascido, em Vila de Rei, José Cardoso Pires foi viver para Lisboa, onde, dizem, levou uma vida boémia. Apesar disso nunca deixou de se preocupar com a situação política do País e, sobretudo, a pobreza em que a maior parte das pessoas vivia. E foi sobre isso que escreveu, nem sempre de forma fácil (para mim) de descodificar.
O último livro que li dele “O Hóspede de Job” é duma crueza e ao mesmo tempo de tanta humanidade, que comove.
ML Ferreira
O Baldaque também assina pelo Cardoso Pires, o Cardosão. Partilhamos admiração pelo Amor em tempos de cólera, por ele considerado o melhor que já tinha lido. Impecável de exactidão (O Delfim), com O Lavagante como "recordatório" de tempos que foram, escreveu crónicas, veneradas aqui por casa, que consola ler em dias mais cinzentos. Mezinhas de prazer e felicidade, vêm à mão, pelo computador, na morada que se indica:
https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/EFEMERIDES/josecardosopires/JoseCardosoPires_Colaboracoes_Publico.htm
Para receitas de felicidade, basta.
J M Teodoro
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