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quarta-feira, 17 de agosto de 2016

O terramoto de 69

Naquele tempo, já passaram tantos dias, tanto tempo.
A colheita da azeitona tinha terminado, o azeite (bastante fino por sinal, não fossem oliveiras de São Vicente) guardado nos velhos potes de barro, a safra tinha sido boa. A feira de São Vicente assim o demonstrou, muita mercadoria e muitos compradores, a praça repleta de tendas, cada feirante expunha seus produtos:-brinquedos de lata, bonecas de papel, lençóis estampados, panos de fioco, surrebeco, camisas de popelina, aventais, xailes, lenços para tapar as cabeças às mulheres; (só podiam entrar na igreja com a cabeça coberta por um lenço) nunca entendi o porquê:- os homens chapéu na mão, cabeça destapada, as mulheres…
Sapateiros expunham seus trabalhos; botas cardadas... Na pequena praça Hipólito Raposo cancelas guardavam leitões, as vacas ficavam na fonte velha, a praça fervilhava de gente de toda a freguesia e freguesias limítrofes. Sacristão subiu as escadas da torre e tocou a última, padre Tomaz desmonta do cavalo, entrega a alimária ao Zé maiaca, entra na sacristia. Enquanto se paramenta vai rezando em latim:
- Ne reminiscáris, Dómine, delicta nostra… não vos recordeis Senhor dos nossos delitos…
Ouvem-se as doze badaladas, vigário, costas voltadas para os fiéis, de frente para o altar, inicia a santa missa; são raras as vezes que começa a eucaristia a horas. Pudera; estradas não havia, abundavam os caminhos escalavrados e as veredas; o rebanho era grande, cavalo de vez em quando não queria subir a Costa, ladeira íngreme.
Chovesse, nevasse, fizesse sol, noite ou dia padre Tomaz tinha que estar sempre pronto para acudir aos seus paroquianos, a santa unção não se podia negar a um moribundo.
Igreja à cunha, ouvia-se perfeitamente o ruido dos feirantes e das pessoas
In nomine Patris, et Filli et Spíritus Sancti…
Ite missa est.
Deo gratias.
A praça é um mar de gente, a taberna do Zé canhoto, fica em frente à porta principal do templo, enche-se de fregueses que emborcam copos de vinho. Alguns, poucos, bebem pirolitos, a praça fervilha, a feira está forte, a azeitona teve boa funda, os leitões eram vendidos por duas, três notas. Ano de azeite, feira forte; ano de pouco azeite, a feira não é tão boa.
Padre Tomaz, sempre preocupado com os Aldeões, os Canavéis, quando tinha um tempo livre ia ver como estava o renovo, se o Zé maiaca tinha os mimos a seu gosto.
Foi professor no seminário do Fundão, durante quarenta anos paroquiou a vila. O escritor Virgílio Ferreira recorda-o no seu livro Manhã Submersa. Terá sido talvez o principal impulsionador para que admitissem Joaquim Alves Brás no seminário. Certa vez, a convite do seu colega António, irmão de Alves Brás, foi passar uns dias a Casegas. Alves Brás já não era nenhuma criança, padre Tomaz viu qualidades naquele adolescente. António não estava muito inclinado para que o irmão entrasse para o seminário: era coxo. Voltando-se para o colega disse-lhe:
- Ser coxo não é impedimento, teu irmão vai ser um bom sacerdote. Monsenhor Alves Brás foi o grande protector das criadas de servir, fundou as casas de Santa Zita, o seu lema era "Ajudar as criadas de servir".
À saída da missa. uma mulher andava à procura do seu homem e não o encontrava.
Está metido nalguma baiuca, não se perde.
Eu casei na igreja da vila, viemos a pé da Partida, foi o padre Tomaz quem nos casou, a minha mãe ficou viúva muito nova, já tinha dois filhos quando se casou com o meu pai que também era viúvo e tinha oito filhos; era mais velho que a minha mãe treze anos. Minha avó, mãe da minha mãe, não queria que minha mãe casasse com ele:
- Vais casar com um homem que já tem oito filhos… Ainda tiveram mais quatro: nosso Luís, a nossa Gracinda, eu e o meu irmão Manuel que morreu novo.
Como as coisas são, se não se tivessem casado não estava cá.
Todos gostavam muito da minha mãe, ela também gostava muito de todos, nunca houve a mais pequena coisa entre nós, sempre nos demos muito bem, a fartura não era muita, mas também não passávamos fome.
Minha mãe subia a serra em direcção à Paradanta, fui com ela algumas vezes; passávamos no Vale do Urso, em direcção ao Fundão.
A minha mãe levava uma cesta de ovos à cabeça, no Fundão trocava-os por loiça, depois ia para as Rochas de Baixo, Almaceda… onde a vendia. Trocava-a por sementes, não havia dinheiro. Milho, trigo, feijão… A minha mãe enchia uma caneca de sementes e fazia assim a venda.
Havia peças que tinham de se encher mais que uma vez, conforme o valor…
Um dia, fui com a minha mãe às Rochas, cheguei a um ponto que já não queria andar, era muito nova ainda.
Éramos muitos irmãos, nunca passámos fome. Certo dia fui a Castelo Branco ver o meu irmão que andava na tropa. Abalámos de manhã cedo com os ganhões que levavam madeira.
Quando era solteira, íamos a pé para Castelo Branco apanhar a azeitona, à noite era uma alegria, dançávamos ao toque do realejo…
Além vai o seu homem.
Onde é que tens andado homem! Estão ali uns leitões que metem cobiça, vamos lá comprar um, são uma boquinha lavada, comem tudo o que a dona lhes deita, se o Santo António o guardar, para o ano fazemos uma boa matação.
Ó ti Maria quanto quer por este leitão?
- Duas notas e meia.
- É muito, damos-lhe duas notas, mesmo assim é caro.
- Deixe cá ver o dinheiro, leva coisa boa.
(…) Senhoras e senhores aproximem-se, cá está o homem da banha da cobra. Venham ver esta maravilha, uma pomada que faz bem ao lumbago, dores nas costas, cura feridas… Quem comprar uma bisnaga, não leva uma, nem duas, mas três, é uma pomada milagrosa. Um conjunto para aquele senhor, para aquela senhora… aproximem-se, venham experimentar, as dores das cruzes desaparecem!
- Olha o homem das calças baratas, hoje perdi a cabeça, o custo não paga o feitio, quanto mais o pano, vejam estas calças de cotim…
As pessoas aos poucos vão partindo para suas casas, os feirantes arrumam as tendas, a noite aproxima-se a passos largos, para o ano nova feira, outras compras…
O mês de fevereiro é o mais curto mês e o menos cortês. O rendeiro da quinta da Casa Conde terá sido sondado para que as pessoas da vila pudessem fazer um curso de poda de oliveiras.
Muitos adolescentes, e alguns homens de mais idade, aproveitaram a oportunidade. Todos receberam uma tesoura e um serrote. O monitor chamava-se Gutterres, regente agrícola, tio do engenheiro, boa pessoa, paciente com os formandos. Avancemos.
- Ó Ana, não sei o que se passa com as nossas ovelhas, andam esquisitas; na Barroca saltam de uns leirões para os outros, não pegam na erva. Até o nosso piloto, farta-se de uivar…
Tem graça que as nossas galinhas também andam alvoroçadas, esta manhã não puseram um ovo. Fevereiro estava no fim, a noite igual a todas as outras noites. Depois da ceia fomo-nos deitar, às duas e tal da manhã de domingo, lá longe, ouve-se um rudo esquisito cada vez mais forte, audível, passa debaixo da cama.
- Ai homem que a nossa cama está a abanar, levanta-te, Senhor Santo Cristo nos acuda, é o fim do mundo!
- Não vês que é um tremor de terra, fujamos que a casa pode desabar. Da rua vinha um falaçar…
Quando amanheceu, as paredes da sala de jantar encontravam-se rachadas, não eram muito grandes as fendas, algumas coisas saíram dos seus lugares, a rádio anunciava que em Portugal, nomeadamente no Algarve, tinha havido um valente tremor de terra, tendo morrido umas doze pessoas, muitas casas danificadas…
São assim os tremores de terra, nunca se sabe quando aparecem, destroçando, destruindo, criando pânico entre as populações.
Na segunda-feira seguinte do ano da graça de 1969, pela manhã, os podadores formandos entravam pelo cabanão na quinta, para continuarem a aprendizagem.  


J.M.S.